Tornos. Uma escatologia Turístico-Patrimonial \ Rui Gilman



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Tornos
Uma escatologia Turístico-Patrimonial
Rui Gilman

Turismo e património são vulgarmente apresentados como entidades confrontantes, o primeiro mais ligado à economia e ao lazer, o segundo mais conotado com a cultura e a identidade. Aceita-se que os dois se toquem apenas ligeira e ocasionalmente para criar sinergias. No entanto, a realidade é bem diferente. Turismo e património não só estão intimamente ligados como operam em conjunto, segundo as mesmas regras e princípios. O turismo condiciona, orienta e enforma o conceito de património e as estratégias para sua conservação, classificação e reabilitação, sendo ambos os fenómenos emanações duma lógica do capitalismo globalizante e directamente ligados à aceleração do tempo.
Se, efectivamente, salvaguardamos o património movidos pelo turismo, que diz isso sobre a validade dessa mesma conservação? O que estaremos realmente a conservar? De que forma e qual a autenticidade do que conservamos? Numa sociedade saturada pela atomização da imagem e pela multiplicação virtual do real, qual o futuro da relação turismo-património?
“Olhos em todo lado. Nenhum ângulo morto.
Com que sonharemos quando tudo for visível?
Sonharemos estar cegos.” [1]


Jenny Holzer, Truisms, Money creates taste, 1982. Times Square, New York.

The economy, stupid.
Porto:
Melhor destino europeu de 2012, segundo a European Consumers Choice.
18 Mil passageiros de cruzeiros no mês de Setembro, igualando o total de 2009.
1 Milhão de dormidas em 2004; 2,4 milhões de dormidas em 2013.
Aeroporto Sá Carneiro passa de 2,4 a 6,7 milhões de passageiros, entre 2004 e 2013.
Cais da Ribeira, uma das “31 ruas a percorrer antes morrer”, para Condé Naste Traveler.
Destino gastronómico do ano em 2013 na Wine.
Edifício da Alfândega, “melhor centro de conferências” da Europa em 2014.
Livraria Lello, terceira melhor do mundo no Lonely Planet's Best in Travel 2011.
Yeatman Hotel, “Best Dining Experience” nos Condé Nast Johansens 2015.
74 hotéis, 27 hostels e mais 1000 alojamentos sazonais ou permanentes para turistas.
1ºtrimestre de 2014: metade dos fogos licenciados para reabilitação destinam-se ao sector turístico.
Março de 2014: Presidente de Câmara eleito presidente da Associação de Turismo do Porto e Norte.
Melhor destino europeu 2014, segundo a European Consumers Choice.

No espaço de uma década de actividade económica residual, o turismo passou a “motor económico” da cidade do Porto e é um exemplo paradigmático do crescente peso do turismo na economia nacional, representando actualmente 5,8% do PIB (quase o dobro da média europeia). Este crescimento rápido e exponencial do turismo nas cidades, nomeadamente cidades históricas, promove mudanças socioeconómicas profundas, levando a conflitos de interesse entre população residente e população flutuante. Nem sempre muito divulgados e vulgarmente abafados pela propaganda pró-turística, estes efeitos estão sobejamente estudados e documentados: fenómenos de gentrificação com a “expulsão” de população residente provocada pelo aumento vertiginoso do custo de vida (rendas, alimentação e outros bens essenciais); substituição do pequeno comércio tradicional por comércio especializado para turismo e/ou por grandes marcas internacionais; privatização e mercantilização dos espaços públicos (comércio ambulante de souvenirs e esplanadas a ocuparem os passeios, entradas pagas em monumentos e jardins); criação de pedaços de cidade monotemáticos, complicações de trânsito; apropriação turística de lojas tradicionais e franchisição das mesmas.
O recente documentário “Bye Bye Barcelona” explora estes atritos e consequências do aumento de fluxo turístico: mostra o ciclo vicioso criado pela indústria turística que quanto mais aumenta e mais zonas invade, mais dependente vai tornando a cidade. Aborda, também, a promiscuidade entre os poderes político e económico no âmbito do turismo.
Em cidades históricas, como Porto ou Barcelona, este turismo aparece continuamente associado ao património - turismo cultural - que os poderes político e económico, através dos media, vendem como um turismo diferente: um turismo “benigno”, mais culto, que não só não modifica qualitativamente a identidade do local como o ajuda a aprofundar esse mesmo sentido de identidade, valorizando-o quer a nível material quer a nível imaterial.
Na verdade, o turismo cultural não passa duma subsegmentação do turismo, seguindo os mesmos moldes economicistas. O património é o recurso e o turismo cultural a sua forma de exploração. O valor do património é mensurável pela sua capacidade de gerar receitas via turismo, sendo estas posteriormente usadas para beneficio e conservação do mesmo, tendo em vista a multiplicação do número de turistas. Estamos perante uma lógica circular e autojustificada. A recente polémica sobre as taxas turísticas em Lisboa demonstra este raciocínio: segundo a Câmara, o turismo teria causado “um acréscimo de pressão no espaço urbano, nas infra-estruturas e equipamentos públicos” que exigiria um reforço das operações de limpeza, segurança e manutenção, “sob pena da excessiva ocupação/lotação e precoce degradação colocar em causa a sustentabilidade do crescimento do destino turístico” [2]. As taxas não têm, assim, qualquer propósito regulatório: o turismo é taxado para amenizar distúrbios causados pelo próprio turismo, para permitir que haja mais turismo, para assim permitir que se recolham mais taxas, para amenizar maiores distúrbios, para que haja mais turismo, numa lógica circular, paradoxal, crescente e perpétua.


Barbara Kruger, Untitled (Your Fictions Become History), 1983
Détournement Situacionista, Sociedade do espectáculo, 1973.

De conhecimento a produto
Este género de raciocínio, exemplificado pelo caso das taxas turísticas em Lisboa, inclui-se numa doutrina fetichista patrimonial patrocinada e “simbolizada pela política de industrialização da UNESCO, com a sua Convenção do Património Mundial e a rotulagem dos bens culturais à escala mundial” convertendo “as nossas heranças culturais em produtos de consumo mercantil.” [3]. Turismo e património aparecem assim fundidos, indestrinçáveis. Renunciar a um é abdicar do outro.
Para compreender o presente e vislumbrar o futuro da relação turismo-património necessitamos de recuar ao passado. Analisar a evolução dos sucessivos conceitos de turismo e de património é analisarmos a construção, desenvolvimento e mudança da identidade ocidental e as suas relações com a temporalidade e com o espaço. Cruzando as cronologias de turismo e património detecta-se uma evolução paralela em ciclos temporais sucessivos cada vez mais curtos, aumentando em cada um o âmbito e alcance do seu próprio significado, ao mesmo tempo que se cruzam com noções de tempo, espaço, liberdade ou democracia. Podemos dividi-los em cinco ciclos.

Civilização da Imagem: Século XV – Século XVIII
A primeira noção de património nasce do aparecimento do conceito “do monumento histórico, sob a designação de antiguidades” na Itália do século XV [4]. Este transforma a visão ocidental, promovendo uma atitude reflexiva sobre o passado à luz da história, do conhecimento e do gosto, rompendo com o teocentrismo medieval. Desta mudança de paradigma nasce o Grand Tour, em meados do século XVII, e com ele o turismo moderno. Podendo levar entre meses a anos, o Grand Tour, quase um rito de passagem, consistia numa viagem que jovens nobres e da alta burguesia do norte da Europa faziam pelo velho continente, acompanhados de guias ou tutores, a fim de tomar contacto com o legado cultural clássico. Nasce assim uma nova forma de viagem, de carácter individualista, motivada pelo prazer e pelo conhecimento, e que rompe com a tradição medieval de viagem: a peregrinação religiosa.

Industrialização: Século XIX – Século XX anos 30
Um segundo ciclo de aceleração e desenvolvimento surge com advento da Revolução Industrial. Esta produz alterações e destruições que levam à substituição do conceito de antiguidades pelo de “monumentos históricos”, uma protecção de tipo museológico devido ao seu interesse para a Arte e a História. O monumento é assim, dotado de “um diferente estatuto temporal” passando “a um objecto de culto (...) dotado de (...) um papel memorial impreciso (...), símbolo de uma era perdida pelo avanço da técnica” [5]. Simultaneamente, a Revolução Industrial massifica o uso do comboio e do barco a vapor, popularizando primeiro e extinguindo depois o Grand Tour, substituído por viagens de lazer mais próximas do turismo contemporâneo. Em 1841, Thomas Cook cria a primeira agência de viagens, inaugurando a era das viagens organizadas e dos pacotes turísticos (a “fordização” do turismo). Em 1891, a American Express cria o primeiro sistema de cheques de viagem em larga escala, facilitando as transacções económicas (globalização).
Em 1931, em Atenas, realiza-se o primeiro congresso internacional dedicado à conservação artística e histórica de monumentos. Entre guerras, o interesse pelo património é renovado pelo ressurgimento dos nacionalismos autoritários. Património e turismo aparecem unidos, o primeiro como símbolo de identidade nacional e o segundo como veículo de disseminação do primeiro às massas. Nas palavras de António Ferro, responsável pelo Secretariado da Propaganda Nacional “O turismo perde, assim, o seu carácter de pequena e frívola indústria para desempenhar o altíssimo papel de encenador e decorador da nação” [6]. Surgem nesta altura as primeiras colónias de férias acessíveis ao proletariado como os Butlins (de iniciativa privada), em Inglaterra, ou a gigantesca estância balnear de Prora (de iniciativa estatal), na Alemanha. Apesar do clima económico desfavorável criar uma quebra nos números de turismo, este beneficia da popularização do automóvel, do surgimento das primeiras redes de auto-estradas e da abertura das primeiras rotas aéreas regulares de passageiros.

Democratização: 1945 – 1970
A grande aceleração e expansão quer de turismo, quer de património, dá-se após a 2ª Guerra Mundial. Estabilidade social, prosperidade económica e boom demográfico, aliados à necessidade de reconversão da economia de guerra, dão origem ao nascimento da cultura do ócio no mundo ocidental. Uma classe média, incentivada por uma série de iniciativas legislativas (menor horário de trabalho, maiores períodos de férias, mais apoios sociais) e pelo recém-adquirido poder aquisitivo, começa a interessar-se por viagens. Tal fez com que se banalizasse o carro, se tornassem mais acessíveis as viagens de avião (voos charter) e vulgarizasse o barco de cruzeiro.
Este período é decisivo tanto para o turismo e para o património como para a ligação umbilical dos dois através do consumo cultural. É nos anos 60 que, em França, através de André Malraux, a expressão património adquire o significado que hoje lhe conhecemos. Citando Choay: “o grande projecto de democratização do saber, herdado do Iluminismo e reanimado pela vontade moderna de erradicar as diferenças e os privilégios do usufruto dos valores intelectuais e artísticos, a par do desenvolvimento da sociedade de lazer e do seu correlativo, o turismo cultural dito de massas, estão na origem da expansão talvez mais significativa, a do público dos monumentos históricos” [7]. O Ministério da Cultura Francês que Malraux dirige, faz de França pioneira da política cultural liberal de Estado oferecendo à “Europa o modelo jurídico, administrativo e técnico” [8]. Esta visão ocidental estabelece-se progressivamente como predominante/hegemónica, culminando na assinatura da Carta de Veneza, em 1964. É durante este período que é constituída a UNESCO e que são feitas as primeiras campanhas internacionais para a salvaguarda de património histórico como em Abu-Simbel.

Informatização: 1970 – 1990
Na década de 70 o turismo decresce fruto da crise energética, a primeira grande crise do capitalismo desde do crash de 1929. O dólar torna-se moeda flutuante. Durante estes anos de abrandamento inicia-se o processo global de patrimonialização com a assinatura da Convenção do Património Mundial (1972) Comité do Património Mundial (1976) e a inscrição dos primeiros sítios na Lista do Património Mundial (1978).
A década seguinte dá novo fôlego ao capitalismo ocidental com a desregulação progressiva dos mercados financeiros e a informatização em larga escala (primeiros computadores pessoais). Dá-se início ao processo de internacionalização das grandes empresas hoteleiras e dos maiores operadores turísticos. Surgem o TGV e os novos aviões comerciais, ao mesmo tempo que, em 1980, se dá assinatura da Declaração Mundial do Turismo de Manila, afirmando o turismo como essencial à vida das nações quer a nível social, cultural e educacional, quer nas suas relações internacionais com outros países.

Virtualização: 1990 – dias de hoje
Na década de 90 assiste-se ao nascimento do verdadeiro mercado global, à queda do comunismo, à solidificação das redes de comunicação, à ascensão da televisão global e ao advento tecnológico da internet. O turismo beneficia desta nova consciência global, bem como das políticas que fomentam o livre-trânsito de pessoas (Tratado de Maastricht em 92 e Acordo Schengen em 97). As viagens de avião tornam-se progressivamente mais acessíveis e mais frequentes graças às companhias low cost e à liberalização da gestão dos aeroportos.
O 11 de Setembro (2001) e a crise do sub-prime (2008) constituem-se como quedas temporárias numa trajectória ascendente e contínua dos números do turismo, uma das únicas indústrias com lucros e taxas de crescimento inalterados pela depressão económica. Tal faz crescer a dependência económica de cidades e países em crise, onde o turismo passa a ser visto como tábua de salvação.
No mesmo espaço de tempo populariza-se o GPS e o Google, ao passo que os telemóveis tornam-se de minicomputadores, massificando o uso da fotografia e a ininterrupta ligação à internet. Entretanto as redes sociais substituem os meios clássicos de divulgação turística, contribuindo para a diversificação do turismo numa infinidade de sub-segmentações. Do turismo médico ao turismo de guerra, do turismo LGBT ao turismo sexual.
No campo do património as classificações multiplicaram-se várias vezes em número, encurtando progressivamente o espaço de tempo entre construção e classificação. Simultaneamente foram-se criando mais categorias patrimoniais nacionais e internacionais, abrangendo um universo de criações humanas cada vez mais vasto. Exemplo disso é a assinatura da Convenção para Salvaguarda do Património Cultural Intangível (2003) e a criação da Lista do Património Cultural Intangível (2008). Este património imaterial abrange coisas tão díspares como folclore, tradições orais e até, criações digitais.


 Jenny Holzer, The Survival series, Protect Me From What I want, 1983-1985.

Nostalgia-Tecnologia
“Assim é o turismo, nascido vinculado à morte, convertendo o mundo num museu, uma cidade fantasma de que (os turistas) são coleccionadores de vestígios.” [9]
Escalpelizando o presente, revisto o passado, interessa vaticinar o advir do turismo, do património e da sua dialéctica. Comprovamos a relação umbilical entre turismo e património. Vimos como os dois conceitos foram forjados sobre a égide da Civilização da Imagem, substituta da Civilização da Palavra. Vimos como as evoluções tecnológicas, politicas e sociais fizeram transitar os dois conceitos, da área da cultura do conhecimento para a do consumo de massas. Da união improvável entre as aspirações sociais igualitárias e a ânsia de lucro económico nasceu um novo paradigma de relação com os monumentos históricos e as viagens enquanto produtos de consumo cultural. “O museu imaginário de André Malraux não é apenas o princípio de um ilustrado populismo da cultura, como abre também o recinto sagrado do artístico à multiplicação das visões” [10]. A visão unilateral de uma elite cultural (transmitida de cima para baixo) é substituída por uma visão múltipla em que todos os intervenientes estão em igualdade. Esta nova visão múltipla assenta no poder de mediação das imagens. Os objectos, descontextualizados “da sua substância cultural inicial (...) convertem-se basicamente, em imagens” [11]. A democratização do acesso à fotografia fez com que esta se tornasse o meio preferencial de apropriação dos objectos culturais e das vivências humanas. No entanto, esta apropriação é apenas ilusoriamente mais pessoal, pois os média encarregam-se de forjar uma certa educação visual através da repetição constante de imagens via televisão, cinema ou publicidade. É a estandardização, sincronização e mundialização do olhar e dos afectos. Estes processos criam e decorrem numa temporalidade nova que Paul Virilio designa por “tempo acidental”, um tempo instantâneo e inabitável criado pela aceleração/compressão do espaço-tempo, ditada pela tecnologia e do qual o turismo é factor acelerador. A sucessão destes fragmentos sucessivos de tempo cria uma noção de transhistória, onde o património é alojado, despojado de qualquer qualidade particular e reduzido a imagens. A sobreestimulação, a simultaneidade, a ubiquidade e complexidade do edifício de superestruturas económico-sócio-culturais que criamos são tais que se tornam de impossível entendimento para o Homem, fazendo-o delegar progressivamente na máquina a interpretação das suas vivências. Esta progressiva falta de capacidade de compreensão intelectual e de ligação emocional efectiva, criada pela associação entre velocidade e quantidade de informação, condena as políticas patrimoniais a aproximarem-se da lógica do Parque Temático. A autenticidade, já pouco distinguível, é perdida em favor do simulacro. O Parque Temático Patrimonial, através de tecnologias de hiper-realidade e de bem oleadas técnicas de psicologia do consumo, consegue servir uma versão de património simplificada mas entendível.
A reincarnação do património enquanto Parque Temático, que já em parte habitamos, é apenas um estádio intermédio antes da dissolução do mesmo. A classificação patrimonial de cada vez mais criações (quer humanas, quer naturais), cada vez mais rápida e em domínios cada vez mais vastos, é disso sintoma. Classificamos e conservamos para arquivamento e memória futura, impelidos simultaneamente pela consciência clara da nossa capacidade de destruição total e da nossa total incapacidade para a deter. O processo de patrimonialização é uma catalogação para a extinção.
O turismo cultural, exploração económica da nostalgia, tenderá também ele a desaparecer à medida que a sociedade vá trocando memória humana pela memória artificial, pedras por bytes, real por virtual, substituindo nostalgia por tecnologia.
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Referências
1. Paul Virilio, “Cyberwar, God and Television: interview with Paul Virilio”.
2.“Como vai ser paga a taxa turística?” in Observador , 11/11/2014.
3. Françoise Choay, Património e Mundialização, p.24.
4. Françoise Choay, Alegoria do Património, p.221.
5. Ibidem, pág. 222.
6. António Ferro, “Turismo, fonte de riqueza e poesia”.
7. Françoise Choay, Alegoria do Património, p.225.
8. Idem, pág. 223.
9. Alexandre Alves Costa, Património e Turismo, Ciclo de Debates, 1999, p.21.
10. Ignasi de Solà-Morales, Territorios, pág.201.
11. Idem, pág.198.
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Cibergrafria:
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Imagem de capa
Turistas sentados numa mesa na Praça de São Marcos, durantes cheias em Veneza, em 2012. Foto: Associated Press.
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Rui Gilman
Porto, 1982. Licenciado em Arquitectura pela Escola Superior Artística do Porto, frequentou o Curso de Estudos Avançados em Património na FAUP, criador e locutor do programa de arquitectura "cidadesINdiziveis" na Radio Manobras.


E pur si muove! Quarteirão das Cardosas \ Icomos



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E pur si muove!*
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ICOMOS
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Do ponto de vista simbólico, esta frase sintetiza a teimosia das provas científicas contra a censura ou a quintessência da rebelião científica contra as convenções de autoridade e dos interesses dos maus poderes em cada circunstância. Conta-se que foi pronunciada por Galileu Galilei para reafirmar o seu conhecimento científico de que a terra gira em volta do sol e não o contrário, como queriam obrigá-lo a reconhecer.
A intervenção no quarteirão das Cardosas (no centro histórico do Porto) o maior exemplo de destruição e demolição intencional em património classificado e protegido ao mais alto nível (património mundial da UNESCO) em Portugal, foi sintomaticamente premiado pela Revista Vida Imobiliária como bom exemplo de Reabilitação. 
Esta intervenção no quarteirão das Cardosas, agora premiada, e reprovável a todos os títulos, foi realizada sob o slogan: “Cardosas, construímos hoje o património do futuro". Um júri constituído quase exclusivamente por pessoas vindas de sectores que não o do património ou o da REABILITAÇÃO, e, portanto, longe de serem especialistas,  entendeu premiar esta intervenção. Existe um pudor e uma ética que nos deve inibir de avaliar publicamente  aquilo para o qual não temos conhecimento específico reconhecido. Existe também uma regra, além das questões éticas e da praxis. Assim funciona a avaliação de mérito em instituições sérias e rigorosas, nacionais e internacionais, respeitadoras do estado do conhecimento e das boas práticas adoptadas internacionalmente relativas às matérias em apreço. Os prémios geralmente destinam-se a premiar o que se distingue positivamente e não o contrário. Estamos pois perante uma inversão perigosa de valores e uma manipulação grave dos conceitos e do léxico da conservação e da reabilitação das cidades históricas, sem reação ou contraditório visível, o que nos confirma talvez que vivemos de novo em tempos sombrios. Os tempos sombrios, definidos por Hannah Arendt  são aqueles em que se perdeu a capacidade de pensar criticamente e de exercer a capacidade de julgar, dando assim lugar à possibilidade da banalidade do mal. O mal na pujança da sua normalidade, o que permite tudo sem um julgamento, como se fosse banal. A incapacidade de estabelecer juízo crítico é um atributo dos tempos sombrios que amesquinham o interesse público, que o corroem por dentro com as faltas de credibilidade, com governos invisíveis, com discursos que não revelam o que são,  degradando a verdade. Tudo isto se passa agora nas nossas cidades históricas  e no património arquitectónico e urbano. Esta incapacidade ou negação objectiva para exercer o julgamento ou o juízo crítico permite que tudo seja reduzido ao discurso promocional imobiliário e tudo vale! Eis a banalidade do mal no domínio da conservação e da reabilitação das cidades históricas. O prémio imobiliário agora atribuído à intervenção realizada no quarteirão das Cardosas, não é um prémio para distinção de boas práticas em reabilitação de cidades históricas porque justamente esta intervenção viola todas, mas todas, as regras e boas práticas nacionais e internacionais reconhecidas pelos especialistas, universidades, e pelo ICOMOS e UNESCO e às quais o Estado português está obrigado por força dos seus compromissos e da legislação em vigor no nosso país. O ICOMOS Portugal promoveu de resto em Outubro de 2013 um encontro nacional sobre este assunto, com uma participação institucional e cívica alargada, e onde se demonstrou que há alternativas a este modelo imobilista, velho e errado, técnica e cientificamente, que se insiste em aplicar na gestão das cidades históricas, o que ainda é mais grave quando elas, as cidades, são um património da humanidade.
E pur si muove: A verdade do conhecimento científico e das boas práticas reconhecidas a nível internacional contra a banalidade do mal dos nossos tempos sombrios.

*«No entanto ela (a Terra) move-se»
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Conselho de Administração do ICOMOS Portugal



NOTA: Imagens da responsabilidade da redacção

Recolhimento do Anjo à Porta do Olival \ Álvaro Domingues



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Recolhimento do Anjo à Porta do Olival
Álvaro Domingues
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Postal illustrado

Nos idos de setecentos existia aqui o Recolhimento do Anjo à Porta do Olival, para protecção de donzellas honradas e pessoas virtuozas de puro e limpo sangue, nas palavras da caridosa testamentária que esta obra pagou. Veio depois o anti-Cristo, os liberais e as guerras, foi-se o Recolhimento em fanicos, veio o mercado do Anjo, a Praça de Lisboa (má escolha de mafarrico que enxofrou este lugar), os fanicos segundos, o Clérigos Shopping e tudo e tudo, os fanicos terceiros e agora o renascimento com nome de Passeio dos Clérigos: o acabamento da cobertura será essencialmente verde dando origem a um jardim suspenso pontuado por árvores em pleno coração da cidade. Como espécie arbórea, é proposta a Oliveira evocando a memória do antigo Campo do Olival. Uma grande parte da área da cobertura é acessível. Em suma, procurou-se uma solução arquitectónica que, com total consciência e respeito pela importância patrimonial da envolvente, procura um diálogo com essa mesma envolvente, com a consciência de também ela própria estar a criar património e a deixar uma marca na história da cidade. Não sei que mais dizer. Em meados de Novembro começa a apanha da azeitona para o azeite que alumeia o Santíssimo e talha a zipela. Onde cuidavam outros que havia violinos, cresceram-me oliveiras no telhado e assim se me dobraram os trabalhos. Que longos e afadigados dias passarei neste olival por sobre esta memória em ruínas.
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Fontes preciosas:
Elisabete M.S. de JESUS (2006), Poder, caridade e honra : o Recolhimento do Anjo do Porto: 1672-1800, Porto (Edição do Autor), http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/19406
Premio Nacional de Reabilitação Urbana da publicação Vida Imobiliária, http://www.premio.vidaimobiliaria.com/node/39


Declaração do Porto, ICOMOS



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Declaração do Porto,
ICOMOS-Portugal, 2013:
um olhar de hoje sobre as dinâmicas da conservação e reabilitação de cidades históricas
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A Carta de Washington (1987) sublinha que a conservação se baseia em valores determinados por consensos globais, esclarecendo que, num núcleo urbano que tenha sido distinguido com o reconhecimento nacional ou mundial, esses valores são “o carácter histórico da cidade e o conjunto dos elementos materiais e espirituais que lhe determinam a imagem, em especial:
a) a forma urbana definida pela malha fundiária e pela rede viária; b) as relações entre edifícios, espaços verdes e espaços livres; c) a forma e o aspecto dos edifícios (interior e exterior) definidos pela sua estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cor e decoração; d) as relações da cidade com o seu ambiente natural ou criado pelo homem; e) as vocações diversas da cidade adquiridas ao longo da sua história.”
Uma adequada conservação do património urbanístico exige a preferência por intervenções mínimas e pouco intrusivas e não por intervenções máximas e profundamente reformuladores, que no fundo não são mais que renovação urbana encoberta. Assim a manutenção é preferível à reparação, a reparação é preferível ao restauro, a substituição tem de ceder lugar à reabilitação (ICOMOS, 2008).
As experiências de salvaguarda de sectores urbanos com valor cultural, demonstra-nos que a eficácia exige que a sua gestão integre outros domínios à escala da cidade, designadamente do âmbito socioeconómico. É a reabilitação integrada (ICOMOS, 1987). Integrada e integradora, jamais exclusiva (no sentido de única e, assim, segregativa).
A centralidade dos núcleos históricos é crucial como agregadora das urbes que cada vez mais se espalham pelo território, mas isso não pode conduzir à sua sobrecarga e renovação de usos que de forma alguma podem comportar, sob o risco de deixarem de ser o que os justifica enquanto tal. As escalas têm de ser compreendidas e as vocações potenciadas. A cidade tradicional sempre viveu da diversidade e complexidade. Por isso a seriação, a normalização, a importação de modelos genéricos só pode produzir a sua condenação enquanto organismo vivo e auto-sustentável.
Um dos elementos essenciais, estruturadores da identidade, da forma, da imagem, dos usos e da vida urbana, é o parcelário. Tão relevante e intrinsecamente relacionada com o parcelário é a interação clara e de fronteira(s) entre os domínios público e privado. A alteração, mesmo que subtil, desses sistemas de relação acaba por fragilizar o organismo urbano, por vezes ultrapassando o limite da perda de urbanidade.
Um quarteirão renovado por trás da sua diversidade de fachadas (o que se tem vindo a designar por fachadismo), fazendo tábua rasa do parcelário de forma a funcionar como um edifício único, um condomínio, um centro comercial, etc. é uma ilha de autismo, um tecido cancerígeno no meio da cidade. Algo que, num processo paradoxalmente autofágico, perde a capacidade de relação com a envolvente. Virar as intervenções para si mesmas é uma perda de oportunidade crucial para a dinamização do tecido urbano, das ruas e praças do seu contexto.
A diversidade de usos aumenta exponencialmente o espectro de atratividade, primeiro para quem ocupa (comerciantes, residentes, hoteleiros, etc.), depois de quem usa, além de assegurar a máxima flexibilidade na otimização dos espaços e expressões arquitectónicas das preexistências a salvaguardar e desenvolver. A adequação dos programas às características morfotipológicas e a transformação cautelosa do edificado preexistente é também a única fórmula para a manutenção da autenticidade que, no fundo, é o principal capital urbano na captação de novos investimentos e públicos, designadamente de âmbito criativo.
No sistema assim criado — o de uma autêntica reabilitação integrada — não são apenas o edificado, as atividades económicas e o tecido social que se revitalizam e regeneram, mas também uma indústria da construção civil e demais atividades conexas de escala local. O que torna viável e simples as operações de manutenção, de adaptação de cunho orgânico, etc. No fundo é de sustentabilidade social, económica, patrimonial que se trata.
Note-se como a intervenção à escala da parcela — é disso que se trata — potencia também a ansiada e mais justa distribuição do trabalho de projeto e aumenta a capacidade de intervenção das entidades que deveriam ter como incumbência a gestão urbanística por critérios claramente estabelecidos. A intervenção de grande escala depende sempre demasiado de vontades particulares e da gestão política, que se deveria preocupar essencialmente com o estabelecimento das políticas globais.
Os seres humanos necessitam de um habitat estável. A rapidez e uma maior amplitude na transformação imposta a um tecido urbano consolidado, afectam de forma decisiva o sentido de pertença e de identidade. Assim nos centros históricos “a rapidez da mudança é um parâmetro que deve ser controlado. Uma excessiva velocidade da mudança pode afectar adversamente a integridade dos valores de uma cidade histórica […] As cidades e conjuntos urbanos históricos correm o risco de se tornarem um produto do consumo turístico de massas, o que pode conduzir à perda da sua autenticidade e valor patrimonial” que justificou a classificação e consequente necessidade de protecção” (ICOMOS, 2011).
Os planos de salvaguarda, reabilitação ou conservação devem orientar-se tanto para a preservação das memórias que interessam (proteção e restauro) como para projetar o seu futuro (reabilitação). Essa conjugação depende da identificação e desenvolvimento dos valores em presença que dão significado e identidade aos sítios. Entre os valores, as pessoas são o expoente máximo, pois são elas a essência do fenómeno urbano. Nos centros históricos não podem ser desenvolvidas políticas e ações de segregação, mas sim de desenvolvimento social (ICOMOS, 1964). “A participação e o envolvimento dos habitantes da cidade são imprescindíveis ao sucesso da salvaguarda.” Se a salvaguarda dos núcleos urbanos históricos diz respeito, em primeiro lugar, aos seus habitantes, estes devem ser envolvidos na sua governança (ICOMOS, 1987).
Os novos elementos (edifícios, corpos, acessórios) têm obviamente de seguir as regras (escala, volumetrias, gramática e linguagem) estabelecidas pelos instrumentos de salvaguarda e gestão, que no fundo devem ser uma interpretação e codificação das preexistências. A introdução de elementos de seriação estranha e os projectos de reprodução-cópia (a invenção de um pretenso “como era e onde estava”), rompem com a estratificação e a diversidade que caracteriza o equilíbrio compositivo das preexistências e falsificam o meio ambiente urbano (ICOMOS, 1964).
Diversidade que se estende á sobreposição harmónica de intervenções de diferentes épocas. Por isso a demolição de elementos autênticos dos edifícios existentes com base em argumentos de clarificação ou autenticidade epocal ou estilística, é também inaceitável (Carta de Veneza, 1964, artº11º), menos ainda quando é usada como forma de catalisar a renovação urbana em extensão.
“A nova arquitetura deve ser consistente com a organização espacial da área histórica e respeitosa da sua morfologia tradicional enquanto, ao mesmo tempo, ser uma expressão válida das tendências da arquitetura do seu tempo e espaço.” (ICOMOS, 2011). Por isso às normativas de salvaguarda cumpre determinar com precisão “quais os edifícios ou grupos de edifícios a serem especialmente protegidos, a conservar em certas condições e, em circunstâncias excepcionais, a serem demolidos” (ICOMOS, 1987). Até por razões de transparência, essas decisões não podem ser decididas no seio de um só organismo, em especial quando este é o promotor, como é o caso das SRU. Exigem não só um processo participado como uma criteriosa avaliação crítica, na qual as histórias do urbanismo, da arquitetura e da construção desempenham um papel crucial. E no meio de tudo isso, conforme o tipo de classificação e proteção, há organismos de tutela a notificar e informar (nacional e internacionalmente).
Aqui no Porto reaprendemos na última década o que já sabíamos de décadas anteriores: que sob todos os aspetos, incluindo o do mero negócio, tem muito mais retorno e só é sustentável a implementação sistemática de uma miríade de acções difusas com tempo e menos dinheiro, envolvendo muito mais arquitetos e promotores comprometidos com as necessidades efetivas dos diversos grupos sociais em presença.
Aqui no Porto reaprendemos como é desastroso dispor de pouco tempo e muito dinheiro, concentrando num só promotor, num só modelo de financiamento, num restrito grupo de projetistas, intervenções de profunda renovação urbana de quarteirões inteiros.
Aqui no Porto reaprendemos tudo isso nas Cardosas, será necessário reaprender na Sé?
O antigo quase sempre encerra mais modernidade que o novo que muitas vezes é mais velho do que a sua idade histórica. Vejamos a cidade que se tem construído nos últimos anos em Portugal; na sua generalidade é mais velha do que as nossas cidades antigas.
Como bem escreveu Maria da Luz Valente Pereira: Reabilitar o urbano é restituir a cidade à estima pública; a reabilitação não pode constituir-se como um regime de excepção mas tem de ser uma prática corrente!
Portugal e o Porto precisam de uma capacidade crítica e de uma visão mais esclarecida para a grande oportunidade da conservação do património urbano. 
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Referências
ICOMOS 1964, Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, [Carta de Veneza]; ICOMOS 1987, Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas [Carta de Washington]; ICOMOS 2008, Guia de gestão de cidades património mundial. Organization of World Heritage Cities (OWHC): Edição online de Outubro de 2008; ICOMOS, 2011, Principes de la Valette pour la sauvegarde et la gestion des villes et ensembles urbains historiques, [Carta de La Valleta].
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Nota

O ICOMOS organizou no dia 25 de Outubro de 2013 o Seminário “Porto Património Mundial: boas práticas em reabilitação urbana”, onde foi apresentada a declaração que aqui se publica.