A resposta pública à epidemia do covid-19 veio evidenciar algumas características estruturais da vida de quem trabalha. Um destes traços é percetível nas imagens das carruagens de comboios que, ao contrário das fotos de ruas de cidades vazias, não assinalam qualquer fuga à normalidade. Nelas é possível reconhecer os «agentes de saúde pública» de terceira linha que nunca deixaram de apanhar transportes para o emprego nas limpezas, nas entregas ou no supermercado, apesar de todos os riscos implicados. Se até aos dias de hoje este tipo de trabalho intensivo e mal remunerado constituía a derradeira forma de sobrevivência, em alternativa ao desemprego, a sua atual função “é subitamente contrariada pelo facto de o trabalho poder efetivamente resultar na morte de um número suficiente de proletários”. [1]
1. Joshua Clover, “66 dias”. Disponível em https://www.revistapunkto.com/2020/06/66-dias-joshua-clover.html, consultado a 19.06.20.
Um segundo elemento é providenciado pelas interligações suportadas pelas novas tecnologias digitais. Através destas, milhares de pessoas passaram a trabalhar a partir de casa, um fenómeno que vem dificultar a identificação da linha de fronteira entre o trabalho e o resto da vida. Embora esta modalidade continue a ser apanágio de um tipo de trabalhador dito «qualificado», uma das principais mudanças verificadas foi o seu alargamento a empresas que estão longe de se enquadrar nesta categoria, como o das centrais de atendimento (call-centre). Neste caso, a deslocalização para o interior das habitações não implicou grandes mudanças na rotina de produção, dadas as amplas possibilidades de monitorização e vigilância de que as empresas podem auferir.
Por fim, na economia dos efeitos provocados pelo encerramento de estabelecimentos comerciais e unidades produtivas, um dos segmentos mais prejudicados foi o do «trabalho independente», arrastando consigo setores profissionais, como o da cultura, onde este tipo de vínculo funciona como o mediador contratual por excelência. Tal fenómeno não só vem colocar em causa a relação entre flexibilidade e aumento de emprego, como a próprio figura proa do neoliberalismo, o empreendedor, cuja iniciativa passou, por estes dias, a concentrar-se na obtenção de subsídios e apoios públicos.
Estas mudanças traduzem, conforme mencionado, componentes estruturais das relações de trabalho. O objetivo deste ensaio é produzir uma reflexão em torno destes elementos, procurando analisar a reconfiguração das formas de trabalho e de emprego ao longo das últimas décadas e questionar até que ponto é que esta reproduz uma lógica subjacente ao modo de produção capitalista.
A imaterialidade do trabalho
Derivado do termo em latim tripalium, um objeto de tortura medieval, a ideia de trabalho remete comummente para uma noção de esforço e de sacrifício. Em fábulas infantis, como a da cigarra e da formiga, ou ditados populares – «mais vale quem muito trabalha do que quem muito madruga» – o trabalho é contraposto a uma esfera de prazer e de hedonismo. Mesmo nas profissões, cujo exercício vocacional passa por uma “entrega apaixonada a uma causa”, [2] a expressão de uma crença acaba por ser enquadrada num código de conduta ao qual se presta juramento.
2. Max Weber, O Político e o Cientista, Lisboa, Editorial Presença, 1973, p.75.
Esta representação do trabalho encontra-se de tal forma cristalizada que o próprio conceito tem sofrido diversas tentativas de abandono. A procura de colaboradores, e não de trabalhadores, pretende vulgarizar a autoimagem da empresa enquanto organização horizontal, baseada na atividade (ou pró-atividade, como surge habitualmente designada) de quem dela faz parte, independentemente da posição ocupada, contrato ou montante salarial.
Esta mudança de valores reflete as próprias transformações do mundo do trabalho. As inovações tecnológicas nas áreas da comunicação e da informação foram responsáveis não só pela redistribuição de efetivos entre os setores da economia, passando o terciário a reunir mais empregos do que o primário e secundário, como também pela mudança na forma de se trabalhar. O conceito de trabalho imaterial veio responder a este fenómeno, surgindo como alternativa a categorias analíticas mais apropriadas à era industrial, como a de trabalho manual e intelectual. Inicialmente proposto pelo filósofo italiano Maurizio Lazzarato, corresponde ao “tipo de trabalho que produz o conteúdo informacional e cultural da mercadoria”. [3] Nele incluem-se, segundo a definição, tanto ideias e conhecimentos de natureza técnica, como atividades culturais e comunicacionais a que, normalmente, não se atribui uma componente laboral. Assim, conforme viria a ser desenvolvido por outros autores, o afeto ou mesmo as próprias relações sociais acabam por compor fatores cruciais no processo produtivo. [4] Daí, o trabalho imaterial não se limitar a enquadrar as atividades nos setores das artes ou nos empregos ditos criativos (design, moda ou arquitetura, por exemplo). Os trabalhadores imateriais não corporificam assim uma classe homogénea, existindo entre eles uma diversidade de rotinas de trabalho, condições contratuais e montantes salariais. Se considerarmos a linguagem como uma das ferramentas por excelência desta nova economia, é possível constatar a sua mobilização entre os operários de uma fábrica que discutem possíveis alterações ao esquema organizativo; nos estabelecimentos comerciais ou serviços de venda por telefone, onde cada termo ou expressão é sujeito a um cálculo preciso, com vista a garantir a compra por parte do cliente; ou numa creche ou lar de terceira idade, em que o seu uso surge interligado com a expressão e gestão de afetividade e cuidado. Mesmo a própria casa já era um local de trabalho muito antes da atual epidemia, cabendo à mãe/esposa a tradicional administração de diferentes áreas da economia doméstica, do ensino à saúde psiquiátrica. [5] É importante realçar que a centralidade deste tipo de fatores não se calcula a partir do número de efetivos, mas sim no lugar que ocupam no sistema de produção de valor, em que uns setores se vêm subordinados a outros, funcionando estes, segundo Yann-Moulier Boutang, como “variáveis pertinentes que comandam a tonalidade do conjunto ou permitem prever as trajetórias de evolução”. [6]
3. Maurizio Lazzarato, “Immaterial Labor” in Paolo Virno & Michael Hardt, Radical Thought in Italy: a Potential Politics, Londres, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1996, 133-147, p.132
4. Antonio Negri & Michael Hardt, Empire, Londres, Harvard University Press, 2001, p.293
5. Silvia Federici, Wages against Housework, Bristol, Power of Women Collective, Falling Wall Press, 1975, p.2.
6. Yann Moulier-Boutang, Le capitalisme cognitif: la nouvelle grande transformation, Paris, Éditions Amsterdam, 2008, p.99
A preponderância de um determinado tipo de elementos imateriais, como a linguagem, nas relações de trabalho conduz a que toda a vida, e não apenas uma sua parte, se veja integrada no seu seio. A convocação do “gosto pela ação, da capacidade de vínculo, da exposição à observação dos demais – todas aquelas coisas que a geração anterior ensaiava numa reunião do partido” traduz um cenário em que, segundo Paolo Virno, “os aspetos distintivos do animal humano, como a posse de linguagem, são subsumidos à produção capitalista”. [7] Tal submissão, no entanto, não é semelhante à realizada nas fábricas de Henry Ford, onde o operário se via reduzido a um apêndice da linha de montagem. À semelhança do poder da palavra, as qualidades imateriais desenvolvem-se a partir de uma partitura [8] comum, construída numa base social e cooperativa. Recuperando o conceito de intelecto geral, retirado dos Grundrisse, de Karl Marx, as atividades de natureza cognitiva (comunicação, imaginação ou criatividade, por exemplo) são encaradas como o fruto de uma potentia humana, ou seja, de uma faculdade genérica e indeterminada de produção do intelecto geral a partir dele próprio. Não se trata de negar a agência do indivíduo, mas de considerar que a sua ação consiste em “modular, articular e fazer variar o intelecto geral”. [9] Por trás da obra de uma grande figura, esconde-se assim o trabalho de outras tantas, muitas delas anónimas. As redes sociais digitais exemplificam, de forma exemplar, como é possível criar um gigante empresarial – uma façanha normalmente atribuída ao cariz genial do seu fundador – a partir de uma atividade eminentemente cooperativa. A partilha de informações, opiniões e/ou o diálogo entre os seus consumidores conseguem originar, sem qualquer remuneração em contrapartida, uma quantidade colossal de dados (big data) posteriormente comercializados.
7. Paolo Virno, La Gramatica de la Multitud, Madrid, Traficante de Sueños, 2005, p.64.
8. Idem, p.64.
9. Idem, p.65.
A inexistência de qualquer tipo de constrangimento externo envolvido neste processo não constitui uma peculiaridade. O trabalho imaterial, de acordo com Negri e Hardt, nasce de uma “cooperação interativa por via de redes linguísticas, comunicativas e afetivas” [10] que funciona à margem de orientações superiores. A relação entre empresa e trabalhadores passa a ser mediada pela renda, dado que o capital permanece exterior ao processo de produção, limitando-se a apropriar os seus frutos. A tendência para se associar o trabalho imaterial a um tipo de empregado qualificado ou empreendedor de sucesso é, de certa maneira, sintoma desta tese. Neste sentido, como interpretar o número crescente de trabalhadores sob contratos precários? Serão estes a expressão de uma auto-valorização dos próprios, livres dos condicionamentos inerentes a um contrato de trabalho «para a vida» ou, pelo contrário, o seu objetivo reside na vinculação do indivíduo a rotinas e metas de produtividade estabelecidas por outrem?
10. Antonio Negri & Michael Hardt, op.cit, p.294.
A precariedade no trabalho
Tornou-se um lugar comum afirmar que a precariedade é um fenómeno recente, elemento estrutural das novas sociedades pós-fordistas. De facto, o surgimento de novas formas de contrato (a termo certo e incerto, de prestação de serviços a «recibo verde» ou de trabalho temporário), nos quais a relação do trabalhador com a empresa perde uma parte da firmeza que antes detinha, é um dos principais sinais da crise do modelo socioeconómico vigente na segunda metade do século XX. A estabilidade providenciada ao nível do emprego constituía um pilar fundamental de um paradigma de cidadania que, após duas guerras mundiais e num contexto de uma terceira que se parecia desenhar, passou a incluir uma dimensão social. Reformas inspiradas nas teses do economista John Maynard Keynes vieram assim incluir algumas normas de regulação do mercado, garantindo uma mínima distribuição de rendimentos e, desta forma, salvando o capitalismo dos capitalistas. Porém, a mão esquerda do Estado, segundo expressão cunhada por Pierre Bourdieu, limitou-se a alcançar um fragmento específico das classes trabalhadoras de alguns países. Negros, mulheres ou (neo)colonizados mantiveram-se no lugar que sempre ocuparam, onde a precariedade se reproduzia por via de “categorizações e hierarquizações sistemáticas segundo o «corpo» e a «cultura»”. [11] As revoltas de maio de 68, estendidas no tempo, no espaço e no âmbito, assinalam a recusa da posição e identidade subalternas atribuídas a esses segmentos. Desta forma, o Estado social corresponde a uma experiência histórica que, além de circunscrita a alguns grupos e países, revelou ser contingente e excecional no tempo longo do capitalismo. O neoliberalismo veio assim recuperar aquela que é a norma da relação social deste modo de produção: a gradual extensão da precariedade aos mais variados segmentos de trabalhadores. [12]
11. Isabell Lorey, State of Insecurity: Government of the Precarious, Londres, Verso, 2015, p.38.
12. Brett Nelison & Ned Rossiter, “Precarity as a Political Concept, or, Fordism as Exception”, Theory, Culture & Society, 2008, Vol.25 (7-8), p.51-52.
Sob o signo da flexibilidade, as reformas de que os códigos de trabalho foram objeto prometiam uma maior liberdade. As novas relações laborais deveriam espelhar as aptidões, os desejos e as expectativas de todos os envolvidos, ou seja, tudo o que a lógica disciplinar do fordismo lhes havia negado. Neste sentido, o neoliberalismo apresenta um cariz contrarrevolucionário, uma vez que parte do seu sucesso se deve a “ter transformado em requisitos profissionais, em ingredientes da produção de mais-valia e fermento do novo ciclo de desenvolvimento capitalista, as inclinações coletivas que, no «movimento de 77», se apresentavam, pelo contrário, como antagonismo intransigente”.[13] Imbuído de um novo espírito, o capitalismo desencadeia “uma rutura com os anteriores modelos de controlo” por via da “assimilação das reivindicações de autonomia e responsabilidade anteriormente encaradas como subversivas”. [14] Mais do que uma doutrina, e conforme revelado por esta lógica de cooptação, o neoliberalismo pretende ir para lá da representação da realidade. O seu objetivo é produzi-la ao ínfimo pormenor, começando no indivíduo e acabando na sociedade. Desta forma, o neoliberalismo não vem apenas defender limites à ingerência do Estado na economia através, por exemplo, de códigos laborais menos intrusivos. A desregulação dos mercados depreende a existência de condições sociais favoráveis a uma economia de mercado, isto é, de uma intervenção pública sobre fatores não necessariamente económicos, mas com um papel determinante nesta esfera: qualificações da população, políticas sociais, sistema de saúde, etc. O objetivo, nas palavras de Michel Foucault, é elevar o estatuto de empresa de simples instituição a “uma certa maneira de se comportar no campo económico”. [15] Sob este ponto de vista, o trabalho é equiparado a um tipo de investimento que requer a mobilização de um “capital-competência”. [16] Ao depender de qualidades humanas, a acumulação de capital passa a envolver o próprio indivíduo na sua totalidade, tanto o seu passado, como as suas ações presentes. O resultado a alcançar é, pois, o do fomento do mercado por via da produção de sujeitos.
13. Paolo Virno, “Do you remember counter-revolution?”, in Nanni Balestrini & Primo Moroni, La horda de oro: 1968-1977, Madrid, Traficante de Sueños, 2006, pp. 641-662.
14. Luc Boltanski & Eve Chiapello, The New Spirit of Capitalism, Londres, Verso, 2007, p.191.
15. Michael Foucault, La Naissance de la Biopolitique, Paris, Gallimard-Seuil, 2004, p.180.
16. Idem, p.286.
Apesar de não se tratar de um objeto estranho ao olhar e à ação empresariais, o modo de fabrico e o conteúdo almejado exigem uma arte de governo distinta, baseada numa política de solicitação do sujeito. A sua mobilização pressupõe outro tipo de dispositivos, capazes de induzir condutas que, não obstante compreenderem uma ação do próprio, seguem grelhas de inteligibilidade e metas de produtividade definidas por outrem. [17]
A precariedade constitui um destes dispositivos, isto é, uma série de tecnologias (contratuais e de gestão empresarial) que visam garantir a adoção de um determinado tipo de traços e atitudes no trabalho e na vida. Assim, a precariedade define-se tanto pela intermitência do emprego, como pelo conjunto de esforços mobilizados com vista a mitigar a relação de incerteza que lhe é inerente, um trabalho de esperança [hope labor], no qual as poucas ou nenhumas compensações – como nos estágios não remunerados – se aceitam face à possibilidade de um dia, talvez, eventualmente, se vir a obter um emprego permanente. Esta lógica torna compreensível a relação entre precariedade e as condições do trabalho e no trabalho.
17. Esta ideia remete para o conceito de governamentalidade, de Michel Foucault. O autor define-a como o produto da interdependência entre tecnologias de poder “que determinam as condutas dos indivíduos e as submetem a determinados fins” e tecnologias do eu “que permitem aos indivíduos efectuarem sob os seus próprios meios ou com a ajuda de outros um determinado número de operações nos seus próprios corpos e almas”. Michel Foucault, “Technologies of the self”, Technologies of the self: a seminar with Michel Foucault, Londres, Tavistock, 1988, 16-49, p.18.
Outrora reservada aos segmentos periféricos das empresas (limpezas, segurança), a precariedade tem sofrido um alargamento a todos os seus setores, dos menos aos mais centrais. A tendência é para uma gradual «igualização por baixo», independentemente do emprego e tanto nas suas condições, como nas suas práticas. A par dos seus efeitos ao nível da diminuição dos rendimentos, a precariedade tem contribuído para uma proletarização do trabalho. As promessas de maior autonomia, inclusive as realizadas por correntes mais críticas, foram frustradas pelo atual quadro tecno-liberal, [18] em que a resposta às crises económico-financeiras mundiais mantém a inspiração neoliberal, conforme visível nos programas de austeridade, e deposita todas as esperanças nas eventuais benesses da inovação tecnológica.
A emergência de um novo modelo de negócio baseado em plataformas digitais constitui, talvez, um dos maiores indícios deste cenário de «crise pós-crise». Neste novo capitalismo de plataforma [19] a relação de emprego como a (cada vez menos) conhecemos deixa, pura e simplesmente, de existir. Apesar de a força de trabalho de empresas como a Uber se encontrar, na sua maioria, sob o estatuto de empreendedor, não lhe sendo aplicada o regime de trabalho por conta de outrem, a alegada prestação de serviços em nada se distingue de um tipo de trabalho à peça. Da definição de preços e tarifas ao escrutínio providenciado por uma gestão algorítmica, articulando a recolha de dados (inclusive da avaliação do cliente) com sistemas de decisão automática ou semiautomática, as características elementares de uma relação laboral são mantidas. As plataformas digitais dedicadas a serviços de freelancers em áreas como arquitetura, engenharia, tradução ou web design, reproduzem as linhas essenciais desta forma de organização. O acesso a um mercado global de trabalho à distância garante às empresas interessadas uma enorme variedade de recursos a selecionar. Nalguns casos, o preço a cobrar pelo trabalho e o seu prazo de entrega chegam a ser objeto de licitação. Além destes critérios, a entidade recrutadora pode considerar outro tipo de informação publicada nos perfis individuais, como avaliações de serviços anteriormente prestados. Por fim, o próprio processo de trabalho é monitorizado através da recolha periódica de imagens captadas pela câmara dos computadores.
Em plataformas digitais ou empresas mais convencionais, a proletarização do trabalhador imaterial não é determinada por uma linha de montagem, mas sim por objetivos de produção cada vez mais estritos e limitados. A condição precária garante que estes sejam cumpridos, impedindo a plena autoria dos projetos que desenvolve e/ou das tarefas que lhe são atribuídas.
18. José Luís Garcia, “Uma tarefa crucial para a economia política: a crítica da inovação tecno-liberal”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 2019, 119, p.171-198.
19. Nick Srnicek, Platform Capitalism, Cambridge, Polity Press, 2017.
Notas finais
Desde os primórdios da revolução industrial que a aplicação da ciência no domínio produtivo tem conduzido a uma crescente separação entre o trabalhador e o produto do seu labor. A organização científica do trabalho veio impor um regime de cálculo, divisão e estandardização das tarefas a realizar pelo operário, transformando-o numa peça inscrita numa mais lata maquinaria industrial. A par dos rendimentos produzidos, o seu saber-fazer passa a ser determinado por uma lógica tecnocientífica e económica que lhe é estranha. A subordinação torna-se real, dado que já não é apenas a propriedade que confronta o proletário, mas o próprio trabalho.
O desenvolvimento tecnológico verificado em finais do século XX, cuja face mais evidente viria a ser a internet, parecia anunciar o reverso da medalha. Mesmo nas grandes unidades de produção automóvel, sob a inspiração do modelo toyotista, o trabalho passa a envolver a monitorização e a discussão. Estas responsabilidades seriam interpretadas como prenúncio da “independência progressiva da força de trabalho […] em face do domínio capitalista”. [20] Nessas fábricas, porém, as linhas de montagem nunca deixaram de existir. O envolvimento dos operários em grupos de discussão, mais do que um signo de autonomia, traduziam a sua crescente integração na empresa. Doravante, não só o corpo, mas também a inteligência e até a afeção, fruto da equiparação simbólica da empresa a uma família, são objetos de cálculo e investimento económico-produtivo. Mesmo nas profissões ditas intelectuais, como jornalista ou académico, a autonomia é mitigada por objetivos de produtividade cada vez mais ambiciosos e austeros. Aos poucos, a relação do autor com a sua obra torna-se semelhante à do proletário com a mercadoria. Num contexto em que o trabalho mobiliza o sujeito na sua plenitude, a subordinação real alarga-se à própria vida. À precariedade do emprego, identificada pela incerteza provocada pelo diminuto vínculo contratual; do trabalho, sentida no pouco espaço concedido a um poder de inscrição, soma-se a precariedade da própria vida, isto é, o perpétuo sentimento de insegurança relativamente às habilitações económicas do seu ser. Perante tal, um dos objetivos mínimos a almejar por qualquer projeto político emancipatório passa por assegurar a circunscrição do trabalho, reduzindo-o a um plano secundário das nossas vidas.
20. Maurizio Lazzarato & Antonio Negri, “Trabalho imaterial e subjectividade”, Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjectividade, Rio de Janeiro, DP&A, 2001, 25-41, p.31.
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José Nuno Matos
Especialista em sociologia do trabalho e dos media. Doutorou-se em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) em 2013, instituição na qual presentemente desenvolve funções enquanto Investigador Auxiliar.
Imagem
1. Frame do filme Modern Times, de Charlie Chaplin, 1937.
Nota de edição
Este texto foi publicado originalmente na Revista Electra nº10, Outono de 2020.
Ficha Técnica
Data de publicação: 14.04.2021
Edição #31 • Primavera 2021 •