Porcos Fascistas. Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo • Tiago Saraiva





Em 1935, Georges Canguilhem escreveu Le fascisme et les paysans (O Fascismo e os Camponeses) para o Comité de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas, o movimento formado como resposta à tentativa de tomada de poder pela direita radical em França um ano antes. [1] Este texto de juventude de um dos mais importantes autores da venerável tradição francesa de epistemologia histórica alertava para os perigos da ideologia agrária fascista, representada em França pelos Comités de Defesa Camponesa e pelo seu chefe, Henri Dorgères. [2] Canguilhem tratava as propostas ruralizantes dos camisas verdes de Dorgères – com o seu lema «D’abord la terre!» («Primeiro a terra!») – como um projecto moderno baseado na simplificação da vida rural e que substituía a multiplicidade de seres vivos que constituíam o campo francês por entidades normalizadas. Denunciava o gesto fascista que pretendia controlar os agricultores e subordiná-los a um Estado centralizado. [3]

Michel Foucault, porventura o mais influente comentador de Canguilhem, sugeriu não se tratar de coincidência que vários epistemólogos tivessem sido activistas antifascistas e pertencido à Resistência Francesa depois da invasão do país por Hitler em 1940. [4] Jean Cavaillès (o filósofo que fundou a rede de resistência Libération), fuzilado pelos nazis em 1944, foi mais tarde recordado pelo seu colega e amigo Canguilhem como um «filósofo e matemático carregado de explosivos». [5] O próprio Canguilhem juntou-se à Libération em 1943 e lutou como guerrilheiro nas montanhas de Auvergne. A continuidade entre o trabalho teórico e a resistência armada contra o fascismo era explicada assim por Foucault: os epistemólogos, através do seu questionamento das formas de conhecimento, entendiam o fascismo como tentativa totalitária de controlar todas as dimensões da vida, um caso extremo de biopolítica. [6] Se Canguilhem discutia a racionalidade recorrendo a conceitos como «o patológico» e «resistência», não podia deixar de estar na linha da frente contra regimes políticos que prometiam eliminar completamente a hipótese do erro, que, na sua perspectiva, era elemento constitutivo da própria possibilidade de existência de vida. O confronto com o fascismo foi, nesse sentido, crucial no estabelecimento de uma tradição epistemológica que questionou modos de conhecer e manipular a vida.

Este livro retoma essa tradição para explorar o fascismo como biopolítica. Partindo da convicção de Canguilhem e Foucault, de que o estudo das formas de controlo da vida é fundamental para entender o fascismo, segue uma via alternativa: [7] investiga o melhoramento de plantas e animais como produção de vida fascista. Estas páginas dão conta de como organismos tecnocientíficos concebidos para sustentar a nação orgânica dos fascistas se tornaram elementos importantes na institucionalização e expansão dos regimes de Mussolini, Salazar e Hitler. Não se trata de substituir os humanos por não-humanos nas explicações sobre as transformações históricas, mas sim de alargar a noção de biopolítica e sugerir que devemos integrar de forma consequente plantas e animais na história, para sermos capazes de compreender o modo como colectivos surgiram e evoluíram. [8] Os colectivos fascistas não dependiam apenas das intervenções sobre a vida humana identificadas por Foucault e os seus discípulos – higiene, reprodução e raça. [9] Também incluíam organismos produzidos por geneticistas e melhoradores que faziam uso das novas práticas das ciências da hereditariedade para produzir plantas e animais, formas de vida tão importantes como os corpos humanos na criação do fascismo.

Nesse sentido, o texto antifascista de Canguilhem encerra mais algumas ideias preciosas. Em primeiro lugar, trata simultaneamente das políticas agrárias dos regimes fascistas em Itália e na Alemanha, sublinhando as continuidades entre esses dois regimes e a ideologia dos camisas verdes franceses. Em segundo – e este talvez seja o ponto mais importante –, inclui na sua análise sobre o fascismo as novas variedades de trigo desenvolvidas para aumentar a sua produtividade à custa das suas propriedades de moagem. Canguilhem estabelece uma relação directa entre o interesse dos grandes agricultores em aumentar a produtividade e o discurso fascista que prometia enraizar a nação no solo pátrio, mas que ignorava a diversidade de situações concretas que constituíam o mundo rural. Este livro inspira-se na atenção dada por Canguilhem a organismos tecnocientíficos específicos para explorar as dinâmicas históricas do fascismo. Na primeira parte, o trigo, as batatas e os porcos guiar-nos-ão pela fase inicial da institucionalização do fascismo em Itália, Portugal e Alemanha. Na segunda, os carneiros, o algodão, o café e a borracha levar-nos-ão até à violenta expansão colonial dos três regimes em África e na Europa de Leste.

Hans-Jörg Rheinberger, ao revisitar o trabalho de Canguilhem, insiste na importância deste para a escrita da história da ciência. [10] O reconhecimento de Canguilhem de que «não poderá haver uma história da verdade que seja exclusivamente história da verdade nem uma história da ciência que seja exclusivamente história da ciência» requer, segundo Rheinberger, um enfoque nas preocupações sociais e tecnológicas de onde as ciências surgem. [11] A análise de Canguilhem sobre a medicina experimental de Claude Bernard é particularmente esclarecedora a esse respeito, dado que evoca «o sonho demiúrgico de todas as sociedades industriais de meados do século xix, período em que as ciências, graças à sua aplicação, se transformaram numa força social». [12] A afirmação, portanto, vai mais além da aceitação de que devemos conhecer os contextos sociais e económicos para compreender a história da ciência. Devemos também reconhecer o poder criativo das ciências experimentais e da sua capacidade para eliminar a distinção entre conhecimento e criação: novas coisas são criadas, mudando esses contextos; as coisas científicas constituem uma «força social» em si mesmas. Foi a isso que Canguilhem aludiu quando relacionou a produção de novas variedades de trigo com o surgimento do fascismo nas zonas rurais francesas. Mas foi apenas nesse texto militante que especificou as maneiras concretas como as coisas científicas e tecnológicas mudaram importantes contextos políticos.

Este livro recupera esse compromisso inicial de Canguilhem e visa compreender como novas variedades de trigo e batata, novas raças de porcos e carneiros artificialmente inseminados contribuíram para a materialização da ideologia fascista. Estes organismos são vistos como «coisas tecnocientíficas densas» que, em contraste com os «objectos científicos pobres» isolados da sociedade, unem a ciência, a tecnologia e a política num continuum. [13] Este não é um estudo sobre o que aconteceu aos cientistas nos regimes fascistas, mas que revela, ao seguir as trajectórias históricas das coisas tecnocientíficas, como as novas formas de vida intervieram na formação e expansão dos regimes fascistas. Não aborda o fascismo como o contexto histórico em que certos projectos científicos ocorreram, preferindo, em vez disso, centrar-se nas maneiras como os organismos tecnocientíficos constituíram o fascismo. [14]

 

O Fascismo como Modernidade Alternativa

A despeito da longa e respeitável lista de estudos históricos que examinaram a relação entre a ciência e o nazismo, não existem na história da ciência trabalhos que tratem da ciência e do fascismo de modo mais geral. [15] Quando a palavra «fascismo» surge em narrativas produzidas por historiadores da ciência, aquela alude a regimes fascistas específicos (o de Hitler, o de Mussolini ou o de Franco) sempre de modo separado. [16] Isso é surpreendente ao considerar a muito produtiva tradição historiográfica que analisa o fascismo como um fenómeno de cariz genérico e como um conceito fundamental da história contemporânea. [17] Como «a doutrina política historicamente mais relevante em todo o mundo criada durante o século xx», o fascismo é, sem dúvida, uma parte essencial da história moderna europeia. [18] Se todas as nações desenvolvidas do mundo com algum grau de democracia política tiveram algum tipo de movimento fascista no período entreguerras, a grande maioria dos países europeus foi mais longe na sua relação com o fascismo. Além dos dois casos canónicos de Itália e Alemanha, em que movimentos fascistas tomaram o poder, não se pode eludir o fascismo ao tratarmos dos regimes políticos de Dolfüss, na Áustria, de Horthy, na Hungria, de Antonescu, na Roménia, de Metaxas, na Grécia, de Pétain, em França, de Franco, em Espanha ou de Salazar, em Portugal. Obviamente, não existe consenso historiográfico sobre a tipologia adequada desses diferentes regimes. Mas, independentemente de os catalogarmos como fascistas ou não, os historiadores concordam que todos tiveram dimensões fascistas significativas, formando aquilo que Roger Griffin descreve como «parafascismo» e Michael Mann chama «regimes fascistas hifenizados»: o «monarco-fascismo» de Metaxas, o «clérico-fascismo» de Dolfüss e por aí adiante. [19] A inclusão do caso português neste livro não só apresenta um contexto nacional que normalmente está ausente da história da ciência e da tecnologia, como também tem a vantagem de incluir o debate neste contexto alargado da experiência europeia com o fascismo. [20] O regime fascista português é exemplar quanto às dinâmicas dos fascismos hifenizados e parafascismos. Além disso, a longevidade da ditadura portuguesa (1926–1974) e a dimensão imperial do regime do Estado Novo contribuem decisivamente para fazer deste um objecto histórico a considerar ao lado da Alemanha nazi e da Itália fascista. Os historiadores da ciência e da tecnologia reclamam amiúde por mais atenção para as suas disciplinas por parte de historiadores de outros campos, mas, na sua maioria, têm estado ausentes dos debates importantes relativos à história do fascismo. Este livro procura superar essa limitação ao considerar as experiências de três países com o fascismo.

Ao estudar ciência e fascismo, devemos considerar o modo como, nas últimas décadas, o estatuto historiográfico do fascismo passou de um hiato temporal em que reinava a irracionalidade para uma parte integral da experiência humana com a modernidade. [21]  Roger Griffin é o autor que mais consistentemente defendeu a necessidade de compreender o fascismo como uma ideologia política modernista que prometia combater os efeitos nocivos da modernidade em que, como foi afirmado por Marx, «tudo o que é sólido se dissolve no ar». [22] Como Griffin faz, levar o discurso fascista a sério possibilita a identificação de um projecto político coerente de renascimento nacional que prometia transcendência e propósito para sociedades sob as alegadas ameaças modernas de individualismo, anomia social e alienação. [23] Ademais, romper com o passado, fabricar novas tradições históricas e imaginar futuros alternativos não eram gestos limitados às vanguardas artísticas modernistas. [24] Os fascistas também merecem ser considerados modernistas pelo radicalismo da sua revolução nacionalista, que prometia ultrapassar tensões e crises do período entreguerras. [25] Enquanto Mussolini insistiu que «todas as experiências políticas do mundo contemporâneo são antiliberais», Salazar, tendo analisado o «grande laboratório do mundo contemporâneo» (isto é, em 1934), previu que «dentro de vinte anos, se não aparecer algum movimento retrógrado na evolução política, já não haverá nenhuma assembleia legislativa na Europa». [26]

Nesta visão do fascismo como modernismo, o fascismo é muito mais do que uma versão radicalizada do conservadorismo; é uma experiência social modernista totalizante com o objectivo de inventar uma nova comunidade nacional. Os fascistas não eram reaccionários que procuravam cristalizar a história; eram radicais que experimentavam com novas conformações políticas. É certo que o passado tinha uma função, mas este era um passado novo e simplificado, inventado pelos propagandistas dos diferentes regimes. Legionários romanos, cavaleiros teutónicos e marinheiros portugueses dos Descobrimentos ganharam vida em exposições, transmissões radiofónicas e filmes. [27] Mas ninguém pensou em adoptar realmente os seus estilos de vida; eles serviam como mitos modernos que uniam o colectivo. Os rituais culturais de massas, as medidas eugénicas, o planeamento urbano, as políticas sociais, a censura, as redes de transporte e o poder militar, tudo isso pode ser visto como elementos de uma grande experiência modernista de regimes fascistas que procuravam formar uma nova comunidade nacional, uma modernidade alternativa ao bolchevismo e à democracia liberal.

É difícil evitar o desconforto ao aplicar a noção de «modernidade alternativa» ao fascismo – sobretudo quando consideramos que muitos dos que a usam fazem-no com intenções emancipatórias, destacando as diversas formas que a modernidade pode assumir no Sul Global, fora das versões ocidentais da teoria da modernização. [28] Porém, como S. N.Eisenstadt demonstrou de modo convincente, ao discutir as características modernas do fundamentalismo religioso, não há necessariamente bondade ligada à «modernidade alternativa» (ele, na verdade, prefere «modernidades múltiplas»). [29] Também não há bondade numa modernidade alternativa fascista e na sua tentativa totalitária de transformar a sociedade – em que a autoridade do ditador substitui a democracia política e aqueles que não são considerados parte da comunidade nacional, seja por razões políticas ou raciais, são privados de cidadania ou mesmo eliminados.

Mas, se considerarmos válida esta noção do fascismo enquanto modernidade alternativa, como aqui se defende, o papel dos historiadores da ciência e da tecnologia na produção de uma melhor compreensão do fenómeno torna-se mais claro. O seu envolvimento com «o pormenor, a ambiguidade e a variedade» das práticas e dos objectos dos cientistas e engenheiros poderá contribuir decisivamente para ultrapassar os limites das narrativas da modernidade baseadas em noções ingénuas de como a ciência e a tecnologia interagiram com a sociedade. [30] Michael Thad Allen e Thomas Zeller já demonstraram as vantagens de olhar para a tecnologia quando descreveram a versão particular de modernidade associada aos nazis. Enquanto Allen, focando-se nas técnicas de gestão do trabalho, substituiu a figura do perpetrador de genocídio enquanto personificação da banalidade do mal, de Hannah Arendt, pela do membro da SS como o burocrata modernista guiado pelo seu entusiasmo pela eficiência e por visões raciais utópicas, Zeller explicou minuciosamente o processo pelo qual as Autobahnen de Hitler fizeram parte do projecto mais amplo de dar forma a uma «comunidade nacional que afirmava pretender eliminar diferenças sociais e distinções de classe e propriedade, e ser racialmente homogénea». [31] Em ambos os casos, o velho paradoxo do modernismo reaccionário, que sugeria uma contradição não resolvida no cerne da ideologia nazi entre o romantismo e a racionalidade técnica, deu lugar a uma imagem de tecnologias que incorporavam uma modernidade alternativa fascista. [32] Mais recentemente, Lino Camprubí deu um importante contributo para esta literatura ao observar a coevolução da engenharia e do regime franquista, e ao demonstrar o modo como a noção fascista de redenção nacional espanhola se materializou por meio de empreendimentos tecnológicos. [33] Além disso, essas abordagens ecoam a importante tendência na história da ciência de superação da tradicional oposição entre romantismo e conhecimento científico, uma tendência que ressalta o modo como as máquinas foram historicamente capazes de materializar utopias sociais românticas, ou (para mantermos o mesmo vocabulário) o modo como os instrumentos científicos e a tecnologia incorporaram a modernidade alternativa romântica. [34]  Na mesma linha, este livro interessa-se pelo mundo fascista alternativo que a ciência produziu, não pela ciência alternativa que o fascismo produziu.

 

Alimentação e Nação Orgânica Fascista

Sem alimentar a nação orgânica não haveria modernidade alternativa fascista. Para os fascistas, a nação merecia todos os sacrifícios e tornava as alianças de classe ou ideologia irrelevantes. [35] Historiadores políticos, sociais e da cultura já explicaram como, no século xix, foram imaginadas comunidades nacionais graças à invenção de uma cultura nacional e à sua disseminação em salas de aula, na imprensa, em exposições mundiais ou nas casernas. [36] Partindo dos diferentes nacionalismos locais formados desse modo, os fascismos desenvolveram uma forma radicalizada de nacionalismo ao aderirem a uma concepção biológica da nação como órgão, corpo ou raça. [37] Os regimes liberais foram acusados de não cumprir os seus deveres para com a nação e de quase a terem extinguido durante a Primeira Guerra Mundial. Assim que o conflito terminou, os antigos combatentes não demoraram a apelar a uma constante mobilização para defender o corpo nacional sob ameaça, eliminando as tradicionais distinções entre reserva e acção, ou entre paz e guerra. [38] E, se nem todos os regimes fascistas foram tão obsessivos como os nazis, com supostas intrusões de raças inferiores, nenhum ignorou o perigo da escassez alimentar. A fome, sentida em toda a Europa durante a Primeira Guerra Mundial, transformou, em grande medida, a nação orgânica numa entidade concreta através da figura do corpo ameaçado. [39] A propaganda nazi haveria de lembrar que os Alemães eram «filhos da batata», tendo visto a sua existência ameaçada durante a Primeira Guerra Mundial, tanto pelas armas do inimigo como pelas pragas de míldio que atacaram a cultura da batata. [40]

Embora o tema da raça tenha tradicionalmente contribuído para estabelecer diferenças entre os regimes fascistas, com a tendência para perceber o nazismo como caso isolado ou extremo, a alimentação, pelo contrário, ilumina as muitas semelhanças das diferentes experiências nacionais com o fascismo. Isto é importante para este livro, dado que a narrativa não só faz comparações entre Itália, Portugal e Alemanha, como também insiste na importância de seguir dinâmicas históricas transnacionais concretas que ligam os três fascismos em estudo.

Na verdade, como se discute na primeira parte, todos os regimes fascistas do período entreguerras imaginaram formas de fazer o solo nacional alimentar o corpo nacional. A alimentação foi fundamental para traduzir a ideologia fascista da nação orgânica em políticas concretas. Segundo os dirigentes fascistas, a independência nacional seria alcançada por meio de campanhas de produção agrícola como a Battaglia del Grano (Batalha do Trigo), a primeira mobilização de massas da Itália fascista, lançada em 1925, reproduzida em Portugal em 1929, e na Alemanha em 1934. O conceito de mobilização total, que no início da década de 1930 foi transferido por Ernst Jünger das trincheiras da Primeira Guerra Mundial para toda a sociedade, tinha a sua mais óbvia manifestação  nestas primeiras grandes campanhas fascistas. [41] Agricultores, industriais químicos, fabricantes de máquinas, geneticistas, locutores de rádio e intelectuais fascistas foram todos mobilizados para alimentar e sustentar a comunidade nacional. O lema marcial da Campanha do Trigo portuguesa proclamava: «O trigo da nossa terra é a fronteira que melhor nos defende!» Os historiadores não têm dado suficiente importância ao facto de uma das primeiras iniciativas dos regimes fascistas ter sido pôr em marcha campanhas para a produção de alimentos e matérias-primas que prometiam a sobrevivência e o crescimento do corpo nacional.

Talvez se julgue que estudar a nação orgânica através da alimentação e não da raça projecta uma versão mais aceitável do fascismo, ignorando os seus aspectos mais violentos. No fim de contas, as questões relacionadas com o abastecimento alimentar, em contraste com a degeneração racial, eram problemas reais que desafiavam todas as sociedades europeias no período entreguerras. Mas a alimentação também foi indissociável de ambições de expansão territorial, com a colonização a ser vista como a única solução a longo prazo para a sobrevivência e o crescimento do corpo nacional num mundo dominado por blocos imperiais. Contra-intuitivamente, a obsessão fascista com a auto-suficiência nacional, expressa em campanhas de produção internas, também naturalizou a necessidade de colonização. No mundo hostil do credo geopolítico fascista, só as nações imperiais podiam ser consideradas verdadeiramente independentes. O imperialismo fascista constitui o contexto histórico da segunda parte do livro.

O fascismo foi responsável pelas últimas grandes conquistas coloniais das nações europeias: enquanto a Itália invadiu a Etiópia e fortaleceu a sua presença na Líbia, a Alemanha transformou a Europa de Leste numa versão continental do «Coração das Trevas». [42] Portugal tinha já salvaguardado o seu Império na Partilha de África do século xix, mas o novo regime fascista intensificou a sua presença colonial. O foco na alimentação e na terra também nos conduzirá até às características violentas do fascismo que justificam muito do interesse académico e popular pelo fenómeno. A visão de Hitler da expansão da Alemanha para Leste foi, desde início, articulada como conquista de novas terras para colonos alemães, convertendo a agricultura num aspecto central da dinâmica que culminaria no Holocausto. [43] Nos casos italiano e português, as raças também foram componentes fundamentais dos respectivos impérios, mesmo se não se encontra aí a decisão explícita de eliminação de uma «raça», como a tomada na infame Conferência de Wannsee pelas autoridades nazis. [44] Mas, à semelhança do exemplo nazi, é também nas colónias que deparamos com as histórias mais sombrias de ambos os regimes. Como veremos na segunda parte, a agricultura está no centro da dinâmica histórica dos genocídios perpetrados em África sob as ditaduras de Mussolini e Salazar.

Há vários livros dedicados às políticas agrárias dos diferentes regimes fascistas. [45] Mas o baixo estatuto cultural da agricultura, associado à percepção errada da sua natureza tradicional, terá porventura inibido os historiadores mais ambiciosos do fascismo de a incluírem nas suas análises. [46] Quem quer tratar de porcos e batatas quando pode examinar filmes, desporto e arquitectura? Os historiadores da agricultura também não deram uma grande ajuda. O estudo ainda canónico da autoria de Gustavo Corni e Horst Gies sobre as políticas alimentares do Terceiro Reich, por exemplo, ensina-nos mais sobre as muitas falhas da burocracia agrária nazi e as suas contínuas falsas promessas do que sobre a importância da alimentação para a institucionalização e a dinâmica do regime. [47] À semelhança de muitos outros autores, Corni e Gies apontam a contradição entre a glorificação fascista da cultura rural e as exigências modernas de produtividade, ignorando que o que estava em causa era um único projecto modernista de invenção de uma nova comunidade nacional orgânica.

Este livro procura superar a percepção comum, nos estudos sobre o fascismo, de que a agricultura constituiu a dimensão atávica dos novos regimes, estando assim em conflito com sensibilidades mais modernas. [48] Em alternativa, propõe-se que a «ideologia da terra», presente desde as primeiras formulações do credo fascista, e sintetizada na máxima nazi «Blut und Boden» («Sangue e Solo») ou no lema «Bisogna ruralizzare l’Italia» («É preciso ruralizar a Itália»), era tão modernista como a mania pela aviação da Itália fascista ou as curvas das novas auto-estradas do Terceiro Reich. [49]



Organismos-Modelos, Organismos Industrializados e Fascismo

Grande parte da narrativa centra-se na natureza modernista do «regresso à terra» fascista. Apresentam-se aqui os organismos que prometeram enraizar Italianos, Portugueses e Alemães nos seus respectivos solos nacionais e sustentá-los nos seus domínios imperiais. Tratou-se de organismos tecnocientíficos – produtos de operações científicas de melhoramento de animais e plantas. O trigo Ardito, com o qual Mussolini combateu a sua Battaglia del Grano, era uma nova variedade desenvolvida por geneticistas italianos que prometiam uma Itália auto-suficiente no que ao trigo diz respeito. Os carneiros que alimentaram os sonhos de Heinrich Himmler de estabelecer colónias alemãs nas estepes da Europa de Leste eram animais com origem no Instituto de Melhoramento Animal da Universidade de Halle. E o mesmo se aplica aos porcos, às batatas, ao algodão e ao café que aparecem ao longo do texto.

Já sabemos como o melhoramento de plantas prosperou como disciplina científica no contexto da economia política nazi e como obteve um generoso apoio do regime de Hitler. [50] Mas, os estudos mais significativos sobre o tema ou rejeitam a relação entre a ideologia «Blut und Boden» e as actividades dos melhoradores e geneticistas, ou consideram os esforços de modernização da agricultura apenas como uma preparação para a guerra. [51] Levar a agricultura tão a sério como os ideólogos fascistas – incluindo os nazis – levaram, e pô-la no centro da experiência modernista de invenção de uma comunidade nacional, em vez de a tomar apenas como um meio para outros fins, torna mais evidente a importância dos novos organismos dos melhoradores. Os organismos tecnocientíficos constituíram a resposta fascista ao grande problema de como deveriam as sociedades europeias (sobre)viver na nova economia global alimentar. [52] Quando os fascistas chegaram ao poder, como veremos mais adiante, melhoradores e geneticistas foram lestos em desenhar os seus organismos, de modo que servissem a ideologia fascista. Mas, antes disso, os organismos tecnocientíficos já haviam convertido sonhos fascistas do corpo nacional a crescer num solo nacional em propostas políticas plausíveis. Os animais e as plantas dos melhoradores não foram apenas ferramentas do fascismo; foram também elementos constitutivos de visões fascistas de modernidades alternativas.

Desde a década de 1990, os historiadores da ciência têm vindo a estudar processos de padronização da vida para compreenderem os processos de produção de conhecimento biológico. A circulação generalizada de organismos-modelos padronizados tem sido identificada com a expansão de comunidades de investigadores constituídas em torno desses organismos. As moscas-das-frutas de Robert Kohler, os ratos de Karen Rader e o vírus do mosaico do tabaco de Angela Creager são agora elementos comuns nas narrativas históricas sobre o desenvolvimento das ciências da vida. [53] As propostas de Hans-Jörg Rheinberger de uma «epistemologia do concreto» têm sido excepcionalmente produtivas, ao revelar de que modo o trabalho em organismos-modelos produz novas coisas epistémicas [54].

Estes organismos-modelos constituem «máquinas geradoras de futuro», cuja manipulação, segundo Rheinberger, «pode levar a uma compreensão da constituição, funcionamento, desenvolvimento ou evolução de todo um grupo de organismos». [55] O trabalho de Rheinberger não só aponta para a relevância desses organismos como objectos cruciais para os historiadores das ciências da vida, mas também para uma forma de escrever história da ciência como narrativas centradas em organismos. A estrutura deste livro, com os seus capítulos organizados em torno de diferentes plantas e animais, deve muito à colecção de organismos-modelos de Rheinberger. [56]

Como a crescente literatura sobre a «história cultural da hereditariedade» eloquentemente demonstrou, pôr o foco nos organismos não implicou um estreitamento das perspectivas dos historiadores, tendo antes conduzido a uma compreensão dos «pré-requisitos económicos e sociais para o surgimento da genética, tais como o início da produção agro-industrial em massa de matérias-primas e produtos alimentares, bem como de medicamentos e vacinas, no final do século xix». [57]  Este conjunto de estudos sugere que a história dos organismos-modelos e a dos organismos industrializados andam a par. [58] Para ilustrar isso mesmo, basta indicar que dois conceitos básicos da genética no início do século xx, a «linha pura» e o «clone», resultaram directamente das práticas dos melhoradores. [59] A «linha pura» será uma presença constante ao longo deste livro, pelo seu papel na crença modernista na capacidade ilimitada dos humanos de manipularem a vida.

No final do século xix, os melhoradores deambulavam por campos agrícolas identificando plantas interessantes, reproduzindo-as através de autofecundação e documentando cuidadosamente as características da descendência. [60] Mediante esta selecção genealógica, os melhoradores produziam aquilo a que Wilhelm Johannsen chamou de «linhas puras» – variedades homozigóticas estáveis seleccionadas em função de alguma característica importante como a resistência a pragas, o amadurecimento precoce ou propriedades de moagem. [61] Depois, combinavam diferentes propriedades, ao cruzar diferentes linhas puras para obter os híbridos que os tornariam famosos no mercado de sementes. Enquanto os químicos demonstravam o seu suposto poder demiúrgico ao combinarem elementos químicos para produzirem novos compostos, os melhoradores prometiam produzir novas coisas vivas ao hibridarem linhas puras. [62]

Um dos assuntos que domina a historiografia do melhoramento é a relação entre ciência e tecnologia. [63] As trocas (intermediadas pelas dinâmicas de mercado) entre cientistas equipados com as ferramentas modernas da genética e melhoradores que baseavam as suas decisões em modos tradicionais de classificação têm sido objecto de atenção na literatura. [64]  Todos os organismos estudados neste livro são animais e plantas domesticadas, e descreve-se minuciosamente como todos eles foram transformados em objectos científicos, sobretudo através do uso alargado de práticas de registo de descendência, essenciais também para a sua industrialização. No caso dos carneiros caracul, a sobreposição entre os aspectos científicos e tecnológicos é talvez mais evidente.

Embora os carneiros tenham sido padronizados para a produção industrial de casacos de pele, os cientistas também os usaram para esclarecer propriedades mais gerais na genética do desenvolvimento: foram simultaneamente organismos industrializados e organismos-modelos. A noção de organismos tecnocientíficos tenta captar todas essas nuances: as tecnologias de produção de organismos que foram modificadas através de práticas científicas, ou tecnologias baseadas na ciência; as práticas científicas que se baseiam em técnicas de melhoramento não-académicas, ou ciências baseadas na tecnologia; e plantas e animais que foram concomitantemente organismos industrializados e organismos-modelos, ou tecnociência.

Este livro dialoga de perto com os historiadores do melhoramento de plantas e animais que estudam a «complexa interacção entre considerações sociais e biológicas na concepção do organismo». [65] Mas, mais uma vez, insiste em que não é suficiente falar de um processo genérico de modernização da produção da vida, porque ao fazê-lo não são consideradas as formas particulares da modernidade assumidas em diferentes contextos históricos. As linhas puras e a hibridação requereram práticas de registo desenvolvidas primeiro por empresas de sementes e depois em estações agronómicas financiadas pelo Estado. A necessidade de um rastreio meticuloso da descendência, fulcral para a nova ciência da hereditariedade, tem sido assim correctamente associada a tendências gerais como a burocratização, a padronização, a industrialização e a comercialização – ou seja, à modernização. [66]  Menos notadas têm sido as modernidades alternativas que as formas de vida padronizadas ajudaram a constituir. Seria um erro tratar como efeitos residuais as contribuições que as criações dos melhoradores deram às relações capitalistas da democracia liberal dos Estados Unidos, às formas de produção comunistas mantidas na Rússia soviética ou, como este livro defende, à sociabilidade fascista em construção por toda a Europa. [67] Se antes se referiram as considerações algo ingénuas sobre a ciência e a tecnologia feitas por historiadores a propósito da condição moderna, aqui aponta-se a necessidade de complicar as noções de modernidade usadas por historiadores da ciência e da tecnologia.

Uma noção persistente que permeia a maioria das narrativas é a de que o surgimento da genética mendeliana no início do século xx andou a par da industrialização e mercantilização de organismos, levando a um maior controlo empresarial ou estatal da vida. [68] Nessas grandes narrativas, os regimes políticos concretos são apenas pormenores de um processo de modernização mais geral. Esta chamada de atenção é particularmente importante num texto sobre o fascismo. Adorno e Horkheimer tinham equiparado liberalismo e fascismo através da sua análise da razão instrumental Dialektik der Aufklärung (Dialéctica do Iluminismo). [69] Na Califórnia, os dois filósofos exilados do regime de Hitler não denunciaram apenas as dimensões totalitárias da tradição do Iluminismo, identificando de modo provocador a Revolução Francesa como precursora do nazismo; também exortaram os intelectuais a descobrir de que maneira o fascismo estava presente no seio das democracias ocidentais, incluindo os Estados Unidos. Desde então, os académicos inspirados pela teoria crítica têm estado justificadamente interessados em denunciar os perigos  associados à biopolítica nas sociedades democráticas. [70]  Mas, não foi porque tanto o regime fascista quanto o democrático liberal se comprometeram com a biopolítica, que se tornaram indistinguíveis. Não foi porque ambos uniformizaram as formas vida, que se tornaram idênticos. [71] A tese deste livro é, na verdade, a oposta: a de que a crescente capacidade de manipular a vida vegetal e animal – a versão alargada da biopolítica – possibilitou a materialização de diferentes projectos políticos, de modernidades alternativas, boas e más, estando o fascismo claramente entre as más. [72]

As diferenças tendem a esbater-se em análises a-históricas que se limitam a apontar a ocorrência de biopolíticas. Temos de estar dispostos a seguir ao pormenor a história dos organismos tecnocientíficos, para compreendermos a diferente natureza dos colectivos sociais por eles formados. Um exemplo significativo, como é especificado neste livro, é o caso dos registos de desempenho animal desenvolvidos por melhoradores, usados na década de 1930 nos Estados Unidos, durante o New Deal, e na Alemanha nazi, para tomar decisões sobre o melhoramento de suínos, cujas práticas levaram a animais mais magros nos Estados Unidos e mais gordos na Alemanha. Os porcos mais magros criados nos Estados Unidos aumentaram o valor de mercado da produção dos suinicultores através do seu teor mais alto de proteína, evitando, dessa forma, a crescente competição com gorduras mais baratas de origem vegetal. Os padrões estado-unidenses mediam o valor dos animais numa sociedade capitalista, salvando os suinicultores da Depressão. Os porcos mais gordos criados na Alemanha deveriam contribuir para os esforços de autarcia nazi, ao reduzirem a necessidade de importar óleos vegetais e ao produzirem gordura de fontes nacionais. Os padrões alemães mediam a contribuição dos animais para a economia nacional. E não se esperava que os porcos cobrissem apenas o défice nacional de gordura da Alemanha; também deveriam ser alimentados com batatas e beterrabas produzidas em solo nacional. Tinham de ser porcos bodenständig (enraizados no solo) – um conceito importante que norteava os zootécnicos no regime nazi, os ideólogos do «Sangue e Solo» e Martin Heidegger. O filósofo afirmava que a capacidade de enraizamento no solo distinguia o Volk alemão dos Judeus, caracterizados pelo seu nomadismo, epítome dos perigos da modernidade. [73]  Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, os novos padrões dos cientistas permitiram que os ideólogos fascistas imaginassem uma próspera comunidade nacional assente na produtividade do solo nacional – uma comunidade bodenständig. Depois de tomarem o poder em 1933, os nazis garantiriam que só os animais e plantas em conformidade com os padrões bodenständig eram reproduzidos, fazendo uso de uma nova estrutura estatal de enormes dimensões, o Grémio Imperial da Alimentação (Reichsnährstand, doravante RNS). Porcos que não contribuíssem para a alimentação do corpo nacional através do solo nacional deveriam ser eliminados, como realmente aconteceu no período nazi. Só porcos gordos e bodenständig eram porcos fascistas.

 

Ontologia Fascista e Estrutura do Livro

Este livro dedica-se mais à importância histórica dos organismos tecnocientíficos para os regimes fascistas, do que às alegadas características específicas das ciências sob o fascismo. Não se trata o fascismo como um contexto histórico predeterminado em que alguns cientistas operaram, mas sim como um contexto histórico para o qual as práticas e os objectos científicos contribuíram; o argumento tem menos que ver com epistemologia fascista do que com ontologia fascista. Essa formulação é uma referência directa à suposta viragem ontológica que recentemente ocorreu nos estudos sobre a ciência e a tecnologia e ao crescente interesse no estudo do ser das entidades (ontologia), em detrimento da investigação sobre os modos de conhecer as entidades (epistemologia). [74] Os estudiosos da ciência e da tecnologia, baseando-se na sua sensibilidade em relação às múltiplas maneiras como a ciência e a tecnologia criam novas coisas, parecem particularmente bem equipados para acompanhar os entrelaçamentos entre os humanos e os não-humanos que produzem novos colectivos. A literatura está agora repleta de objectos de fronteira, assemblagens e bio-sociabilidades, todas assinalando esses entrelaçamentos e as ontologias variáveis, as múltiplas naturezas ou o multiverso assim formado. [75] Em contraste com estudos mais antigos, que demonstraram como contextos sociais predeterminados deram forma a certos objectos científicos, temos uma miríade de investigações ontológicas centradas em práticas de fazer mundo. [76] As observações de Canguilhem mencionadas anteriormente sobre a continuidade entre o saber e a criação sugeriam já a dificuldade em manter uma separação estrita entre a epistemologia e a ontologia; uma sobreposição que caracteriza a obra de Canguilhem e que encontramos em muitas obras que formam o cânone da história da ciência. [77] A própria noção de tecnociência, que aponta para produção de conhecimento mais como um modo de intervenção no real do que de revelação ou descoberta, leva a uma fusão entre a epistemologia e a ontologia. [78] Aqui, a questão é pegar nos argumentos sobre o poder gerador da ciência e da tecnologia e aplicá-los à formação dos colectivos fascistas, incluindo os porcos, os trigos, as batatas e os carneiros entre os seus membros. [79] Estabelece-se um paralelo entre a produção modernista de colectivos orgânicos fascistas e os processos de fazer mundo, que ultimamente temos visto descritos na literatura dos estudos sobre a ciência e a tecnologia. Mobilizações de massas, novas estruturas estatais, comunidades orgânicas e o expansionismo imperial – partes importantes do mundo fascista – foram imaginados e realizados através dos novos organismos dos melhoradores: trigo, batatas, porcos, carneiros, café, borracha e algodão. O estudo do ser desses organismos pode, portanto, ser descrito como um estudo sobre ontologia fascista.

A primeira parte do livro segue uma divisão tradicional por país: Itália, Portugal e Alemanha. A ordem corresponde aproximadamente à sucessão cronológica das tomadas de poder por Mussolini, Salazar e Hitler. Os primeiros quatro capítulos descrevem as interligações do trabalho dos geneticistas com as tentativas de institucionalizar os novos regimes e enraizar as comunidades nacionais nos solos de cada um dos países. Os capítulos 1 e 2 destacam o papel das novas variedades de trigo na Batalha do Trigo em Itália e na Campanha do Trigo em Portugal, as primeiras mobilizações de massas de ambos os regimes. Acompanhando a trajectória do trigo Ardito, a mais famosa criação do geneticista Nazareno Strampelli, é possível não só revelar como o Estado fascista chegou a diferentes partes de Itália, mas também o modo como a primeira campanha de Mussolini viajou até Portugal. Ao examinar o caso português, a narrativa explora como as novas formas uniformizadas de trigo contribuíram para o desenvolvimento de agências estatais corporativas, um tema crítico na nova ordem social fascista: o corporativismo prometeu uma sociedade alicerçada em unidades orgânicas e «solidariedades económicas», em contraste com a alegada artificialidade da ideologia liberal baseada em indivíduos e com a obsessão bolchevique por classes sociais. O corporativismo também está presente nos capítulos 3 e 4, que tratam da Batalha pela Produção nazi e das actividades do RNS, a forma institucional da ideologia «Blut und Boden» e a organização corporativa responsável pela organização do mundo rural, e com poder de decisão sobre todas as questões relacionadas com a produção alimentar alemã. Os organismos tecnocientíficos que estruturam a narrativa são as batatas, no capítulo 3, e os porcos, no capítulo 4. As dinâmicas de investigação no Instituto Biológico Imperial para a Agricultura e Silvicultura (Biologische Reichsanstalt für Land- und Forstwirtschaft, doravante BRA), que tratavam com diferentes pragas que afectavam os campos de batata alemães (verrugose, escaravelho-da-batateira, míldio, vírus), são postas em relação com a crescente infra-estrutura do RNS, num caso exemplar de coprodução da ciência e do Estado: cada novo sistema experimental no BRA correspondia a uma expansão do poder e do alcance da burocracia do RNS. Quanto aos porcos, tema do capítulo 4, o desenvolvimento de registos de desempenho por zootécnicos permite-nos acompanhar a sua transformação em organismos capazes de materializar o fascismo, através de padrões que mediam o seu enraizamento no solo (Bodenständigkeit) – um conceito importante na ideologia nazi.

A segunda parte do livro aborda as ambições expansionistas dos três regimes, incluindo a brutal invasão da Europa de Leste pela Alemanha, numa continuidade com a história colonial europeia. O capítulo 5 analisa o café, a borracha e o algodão, três elementos típicos das histórias sobre plantações coloniais, e investiga a ocupação italiana da Etiópia, o domínio imperial alemão na Europa de Leste e o colonialismo português no Norte de Moçambique. O regime das plantações, cuja base material era formada pelos artefactos dos melhoradores, fez um uso generalizado de trabalho forçado para servir a economia imperial. Sem ignorar os diferentes níveis de violência desencadeados pelos três fascismos, o texto sugere que podemos ter uma visão significativa da história do fascismo, se tivermos em consideração o conjunto dos impérios. Leva-se a sério a intenção de Heinrich Himmler de fazer de Auschwitz a Estação Agronómica para a colonização do Leste, e compara-se o trabalho ali realizado sobre um substituto da borracha com os realizados no Centro de Investigação Científica Algodoeira em Moçambique e nas estações experimentais de café italianas na Etiópia.

O capítulo 6 é o mais original no que à metodologia diz respeito, pois recorre a um único organismo tecnocientífico – o carneiro caraculo – e acompanha o seu papel na colonização de zonas de fronteira para os três impérios fascistas. A capacidade desses carneiros se reproduzirem sob condições de semiaridez, e o seu alto valor no mercado de peles, converteram-no numa «espécie de companhia» perfeita para a expansão imperial. O Instituto de Melhoramento Animal da Universidade de Halle é identificado como um centro de circulação de organismos tecnocientíficos, estabelecendo os padrões e produzindo os carneiros que não só seriam usados nas fazendas dos colonos brancos em possessões alemãs na Europa de Leste, como também em colónias italianas na Líbia e na Etiópia e na colonização portuguesa do Sudoeste angolano. As várias estações experimentais de carneiros caraculos localizadas em zonas de fronteira são tratadas como postos avançados coloniais e revelam as ligações entre o melhoramento ovino e os genocídios perpetrados pelos três regimes.

É, certamente, possível produzir outras ontologias fascistas. Eis outra: cavalos, ratos, cães, pássaros, renas e moscas. Esta foi a ontologia ideada por Curzio Malaparte em Kaputt (1944), para descrever a fome, a chacina e a devastação que se propagou por toda a Europa de Leste na Segunda Guerra Mundial. [80] O provocador escritor, que foi um entusiasta do movimento fascista e participou na Marcha sobre Roma de Mussolini em 1922, e que, depois de perder as graças do Duce e de ter sido enviado para um exílio interno de 1933 a 1938, encontrou nos animais não-humanos uma fórmula literária eficaz de tratar a realidade apocalíptica desencadeada pela expansão imperial nazi. As histórias de animais de Malaparte permitem falar de guetos judeus, execuções em série, cenários de batalha, cortes luxuosas de dirigentes nazis e bombardeamentos de cidades, num texto que mistura jornalismo, história e ficção. Para os seus muitos leitores, o estilo cínico e as composições fantásticas – a camada de gelo do lago Ladoga no Noroeste da Rússia, de onde emergiam centenas de cabeças de cavalos mortos; os cães «anticarro blindado» que aterrorizavam as divisões Panzer alemãs nas estepes da Ucrânia; as moscas de Nápoles que medravam com o calor e os cadáveres multiplicados por uma guerra interminável – captavam o escândalo do Terceiro Reich com uma precisão inacessível a escritores mais convencionais. E foi através dos animais (ratos) que Malaparte produziu um dos primeiros relatos sobre o carácter sistemático da eliminação dos Judeus por toda a Europa. [81]

Imitando o gesto de Malaparte, a narrativa deste livro gira em torno de organismos com a capacidade de exemplificar diferentes dimensões do fascismo. A opção por animais e plantas tecnocientíficos foi determinada pela sua importância histórica na constituição de uma modernidade alternativa fascista, pela sua capacidade de materializar o fascismo. O bestiário aqui reunido combina narrativas centradas em organismos, de historiadores e estudiosos da ciência e da tecnologia, com preocupações mais gerais de historiadores políticos e culturais acerca da natureza histórica do fascismo.

 

 

Notas do texto

1. Georges Canguilhem, Il fascismo e i contadini, Il Mulino, Bolonha, 2007 (primeira edição francesa, 1935). O Comité, entre os seus seis mil membros, contava com figuras ilustres, como o filósofo Alain e o médico Paul Langevin. Sobre o Comité, ver Nicole Racine-Furlaud, «Le Comité de Vigilance des intellectuels antifascistes (1934– 1939): Antifascisme et pacifisme», Le Mouvement Social, n.º 101, 1977, pp. 87–113. Para uma visão geral das actividades antifascistas em França no período entreguerras, ver Anson Rabinbach, «Paris, capital of anti-fascism», in The Modernist Imagination. Intellectual History and Critical Theory: Essays in Honor of Martin Jay, eds. Warren Breckman, Peter E. Gordon, A. Dirk Moses, Samuel Moyn e Elliot Neaman, Berghahn Books, Nova Iorque e Oxford, 2009.

2. Robert O. Paxton, French Peasant Fascism: Henry Dorgères’ Greenshirts and the Crises of French Agriculture, 1929–1939, Oxford University Press, Nova Iorque e Oxford, 1997.

3. Canguilhem, Il fascismo…, p. 129 (n. 1 supra).

4. Ver a introdução de Foucault ao livro de Georges Canguilhem The Normal and the Pathological, Zone Books, Nova Iorque, 1989 (primeira edição francesa, 1978).

5. Georges Canguilhem, Vie et mort de Jean Cavaillès, Allia, Paris, 1996; Roger Pol-Droit, La Compagnie des Philosophes, Odile Jacob, Paris, 1998.

6. A palavra «biopolítica» foi usada pela primeira vez por Michel Foucault para distinguir as formas de poder dos Estados liberais das formas de poder das monarquias no Antigo Regime nas suas aulas no Collège de France em 1976. Ver Foucault, Society Must Be Defended: Lectures at the Collège de France, 1975–76, Penguin, Londres, 2003 [É Preciso Defender a Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976), Livros do Brasil, Carnaxide, 2006]. Paul Rabinow e Nikolas Rose escrevem: «Embora Foucault seja algo impreciso no uso que faz dos termos, no campo do biopoder, podemos usar o termo “biopolítica” para abarcar todas as estratégias e disputas específicas sobre as problematizações da vitalidade, morbidade e mortalidade humana colectiva; sobre as formas de conhecimento, os regimes de autoridade e as práticas de intervenção desejáveis, legítimas e eficazes.» Rabinow e Rose, «Biopower Today», BioSocieties, vol. 1, n.º 2, 2006, pp. 195–217. A análise de Rabinow e Rose é um importante correctivo para a compreensão dos campos de concentração nazis como exemplo de biopolítica, tal como foi examinada por Giorgio Agamben no seu influente livro Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life, Stanford University Press, Stanford, 1998 [O Poder Soberano e a Vida Nua: Homo Sacer, Presença, Lisboa, 1998].

7. Para uma visão geral das políticas raciais e eugénicas do Estado nazi, ver Michael Burleigh e Wolfgang Wippermann, The Racial State: Germany 1933–1945, Cambridge University Press, Cambridge, 1991; Edouard Conte e Cornelia Essner, La Quête de la Race: Une anthropologie du nazisme, Hachette, Paris, 1995 [A Demanda da Raça: Uma Antropologia do Nazismo, Piaget, Lisboa, 1998]; Peter Weingart, Jürgen Kroll e Kurt Bayertz, Rasse, Blut und Gene: Geschichte der Eugenik und Rassenhygiene in Deutschland, Suhrkamp, Frankfurt, 1988; Paul Weindling, Health, Race and German Politics between National Unification and Nazism, 1870–1945, Cambridge University Press, Cambridge, Nova Iorque e Melbourne, 1993; Sheila Faith Weiss, The Nazi Symbiosis: Human Genetics and Politics in the Third Reich, University of Chicago Press, Chicago e Londres, 2010. Sobre a política demográfica do regime fascista italiano, ver Francesco Cassata, Building the New Man: Eugenics, Racial Science, and Genetics in Twentieth-Century Italy, Central European University Press, Budapeste, 2011; Victoria Women: Italy, 1922–1945, University of California Press, Berkeley, Los Angeles e Londres, 1992; David Horn, Social Bodies: Science, Reproduction  Italian Modernity, Princeton University Press, Princeton (Nova Jérsia), 1994.

8. Há muito que os historiadores do ambiente demonstraram as vantagens de pôr os animais em primeiro plano nas narrativas históricas. Ver Harriet Ritvo, The Animal Estate: The English and Other Creatures in the Victorian Age, Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts), 1987; Harriet Ritvo, Noble Cows and Hybrid Zebras: Essays on Animals and History, University of Virginia Press, Charlottesville e Londres, 2010; Elinor Melville, A Plague of Sheep: Environmental Consequences of the Conquest of Mexico, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 1997; Virginia DeJohn Anderson, Creatures of Empire: How Domestic Animals Transformed Early America, Oxford University Press, Oxford e Nova Iorque, 2006; John Robert McNeill, Mosquito Empires: Ecology and War in the Greater Caribbean, 1620–1914, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2010; Alfred W. Crosby, Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900–1900, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 1986; Ann Norton Greene, Horses at Work: Harnessing Power in Industrial America, Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts) e Londres, 2008. Os historiadores da tecnologia trouxeram tanto os animais como as plantas para a sua disciplina no importante livro Industrializing Organisms: Presenting Evolutionary History, eds. Susan R. Schrepfer e Philip Scranton, Routledge, Nova Iorque e Londres, 2004. No que se refere aos estudos sobre ciência e tecnologia, o trabalho de Donna Haraway é referência obrigatória; ver Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature, Free Association Books, Londres, 1991; Modest_witness@ SecondMillenium.FemaleMan@ Meets_OncoMouse™: Feminism and Technoscience, Routledge, Nova Iorque, 1997; When Species Meet, University of Minnesota Press, Minneapolis, 2007. Ver também, na mesma linha, Sarah Franklin, Dolly Mixtures: The Remaking of Genealogy, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte), 2007. Para um argumento elaborado sobre o motivo que deve levar os historiadores a não dar grande importância à divisão entre animais e plantas, ver Edmund Russell, Evolutionary History: Uniting History and Biology to Understand Life on Earth, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2011. Este é, obviamente, um ponto muito controverso para o campo académico dos estudos sobre animais. Para uma análise mais geral sobre este campo, ver Kari Weil, Thinking Animals: Why Animal Studies Now?, Columbia University Press, Nova Iorque, 2012; Aaron Gross e Anne Vallely, eds., Animals and the Human Imagination: A Companion to Animal Studies, Columbia University Press, Nova Iorque, 2012; Tim Ingold, ed., What Is an Animal? World Archaeological Congress: Selected Papers, Routledge, Londres, 1988.

9. Michel Foucault, The Birth of Biopolitics: Lectures at the Collège de France, 1978– 1979, ed. M. Senellart, Picador, Nova Iorque, 2008, p. 317 [O Nascimento da Biopolítica, Edições 70, Lisboa, 2010, p. 391].

10. Hans-Jörg Rheinberger, An Epistemology of the Concrete: Twentieth-Century Histories of Life, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte), 2010.

11. Idem, p. 47.

12. Idem, pp. 47–48.

13. Na conclusão, analiso mais pormenorizadamente as implicações da utilização da noção de «coisas» em vez de «objectos» na história da ciência. Ver Ken Alder, «Introduction to Focus Section on Thick Things», Isis, vol. 98, n.º 1, 2007, pp. 80–83; Bruno Latour, «From Realpolitik to Dingpolitik», in Making Things Public: Atmospheres of Democracy, eds. Bruno Latour e Peter Weibel, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 2005; Lorraine Daston, ed., Things That Talk: Object Lessons from Art and Science, Zone Books, Nova Iorque, 2004; Hans-Jörg Rheinberger, Toward a History of Epistemic Things: Synthesizing Proteins in the Test Tube, Stanford University Press, Stanford, 1997.

14. A abordagem que considera a tecnologia e a ciência como constitutivas da esfera política deve muito a Bruno Latour. Entre muitas referências possíveis, ver Latour, «From Realpolitik…» (n. 13 supra); Bruno Latour, Politiques de la nature: comment faire entrer les sciences en démocratie, La Découverte, Paris, 1999. A noção de co-produção de ciência e política realça as mesmas dinâmicas históricas. Ver Steven Shapin e Simon Schaffer, Leviathan and the Air-Pump: Hobbes, Boyle, and the Experimental Life, Princeton University Press, Princeton (Nova Jérsia), 1985; Sheila Jasanoff, ed., States of Knowledge: The Co-Production of Science and the Social Order, Routledge, Londres e Nova Iorque, 2004. Para uma abordagem exemplar da relação entre ciência, tecnologia e política, ver Ken Alder, Engineering the Revolution: Arms and Enlightenment in France, 1763–1815, Princeton University Press, Princeton, 1997; Gabrielle Hecht, The Radiance of France: Nuclear Power and National Identity after World War II, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 1998; Timothy Mitchell, Rule of Experts: Egypt, Techno-Politics, Modernity, University of California Press, Berkeley, 2002; Soraya de Chadarevian, Designs for Life: Molecular Biology after World War II, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2002; David Edgerton, Warfare State: Britain, 1920–1970, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2005; John Krige, American Hegemony and them Postwar Reconstruction of Science in Europe, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 2006.

15. Para uma primeira tentativa colectiva de escrita dessa história, ver Tiago Saraiva e M. Norton Wise, «Autarky/Autarchy: Genetics, Food Production, and the Building of Fascism», Historical Studies in the Natural Sciences, vol. 40, n.º 4, 2010, pp. 419–428.

16. Para uma crítica da literatura sobre a ciência e o nazismo dividida em três principais categorias — investigação higiénico-racial e biomédica, autarcia e militarização —, ver Susanne Heim, Carola Sachse e Mark Walker, «The Kaiser Wilhelm Society under National Socialism», in The Kaiser Wilhelm Society under National Socialism, eds. Susanne Heim, Carola Sachse e Mark Walker, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2009. Esse livro analisa os resultados do programa de investigação da Sociedade Max Planck sobre a História da Sociedade Kaiser Wilhelm na Época Nacional-Socialista, que significou uma completa renovação da historiografia da ciência e do nazismo. Outros livros anteriores influentes foram Politics and Science in Wartime: Comparative International Perspectives on the Kaiser Wilhelm Institute, eds. Carola Sachse e Mark Walker, University of Chicago Press, Chicago, Osiris Series, vol. 20, 2005; Monika Renneberg e Mark Walker, eds., Science, Technology, and National Socialism, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 1993; Margit Szöllösi-Janze, ed., Science in the Third Reich, Berg, Oxford, 2001; Christoph Meinel e Peter Voswinckel, eds., Medizin, Naturwissenschaft, Technik und Nationalsozialismus, Verlag für Geschichte der Naturwissenschaften und der Technik, Estugarda, 1994; Peter Lundgreen, ed., Wissenschaft im Dritten Reich, Suhrkamp, Frankfurt, 1985; Herbert Mehrtens e Steffen Richter, eds., Naturwissenschaft, Technik und NS-Ideologie: Beitrage zur Wissenschaftsgschichte des Dritten Reichs, Suhrkamp, Frankfurt, 1980. Ver também Ute Deichmann, Biologists under Hitler, Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts) e Londres, 1996; Kristie Macrakis, Surviving the Swastika: Scientific Research in Nazi Germany, Oxford University Press, Nova Iorque, 1993; Mark Walker, Nazi Science: Myth, Truth, and the German Atomic Bomb, Plenum Press, Nova Iorque, 1995; Mitchell G. Ash, «Scientific Changes in Germany 1933, 1945, 1990: Toward a Comparison», Minerva, vol. 37, n.º 4, 1999, pp. 329– 354. Sobre a ciência e o fascismo em Itália, ver Roberto Maiocchi, Scienza e fascismo, Carocci, Roma, 2004; Roberto Maiocchi, Gli scienziati del Duce: Il ruolo dei ricercatori e del CNR nella politica autarchica del fascismo, Carocci, Roma, 2003; Francesco Cassata, Il fascismo razionale: Corrado Gini fra scienza e politica, Carocci, Roma, 2006; Claudio Pogliano e Francesco Cassata, Scienze e Cultura dell’Italia Unita, Storia d’Italia, Annali, vol. xxvi, Einaudi, Turim, 2011; Antonio Casella et al., Una difficile modernità: Tradizioni di ricerca e comunitá scientifiche in Italia, 1890–1940, Università degli Studi di Pavia, Pavia, 2000; Raffaella Simili, ed., Ricerca e istituzioni scientifiche in Italia, Laterza, Roma, 1998; Giovanni Paoloni, ed., Vito Volterra e il suo tempo (1860– 1940), Bardi, Roma, 1990; Raffaella Simili e Giovanni Paoloni, eds., Per una storia del Consiglio Nazionale delle Ricerche, Laterza, Roma, 2001; Ruth Ben-Ghiat, «Italian universities under fascism», in Universities under  Dictatorship, eds. John Connelly e Michael Grüttner, Pennsylvania State University Press, University Park, 2013. Sobre o contexto português, ver Tiago Saraiva, «Laboratories and Landscapes: The Fascist New State and the Colonization of Portugal and Mozambique», Journal of History of Science and Technology, vol. 3, 2009, pp. 35–61; Júlia Gaspar, Maria do Mar Gago e Ana Simões, «Scientific Life under the Portuguese Dictatorial Regime (1929–1954)», Journal of History of Science and Technology, vol. 3, 2009, pp. 74–89; Júlia Gaspar e Ana Simões, «Physics on the Periphery: A Research School at the University of Lisbon under Salazar’s Dictatorship», Historical Studies in the Natural Sciences, vol. 41, n.º 3, 2011, pp. 303–343; Maria do Mar Gago, The Emergence of Genetics in Portugal: J. A. Serra at the Crossroads of Politics and Biological Communities (1936–1952), dissertação de mestrado, Universidade de Lisboa, 2009. A ciência no regime de Franco, em Espanha, tem recebido cada vez mais atenção, nomeadamente num livro importante de Lino Camprubí, Engineers and the Making of the Francoist Regime, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 2014.

17. Ver Stuart Woolf, ed., The Nature of Fascism, Random House, Nova Iorque, 1969; Roger Griffin, The Nature of Fascism, Routledge, Londres e Nova Iorque, 1991; Roger Eatwell, Fascism: A History, Chatto & Windus, Londres, 1995; George L. Mosse, The Fascist Revolution: Toward a General Theory of Fascism, Howard Fertig, Nova Iorque, 1999; Michael Mann, Fascists, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2004 [Fascistas, Edições 70, Lisboa, 2011]; Robert Paxton, The Anatomy of Fascism, Knopf, Nova Iorque, 2004; Wolfgang Schieder, Faschistische Diktaturen: Studien zu Italien und Deutschland, Wallstein Gottingen, 2008; Stanley G. Payne, A History of Fascism, 1914–1945, University of Wisconsin Press, Madison, 1996; Mark Mazower, Dark Continent: Europe’s Twentieth Century, Vintage Books, Nova Iorque, 1988 [O Continente das Trevas: O Século XX na Europa, Edições 70, Lisboa, 2014]; Aristotle Kallis, Genocide and Fascism: The Eliminationist Drive in Fascist Europe, Routledge, Londres, 2008; António Costa Pinto e Aristotle Kallis, eds., Rethinking Fascism and Dictatorship in Europe, Palgrave Macmillan, Basingstoke, 2014; Eugene Weber, Varieties of Fascism: Doctrines of Revolution in the Twentieth Century, Van Nostrand, Princeton (Nova Jérsia),1964.

18. Mann, Fascists, p. 1 (n. 17 supra). Mann acrescenta o ambientalismo como a outra ideologia do século xx a ter em consideração. Outros autores afirmam também que devemos ter em conta experiências fascistas em contextos não-europeus, como na Argentina, África do Sul, Bolívia, Brasil e Japão. Ver Payne, A History… (n. 17 supra); Stein Ugelvik Larsen, Fascism Outside Europe: The European Impulse Against Domestic Conditions in the Diffusion of Global Fascism, Social Science Monographs, Boulder, 2001. Sobre os limites de uma abordagem eurocêntrica do fascismo, ver Federico Finchelstein, Transatlantic Fascism: Ideology, Violence, and the Sacred in Argentina and Italy, 1919–1945, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte) e Londres, 2010.

19. Mann, Fascists, p. 46 (n. 17 supra). Aristotle Kallis («Fascism, Para-Fascism and Fascistization: On the Similarities of Three Conceptual Categories», European History Quarterly, vol. 33, n.º 2, 2003, pp. 219–249) prefere pôr de parte essas qualificações e falar antes de um único fenómeno de «fascização», que procedia ou da incorporação de movimentos fascistas no regime autoritário (Hungria, Espanha), ou da adopção de certos elementos do fascismo, como grandes organizações juvenis, de mulheres e de lazer, ao mesmo tempo que mantinham os movimentos revolucionários fascistas a distância (Portugal). A despeito da deselegância do termo «fasciszação», o conceito é muito produtivo ao pôr num continuum regimes ditatoriais que foram «fasciszados» desde cima por elites tradicionais e desde baixo por movimentos fascistas.

20. A natureza do regime de Salazar é um ponto controverso na literatura sobre o fascismo. Para aqueles que destacam a dimensão fascista do Estado Novo português, ver Manuel de Lucena, A Evolução do Sistema Corporativo Português: O Salazarismo, vol. 1, Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1976; Manuel de Lucena, «Corporatisme au Portugal, 1933–1974: Essai sur la nature et l’ambiguïté du régime salazariste», in Les Expériences Corporatives dans l’Aire Latine, eds. Didier Musiedlak, Peter Lang, Berna, Berlim e Bruxelas, 2010; Luís Reis Torgal, Estados Novos, Estado Novo, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009; Fernando Rosas, O Estado Novo nos Anos Trinta: Elementos para o Estudo da Natureza Económica e Social do Salazarismo (1928–1938), Editorial Estampa, Lisboa, 1996; Jorge Pais de Sousa, O Fascismo Catedrático de Salazar: Das Origens da I Guerra Mundial à Intervenção Militar na Guerra Civil de Espanha, 1914–1939, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2011; Manuel Loff, «O Nosso Século é Fascista!»: O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936–1945), Campo Das Letras, Porto, 2008; Manuel Villaverde Cabral, «Portuguese Fascism in Comparative Perspective», conferência apresentada no 22.º Congresso Mundial de Ciência Política, Rio de Janeiro, 1982. Na minha opinião, estes textos são muito convincentes ao incluírem o regime português entre os fascismos europeus. O historiador Fernando Rosas («O Salazarismo e o Homem Novo: Ensaio sobre o Estado Novo e a Questão do Totalitarismo», Análise Social, vol. 35, 2001, pp. 1031–1054) vai mais longe e inclui-o não só no fascismo europeu, mas também na família dos regimes totalitários. Para uma posição contrária, principalmente baseada na ausência de um «verdadeiro» movimento fascista como centro do regime, como em Itália e na Alemanha, ver António Costa Pinto, Salazar’s Dictatorship and European Fascism: Problems of Interpretation, SSM/Columbia University Press, Nova Iorque, 2005; Manuel Braga da Cruz, O Estado Novo e a Igreja Católica, Editorial Bizâncio, Lisboa, 1998.

21. Ver Roger Griffin, Modernism and Fascism: The Sense of a Beginning under Mussolini and Hitler, Palgrave Macmillan, Nova Iorque, 2007; Emilio Gentile, The Struggle for Modernity: Nationalism, Futurism, and Fascism, Praeger, Westport, 2003. Por certo, uma tradição académica anterior — a teoria crítica, decorrente do livro Dialectic of Enlightenment: Philosophical Fragments (Stanford University Press, Stanford, 2002), de Max Horkheimer e Theodor Adorno — equiparou o fascismo e a modernidade. Zygmunt Bauman é provavelmente o mais bem-sucedido entre os académicos actuais a defender a ideia de que o Holocausto é uma dimensão intrínseca à modernidade; ver o seu livro Modernity and the Holocaust, Cornell University Press, Ithaca (Nova Iorque), 1989. Para uma crítica da abordagem demasiado genérica ao nazismo e da teoria crítica em geral, ver Peter Fritzsche, «Nazi Modern», Modernism/Modernity, vol. 3, n.º 1, 1996, pp. 1–22.

22. Ver Roger Griffin, «Modernity, Modernism, and Fascism: A “Mazeway Resynthesis”», Modernism/Modernity, vol. 15, n.º 1, 2008, pp. 9–24.

23. Para compreendermos o fascismo historicamente, George L. Mosse provocatoriamente sugere em The Fascist Revolution… (n. 17 supra) que precisamos de «empatia metodológica».

24. Fritzsche, «Nazi Modern» (n. 21 supra). Porque o fascismo se baseia em grande parte numa interpretação radicalizada do nacionalismo, a compreensão do nacionalismo como um fenómeno moderno é crucial para captar da melhor maneira a natureza do fenómeno. A perspectiva de Benedict Anderson de que as nações são modernas comunidades imaginadas em Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism (Verso, Londres, 1983) [Comunidades Imaginadas: Reflexões Sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo, Edições 70, Lisboa, 2005] é particularmente útil a este respeito. Sobre o nacionalismo como fenómeno moderno, ver nota 36.

25. Sobre a natureza revolucionária geral do fascismo, ver, por exemplo, Mosse, The Fascist Revolution…(n. 17 supra); Mann, Fascists, p. 17 (n. 17 supra). Incluo o caso português entre os regimes fascistas, sublinhando, assim, a sua natureza revolucionária modernista. O próprio ditador português, Oliveira Salazar, confirmou o veredicto, em 1938, na sua síntese dos feitos do regime, mencionando a «revolução económico-social» que ocorrera no país, diferente da simples «reforma financeira», uma verdadeira «revolução em marcha». António de Oliveira Salazar, «Realizações de Política Interna — Problemas de Política Externa — Discurso na Assembleia Nacional, em 28 de Abril 1938», Discursos, vol. iii, Coimbra Editora, Coimbra, 1959, p. 67.

26. Citados por Mark Mazower em Darko Continent, pp. 16 e 28 [O Continente das Trevas, pp. 33 e 46] (n. 17 supra).

27. Sobre a natureza modernista das celebrações fascistas nos diferentes regimes, ver Griffin, Modernism and Fascism… (n. 21 supra); Ruth Ben-Ghiat, Fascist Modernities: Italy, 1922–1945, University of California Press, Berkeley, 2001; Claudio Fogu, The Historic Imaginary: Politics of History in Fascist Italy, University of Toronto Press, Toronto, 2003; Margarida Acciaiuoli, Exposições do Estado Novo, 1934–1940, Livros Horizonte, Lisboa, 1998.

28. Para um bom resumo de literatura sobre modernidades alternativas, que inclui autores como Homi Bhabha ou Dipesh Chakrabarty, ver Dilip Parameshwar Gaonkar, ed., Alternative Modernities, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte) e Londres, 2001. Aníbal Quijano e Arturo Escobar, nas suas críticas mais radicais da modernidade, defenderam que, em vez de uma modernidade alternativa, a emancipação só poderá chegar através de uma alternativa à modernidade. Arturo Escobar, «LatinAmerica at a Crossroads: Alternative Modernizations, Postliberalism, or Postdevelopment?», Cultural Studies, vol. 24, n.º 1, 2010, pp. 1–65. Para uma análise crítica informada sobre o uso do conceito de modernidade alternativa, ver Arif Dirlik, «Thinking Modernity Historically: Is “AlternativeModernity” the Answer?», Asian Review of World Histories, vol. 1, n.º 1, 2013, pp. 5–44. Ver também o importante artigo de Antonio Lafuente que caracteriza a ciência crioula na América Latina colonial, crítico dos modos impostos pela botânica de Lineu, não como alternativa à ciência, mas como «ciência alternativa». Antonio Lafuente, «Enlightenment in an Imperial Context: Local Science in the Late-Eighteenth-Century HispanicWorld», Osiris, vol. 15, n.º 1, 2000, pp. 155–173.

29. S. N. Eisenstadt, Comparative Civilizations and Multiple Modernities, Brill, Boston, 2003.

30. Thomas J. Misa, Philip Brey e Andrew Feenberg, eds., Modernity and Technology, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 2004. Para um caso exemplar de uma narrativa histórica sofisticada no tratamento dado tanto à tecnologia quanto ao modernismo, ver Amy Slaton, Reinforced Concrete and the Modernization of American Building, 1900–1930, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2001, pp. 168–187.

31. Michael Thad Allen, The Businesof Genocide: The SS, Slave Labor, and the Concentration Camps, University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2002; Thomas Zeller, Driving Germany: The Landscape of the German Autobahn, 1930–1970, Berghahn, Oxford, 2007.

32. Jeffrey Herf, Reactionary Modernism: Technology, Culture, and Politics in Weimar and the Third Reich, Cambridge University Press, Cambridge, 1984. A noção de modernismo reaccionário foi já um passo importante para superar trabalhos académicos anteriores que tinham identificado o fascismo simplesmente como a negação da Europa moderna esclarecida. Em relação a esta visão anterior, ver Zeev Sternhell, «Fascist Ideology», in Fascism: A Reader’s Guide, ed. Walter Laqueur, University of California Press, Berkeley e Los Angeles, 1976.

33. Camprubí, Engineers… (n. 16 supra).

34. M. Norton Wise, «Architectures for Steam», in The Architecture of Science, eds. Peter Galison e Emily Ann Thompson, MIT Press, Cambridge (Massachusetts) 1999; M. Norton Wise e Elaine M. Wise, «Staging an Empire», in Things That Talk: Object Lessons from Art and Science, ed. Lorraine Daston, Zone Books, Nova Iorque, 2004; John Tresch, The Romantic  Machine: Utopian Science and Technology After Napoleon, University of Chicago Press, Chicago e Londres, 2012. (Aqui, não estou a sugerir nenhum vínculo directo entre a cultura romântica e a ascensão do fascismo.)

35. Emilio Gentile, The Sacralization of Politics in Fascist Italy, Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts), 1996.

36. Ernest Gellner, Nations and Nationalism, Cornell University Press, Ithaca (Nova Iorque), 1983 [Nações e Nacionalismo, Gradiva, Lisboa, 1993]; Benedict Anderson, Imagined Communities, Verso, 1983 [Comunidades Imaginadas]; Eric Hobsbawm, Nations and Nationalism since 1780: Programme, Myth, Reality, Cambridge University Press, Cambridge, 1990; Michael Mann, The Sources of Social Power, vol. ii, Cambridge University Press, Cambridge, 1993. Para uma análise desta literatura de um ponto de vista da história da tecnologia, ver Tiago Saraiva, «Inventing the Technological Nation: The Example of Portugal (1851–1898)», History and Technology, vol. 23, n.º 3, 2007, pp. 263–273. Ver também Antonio Lafuente, «Conflicto de lealtades: los científicos entre la nación y la república de las letras», Revista de Occidente, n.º 161, 1994, pp. 97–122.

37. Sobre as origens do nacionalismo orgânico durante o século xix, ver

Wolfgang Mommsen, «The varieties of the nation state in modern history: Liberal imperialist, fascist and contemporary notions of nation and nationality», in The Rise and Decline of the Nation State, ed. Michael Mann, Blackwell, Oxford, 1990. Além dos trabalhos sobre eugenia e fascismo citados na nota 7, ver também o importante livro colectivo: Marius Turda, ed., Blood and Homeland: Eugenics and Racial Nationalism in Central and Southeast Europe, 1900–1940, Central European University Press, Budapeste e Nova Iorque, 2007.

38. Os inimigos políticos acusados de bolchevismo foram os primeiros «elementos infectuosos» a serem removidos e os primeiros ocupantes dos campos de concentração da Alemanha de Hitler e do Portugal de Salazar.

39. Lizzie Collingham, The Taste of War: World War II and the Battle for Food, Penguin, Nova Iorque, 2012; C. Paul Vincent, The Politics of Hunger: The Allied Blockade of Germany, 1915–1919, Ohio University Press, Athens (Ohio) e Londres, 1985; Gesine Gerhard, «Food and Genocide: Agrarian Politics in the Occupied Territories of the Soviet Union», Contemporary European History, vol. 18, n.º 1, 2009, pp. 45–65; Carol Helstosky, Garlic and Oil: Food and Politics in Italy, Berg, Oxford, 2004. Os problemas enfrentados pelas populações camponesas pobres da Europa estiveram na base do crescimento do fascismo por todo o continente. A guerra só tornou mais óbvia a revolução no sistema global de fornecimento alimentar que vinha a desenvolver-se desde o final do século xix, porque as mercadorias baratas das Américas estavam a inundar os mercados europeus. Ver David Goodman e Michael Watt, eds., Globalising Food: Agrarian Questions and Global Restructuring, Routledge, Londres e Nova Iorque, 1997. 

40. Mark B. Cole, Feeding the Volk: Food, Culture, and the Politics of Nazi Consumption, 1933–1945, tese de doutoramento, Universidade da Florida, 2011, pp. 159–160.

41. Ernst Jünger, «Total Mobilization (1930)», in The Heidegger Controversy: A Critical Reader, ed. Richard Wolin, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 1993. Sobre a importância do conceito de Jünger para uma compreensão geral da modernidade, ver Peter Sloterdijk, Eurotaoismus. Zur Kritik der politischen Kinetik, Suhrkamp, Frankfurt, 1989 [A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política, Relógio D’Água, Lisboa, 2002].

42. Mazower, Dark Continent [O Continente das Trevas] (n. 17 supra).

43. Götz Aly e Susanne Heim, Architects of Annihilation: Auschwitz and the Logic of Destruction, Princeton University Press, Princeton, 2002; Uwe Mai, «Rasse und Raum»: Agrarpolitik, Sozial- und Raumplanung im NS-Staat, Ferdinand Schöningh, Paderborn, 2002; Isabel Heinemann, Rasse, Siedlung, deutsches Blut: dasRasse-und Siedlungshauptamt der SS und die rassenpolitische Neuordnung Europas, Wallstein, Göttingen, 2013; Gerhard, «Food and Genocide…» (n. 39 supra); Timothy Snyder, Black Earth: The Holocaust as History and Warning, Tim Duggan Books, Nova Iorque, 2015 [Terra Negra: O Holocausto Como História e Aviso, Bertrand Editora, Lisboa, 2016].

44. Que fique claro que não se sugere com isto, nos impérios português e italiano, que a raça não teve um papel importante na conformação de regimes coloniais particularmente violentos.

45. Para uma análise dessa literatura para o caso nazi, ver Mark Finlay, «New Sources, New Theses, and New Organizations in the New Germany: Recent Research on the History of German Agriculture», Agricultural History, vol. 75, n.º 3, 2001, pp. 279–307. As seguintes obras são particularmente significativas: Gustavo Corni e Horst Gies, Brot— Butter—Kanonen: Die Ernährungswirtschaft in Deutschland unter der Diktatur Hitlers, Akademie, Berlim, 1997; Gustavo Corni, Hitler and the Peasants: Agrarian Policy of the Third Reich, 1930–1939, Berg, Oxford, Nova Iorque e Munique, 1990; John Edgar Farquharson, The Plough and the Swastika, SAGE, Londres e Beverly Hills, 1976; Adam Tooze, The Wages of Destruction: The Making and Breaking of Nazi War Economy, Allen Lane, Londres e Nova Iorque, 2006. Para o caso italiano, considero as seguintes fontes particularmente interessantes: Massimo Legnani, Domenico Petri e Giorgio Rochat, eds., Le champagne emiliane in periodo fascista: Materiale e ricerche sulla battaglia del grano, CLUE, Bolonha, 1982; Luciano Segre, La «battaglia del grano»: Depressione economica e politica cerealicola fascista, Clesav, Milão, 1982; Mauro Stampacchia, «Ruralizzare l’Italia!»: Agricolture e bonifiche tra Mussolini e Serpieri, 1928–1943, Angeli, Milão, 2000; Alexander Nützenadel, Landwirtschaft, Staat un Autarkie. Agrarpolitik im faschistischen Italien, 1922–1943, Max Niemeyer, Tübingen, 1997. Para o caso português, a melhor fonte ainda é Fernando Oliveira Baptista, A Politica Agrária do Estado Novo, Afrontamento, Porto, 1993. Ver também Manuel de Lucena, «Salazar, a “Fórmula” da Agricultura Portuguesa e a Intervenção Estatal no Sector Primário», Análise Social, vol. 26, n.º 110, 1991, pp. 97–206; Dulce Freire, Inês Fonseca e Paula Godinho, eds., Mundo Rural: Transformação e Resistência na Península Ibérica (Século XX), Colibri, Lisboa, 2009.

46. David Edgerton abordou eloquentemente simplificações semelhante feitas por historiadores generalistas sobre o papel da tecnologia na história, nomeadamente as suas obsessões com a inovação tecnológica em detrimento da tecnologia em uso. A sua crítica da falta de atenção dada aos cavalos na Segunda Guerra Mundial corresponde perfeitamente à observação que aqui faço sobre a ausência da agricultura nas análises do fascismo genérico. David Edgerton, Shock of the Old: Technology and Global History Since 1900, Profile Books, Londres, 2011.

47. Corni e Gies, Brot—Butter… (n. 45 supra). Ver a crítica devastadora de Adam Tooze em The Wages of Destruction, p. 713 (n. 45 supra). Ver também a infeliz comparação ensaiada por Gustavo Corni entre as políticas agrárias da Itália fascista e da Alemanha nazi em Hitler and the Peasants…, pp. 269–273 (n. 45 supra). Corni sugere que havia um profundo contraste entre o ruralismo nazi e os modernizadores fascistas italianos, chegando mesmo a afirmar que os académicos e tecnocratas alemães não tinham voz nas políticas agrárias nazis. Como foi demonstrado por Adam Tooze, e como é demonstrado neste livro, não há fundamento para esse contraste. Há também uma tendência, na literatura portuguesa, para pôr o foco nas falsas promessas das políticas agrárias fascistas em detrimento da compreensão do contributo que deram para a institucionalização do regime; ver, por exemplo, Baptista, A Política Agrária… (n. 45 supra).

48. Mesmo Roger Griffin, o defensor o fascismo como modernismo, descarta a natureza modernista do «Blut und Boden» («Sangue e Solo»). Ver o seu artigo «Modernity, Modernism, and Fascism…» (n. 22 supra). Como Adam Tooze expressamente declarou na sua reavaliação do papel da agricultura na história económica nazi [The Wages of Destruction…, pp. 166–167 (n. 45 supra)], «a preocupação de Hitler e dos seus sequazes com os problemas do Lebensraum, da comida e da agricultura é muitas vezes vista prima facie como um indício do seu atavismo e atraso. Isso não poderia estar mais errado».

49. Não é difícil compreender a natureza modernista da famosa formulação de Maurice Barrès, um dos primeiros ideólogos do fascismo, do culto da terra e dos antepassados. De maneira bastante reveladora, a Barrès e aos seus partidários foi atribuído o estatuto de «futuristas do passado». Sobre a noção de futurismo do passado, ver Hermínio Martins, Classe, Status e Poder: E Outros Ensaios sobre o Portugal Contemporâneo, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 1998, p. 25. Sobre Barrès, ver Zeev Sternhell, Maurice Barrès et le nationalisme français, Librairie Armand Colin, Paris, 1972.

50. Ver Susanne Heim, Kalorien, Kautschuk, Karrieren: Pflanzenzüchtung und landwirtschaftliche Forschung in Kaiser-Wilhelm-Instituten 1933–1945, Wallstein, Gottingen, 2003; Susanne Heim, ed., Autarkie und Ostexpansion. Pflanzenzucht und Agrarforschung in Nationalsozialismus, Wallstein, Gottingen, 2002; Thomas Wieland, «Wir beherrschen den pflanzlichen Organismus besser…»: Wissenschaftliche Pflanzenzüchtung in Deutschland, 1889– 1945, Deutsches Museum, Munique, 2004; Joachim Drews, Die Nazi-Bohne: Anbau, Verwendung und Auswirkung der Sojabohne im Deutschen Reich und Südosteuropa, 1933–1945, LIT, Münster, 2004; Jonathan Harwood, «The Fate of Peasant-Friendly Plant Breeding in Nazi Germany», Historical Studies in the Natural Sciences, vol. 40, n.º 4, 2010, pp. 569–603. Em Black Earth… [Terra Negra…] (n. 43 supra), um livro importante sobre as dimensões ecológicas do Holocausto, no qual é atribuído um lugar central à alimentação, Timothy Snyder parece esquecer por completo essa literatura. Essa ausência explica a sua afirmação infundada nas páginas 9 e 10 [página 27 da edição portuguesa] de que Hitler tinha um problema com as ciências agrárias. Esta asserção só é sustentada por citações do Mein Kampf, ignorando o apoio e financiamento extremamente generoso dessas ciências pelo regime nazi.

51. Susanne Heim inicia o seu importante livro sobre o melhoramento de plantas e o nazismo com a seguinte afirmação: «Dos três termos que formam o título deste livro, “calorias”, “cauchu” e “carreiras”, nenhum sugere a ideologia “Sangue e Solo” ou a visão romântica da agricultura que são frequentemente tidas como as características típicas das políticas agrárias nacionaissocialistas. E, na verdade, o tema sob investigação neste livro não são as ideias aparentemente retrógradas de homens como Richard Walther Darré, buscando mitos de camponeses inextricavelmente ligados à sua terra natal» (Kalorien…, p. 1 [n. 50 supra]). O mesmo tom é adoptado na inovadora história das ciências agrícolas da autoria de Frank Uekötter, Die Wahrheit ist auf dem Feld: Eine Wissensgeschichte der deutschen Landwirtschaft, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 2010. Esta abordagem também limita as possíveis conexões entre o melhoramento de plantas nazis e outras experiências fascistas. Curiosamente, encontramos uma sensibilidade mais desenvolvida em relação às interligações entre a ciência agrícola e a formação do regime nazi na abordagem institucional mais tradicional de Volker Klemm, em Agrarwissenschaften in Dritten Reich: Aufstieg oder Sturz? (1933–1945), Humboldt Universität, Berlim, 1994.

52. Tooze, The Wages of Destruction…, p. 167 (n. 45 supra).

53. Robert E. Kohler, Lords of the Fly: Drosophila Genetics and the Experimental Life, University of Chicago Press, Chicago, 1994 [Os Senhores da Mosca: A Genética da Drosophila e a Vida Experimental, Porto Editora, Porto, 2011]; Karen A. Rader, Making Mice: Standardizing Animals for American Biomedical Research, 1900–1955, Princeton University Press, Princeton, 2004; Angela N. H. Creager, The Life of a Virus: Tobacco Mosaic Virus as na Experimental Model, 1930–1965, University of Chicago Press, Chicago, 2002. Para uma visão geral da história da biologia como história de organismos-modelos, ver Jim Endersby, A Guinea Pig’s History of Biology: The Plants and Animals Who Taught Us the Facts of Life, Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts), 2007; Anita Guerrini, Experimenting with Humans and Animals: From Galen to Animal Rights, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2003.

54. Tim Lenoir, «Epistemology Historicized. Making Epistemic Things», prefácio a Rheinberger, An Epistemology of the Concrete: Twentieth-Century Histories of Life, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte), 2010, p. xiii.

55. Rheinberger, An Epistemology of…, p. 7 (n. 10 supra).

56. Sobre as implicações dos organismos-modelos na escrita de narrativas históricas, ver Tiago Saraiva, «Oranges as Model Organisms for Historians», Agricultural History, vol. 88, n.º 3, 2014, pp. 410–416.

57. Staffan Müller-Wille e Hans-Jörg Rheinberger, A Cultural History of Heredity, University of Chicago Press, Chicago, 2012, p. 136.

58. Sobre os organismos industrializados e a sua importância na história da tecnologia, ver Schrepfer e Scranton, eds., Industrializing Organisms… (n. 8 supra). Sobre a relação entre produção de conhecimento acerca da reprodução na medicina e na agricultura, ver Adele Clarke, Disciplining Reproduction: Modernity, American Life Sciences, and «the Problems of Sex», University of California Press, Berkeley, 1998.

59. Sobre as «linhas puras», ver Nills Roll-Hansen, «Sources of Johannsen’s Genotype Theory», in A Cultural History of Heredity III: 19th and Early 20th Centuries, eds. Staffan Müller-Wille e Hans-Jörg Rheinberger, Max Planck Institute for the History of Science, Berlim,2005; Christophe Bonneuil e Frédéric Thomas, Gènes, pouvoirs et profits:  recherche publique et régimes de production des savoirs de Mendel aux OGM, Quae, Paris, 2009. Mais especificamente sobre a clonagem os melhoradores de plantas, ver Tiago Saraiva, «Cloning and Democracy: Standardized Oranges and the Southern Californian Experiment with Cooperation», in New Materials: Their Social and Cultural Meanings, ed. Amy Slaton, University of Pennsylvania Press, Filadélfia, no prelo.

60. Tiago Saraiva, «Breeding Europe: Crop Diversity, Gene Banks, and Commoners», in Cosmopolitan Commons: Sharing Resources and Risks across Borders, eds. Nil Disco e Eda Kranakis, MIT Press, Cambridge (Massachusetts), 2013.

61. Sobre as importantes diferenças entre o conceito de «linhas puras» de Johannsen e as variedades produzidas através de autofecundação por melhoradores no século xix, ver o capítulo 1.

62. Sobre a importância da metáfora química para os geneticistas no virar do século, ver Staffan Müller-Wille, «Leaving Inheritance Behind: Wilhelm Johansen and the Politics of Mendelism», in A Cultural History of Heredity IV: Heredity in the Century of the Gene, eds. Staffan Müller-Wille, Hans-Jörg Rheinberger e John Dupré, Max Planck Institute for the History of Science, Berlim, 2008.

63. Enquanto Diane Paul e Barbara Kimmelman demonstraram de modo notável a importância das preocupações agrícolas dos melhoradores de plantas quanto à introdução da teoria mendeliana nos Estados Unidos, Jonathan Harwood, Paolo Palladino, Thomas Wieland e Christophe Bonneuil exploraram as relações complicadas entre a genética mendeliana e os organismos industrializados. Ver Jonathan Harwood, «Introduction to the Special Issue on Biology and Agriculture», Journal of the History of Biology, vol. 39, n.º 2, 2006, pp. 237–239; Diane B. Paul e Barbara A. Kimmelman, «Mendel in America: Theory and Practice, 1900–1919», in The American Development of Biology, ed. Ronald Rainger et al.,University of Pennsylvania Press, Filadélfia, 1988; Paolo Palladino, Plants, Patients and the Historian: (Re)Membering in the Age of Genetic Engineering, Manchester University Press, Manchester, 2002; Jonathan Harwood, Technology’s Dilemma: Agricultural Colleges Between Science and Practice in Germany,1860–1934, Peter Lang, Berna, 2005;Christophe Bonneuil, «Producing Identity, Industrializing Purity», in A Cultural History of Heredity IV: Heredity in the Century of the Gene, eds. Staffan Müller-Wille, Hans-Jörg Rheinberger e John Dupré, Max Planck Institute for the History of Science, Berlim, 2008; Christophe Bonneuil, «Mendelism, Plant Breeding and Experimental Cultures: Agriculture and the Development of Genetics in France», Journal of the History of Biology, vol. 39, n.º 2, 2006, pp. 281–308; Wieland, «Wir beherrschen…» (n. 50 supra). Para uma perspectiva mais ampla das relações entre a agricultura e as ciências da vida, ver New Perspectives on the History of Life Sciences and Agriculture, eds. Denise Phillips e Sharon Kingsland, Cham, Heidelberg, Nova Iorque, Dordrecht e Londres, Springer, 2015.

64. Ver Deborah Fitzgerald, The Businessof Breeding: Hybrid Corn in Illinois, 1890– 1940, Cornell University Press, Ithaca (Nova Iorque), 1990; Bert Theunissen, «Breeding for Nobility or for Production? Cultures of Dairy Cattle Breeding in the Netherlands, 1945–1995», Isis, vol. 103, n.º 2, 2012, pp. 278–309; Margaret Elsinor Derry, Art and Science in Breeding: Creating Better Chickens, University of Toronto Press, Toronto, 2012.

65. Russell, Evolutionary History…, p. 140 (n. 8 supra). Sobre o modo como plantas diferentes dão forma a economias políticas diferentes, ver Barbara Hahn, Making Tobacco Bright: Creating an American Commodity, 1617–1937, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2011.

66. Isto é particularmente evidente no livro de Phillip Thurtle, The Emergence of Genetic Rationality: Space, Time, and Information in American Biological Science, 1870–1920, University of Washington Press, Seattle, 2011.

67. Fitzgerald, Business of Breeding… (n. 64 supra); Jenny Leigh Smith, The Soviet Farm Complex: Industrial Agriculture in a Socialist Context, 1945–1965, tese de doutoramento, MIT, 2006; Michael Flitner, «Genetic Geographies: A Historical Comparison of Agrarian Modernization and Eugenic Thought in Germany, the Soviet Union, and the United States», Geoforum, vol. 34, n.º 2, 2003, pp. 175–185.

68. Isso é típico não só das histórias sobre o melhoramento de plantas e animais, mas também dos estudos críticos mais gerais sobre a ciência. Para uma boa crítica dessas grandes narrativas, ver Dominic Berry, «The Plant Breeding Industry after Pure Line Theory: Lessons from the National Institute of Agricultural Botany», Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, vol. 46, n.º 1, 2014, pp. 25–37. Berry cita o meu trabalho sobre o fascismo italiano e o trigo como representante dessa tendência, ainda que uma leitura mais atenta imediatamente revele que tenho uma posição contrária.

69. Horkeimer e Adorno, Dialectic of Enlightenment… (n. 21 supra).

70. Ver Agamben, Homo Sacer… [O Poder Soberano…] (n. 6 supra); Herbert Marcuse, Technology, War and Fascism: Collected Papers of Herbert Marcuse, Routledge, Londres e Nova Iorque, 2004.

71. Isso foi defendido por Paul Rabinow e Nikolas Rose na crítica que ambos fizeram no artigo «Biopower Today» (n. 6 supra) ao uso generalizado do conceito de biopoder por seguidores de Hardt e Negri e de Giorgio Agamben. A história da eugenia, com a sua sensibilidade para diferentes tendências nacionais, poderá sugerir algo semelhante. Porém, gostaria de sustentar que a maioria dos estudos comparativos apresentados por historiadores da eugenia tendem a explicar as diferenças das práticas com base em diferentes contextos culturais nacionais fixados, em vez de explorarem o modo como a ciência e a cultura coevoluíram, como tento fazer aqui. O contraste tradicional entre eugenia negativa e positiva, no seguimento de clivagens religiosas que identificam a primeira com os países protestantes do Norte e a segunda com os países católicos do Sul, certamente não se aplica aos melhoradores de plantas e animais. Quando se dedicaram a manipular plantas e animais, todos os melhoradores abordados neste livro foram partidários de uma linha dura, eliminando sem piedade as variedades menos interessantes. Ver Turda, ed., Blood and Homeland… (n. 37 supra); Nancy Leys Stepan,The Hour of Eugenics: Race, Gender, and Nation in Latin America, Cornell University Press, Ithaca (Nova Iorque), 1991; Gunnar Broberg e Nils Roll-Hansen, eds., Eugenics and the Welfare State: Sterilization Policy in Denmark, Sweden, Norway, and Finland, University of Michigan Press, East Lansing, 1996.

72. Na formulação de Sloterdijk, Eurotaoismus…, p. 25 [A Mobilização Infinita…, p. 25] (n. 41 supra), não seria suficiente afirmar que a modernidade prometia fazer a sua própria história, a principal questão em causa seria antes qual a natureza a fazer. Depois da publicação do seu livro Regeln für den Menschenpark: ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über den Humanismus (Suhrkamp, Frankfurt, 1999) [Regras para o Parque Humano: Uma Resposta à «Carta sobre o Humanismo» (O Discurso de Elmau), Angelus Novus, Coimbra, 2007], Sloterdijk ofreu o opróbrio de académicos alemães tão veneráveis como Jürgen Habermas, por ter sugerido que as democracias deveriam discutir seriamente e regular a biopolítica. Sobre a controvérsia, ver Éric Alliez, Living Hot, Thinking Coldly: An Interview with Peter Sloterdijk», Cultural Politics, vol. 3, n.º 3, 2007, pp. 307–326.

73. Sobre a Bodenständigkeit e a sua importância na filosofia de Heidegger, ver Charles R. Bambach, Heidegger’s Roots: Nietzsche, National Socialism, and the Greeks, Cornell University Press, Ithaca (Nova Iorque), 2005. Examino mais ao pormenor este vínculo heideggeriano no final do capítulo 4 e sobretudo na conclusão.

74. Ver Bruno Latour, «Whose Cosmos, Which Cosmopolitics? Comments on the Peace Terms of Ulrich Beck», Common Knowledge, vol. 10, n.º 3, 2004, pp. 450–462; Annemarie Mol, The Body Multiple: Ontology in Medical Practice, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte) e Londres, 2002; John Law, Aircraft Stories: Decentering the Object in Technoscience, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte), 2002; Diana Coole e Samantha Frost, eds., New Materialisms: Ontology, Agency, and Politics, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte), 2010; Karen Barad, Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning, Duke University Press, Durham (Carolina do Norte) e Londres, 2007. Para uma análise crítica do significado dessa viragem, ver Steve Woolgar e Javier Lezaun, «The Wrong Bin Bag: A Turn to Ontology in Science and Technology Studies», Social Studies of Science, vol. 43, n.º 3, 2013, pp. 321–340.

75. Sobre os objectos de fronteira, ver Susan Leigh Star e James R. Griesemer, «Institutional Ecology, Translations and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907–39», Social Studies of Science, vol. 19, n.º 3, 1989, pp. 387–420. Sobre a assemblagem, ver Paul Rabinow, French DNA: Trouble in Purgatory, University of Chicago Press, 1999. Sobre as múltiplas naturezas e o multiverso, ver Bruno Latour, Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des modernes, La Découverte, Paris, 2012.

76. Esta linguagem chegou aos estudos sobre a ciência e a tecnologia, tanto por meio da filosofia pragmática, como da antropologia cultural. Em relação à primeira e ao conceito de multiverso, ver William James, The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge e Nova Iorque, 2014; primeira edição, 1897. Em relação à segunda, ver Eduardo Viveiros de Castro, A Inconstância da Alma Selvagem, Cosac & Naify, São Paulo, 2002; Philippe Descola, Par-delá nature et culture, Gallimard, Paris, 2005.

77. Mesmo quando nem todos os autores estão confortáveis com essa linguagem, é difícil fazer uma distinção entre epistemologia e ontologia nas análises de Steven Shapin sobre Boyle, de Simon Schaffer sobre Newton, de Norton Wise sobre William Thomson, de Bruno Latour sobre Pasteur e de Peter Galison sobre Einstein. Ver Steven Shapin, A Social History of Truth: Gentility, Civility and Science in Seventeenth-Century England, University of Chicago Press, Chicago e Londres, 1994; Simon Schaffer, «Glass Works: Newton’s Prisms and the Uses of Experiment», in The Uses of Experiment: Studies in the Natural Sciences, eds. David Gooding, Trevor Pinch e Simon Schaffer, Cambridge University Press, Cambridge, 1989; Crosbie Smith e M. Norton Wise, Energy and Empire: A Biographical Study of Lord Kelvin, Cambridge University Press, Cambridge, 1989; Bruno Latour, The Pasteurization of France, Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts), 1993; Peter Galison, Einstein’s Clocks, Poincaré’s Maps: Empires of Time, W. W. Norton, Nova Iorque, 2003 [OsRelógios de Einstein e os Mapas de Poincaré, Gradiva, Lisboa, 2005].

78. Hans-Jörg Rheinberger, «Gaston Bachelard and the Notion of “Phenomenotechnique”», Perspectives on Science, vol. 13, n.º 3, 2005, pp. 313–328.

79. A natureza etnográfica de muitos estudos sobre a ciência e a tecnologia, e a abordagem local normalmente adoptada, poderão gerar dúvidas sobre a importância desses estudos académicos em quem aborda fenómenos históricos tradicionais de larga escala, como é o caso do fascismo. Bruno Latour supera esses problemas de escala de forma eloquente, ao defender, por exemplo, que o seu Louis Pasteur, independentemente de anteriores filiações políticas, se tornou num agente político importante através das suas experiências laboratoriais: «Dêem-nos laboratórios e faremos com que na Grande Guerra não haja infecções, abriremos países tropicais à colonização, tornaremos o exército de França saudável, aumentaremos o número e a força dos seus habitantes, criaremos novas indústrias.» Bruno Latour, «Give Me a Laboratory and I Will Raise the World», in Science Observed: Perspectives on the Social Study of Science, eds. Karin D. Knorr Cetina e Michael Mulkay, SAGE, Londres, 1983. Este livro também segue o poderoso mote de Latour: «Dêem-me um laboratório e elevarei o mundo.» E também faz vista grossa a questões como saber se os cientistas de que se ocupa tinham filiação fascista ou não, prestando mais atenção ao poder das suas práticas na formação de um mundo fascista. A política encontra-se na própria ciência. Mas, para tornar este argumento convincente, é necessário um envolvimento mais profundo com a história do período em questão do que aquele que é normalmente apresentado no estudos sobre a ciência e a tecnologia. Como fazer grandes afirmações sobre porcos e carneiros que incorporam o fascismo sem entrar em diálogo com os historiadores do fascismo? Os estudos de ciência e tecnologia (STS) têm a alegre capacidade de identificar como novas coisas aparecem de práticas tecnocientíficas, mas só muito raramente especificam o modo como essas coisas são significativas para a história. A Grande Guerra, a colonização, o exército francês, as novas indústrias — cada um destes termos comporta uma enorme historiografia que não podemos ignorar quando tentamos provar a importância das coisas pasteurizadas nestes grandes colectivos. Este livro sugere que para os STS poderem fazer afirmações ambiciosas sobre o papel das coisas que estudam, é necessário examinar as formas como essas coisas operam no(s) mundo(s). Os praticantes dos STS devem ser capazes de se envolver em discussões com historiadores generalistas sobre a importância histórica das suas coisas. Para uma observação crítica semelhante sobre a influência da obra de Latour, ver Paolo Palladino, «Give Me a Laboratory, and I Will Raise the… Laboratory», Medical History, vol. 48, n.º 1, 2004, pp. 118–123.

80. Curzio Malaparte, Kaputt, New York Review of Books, Nova Iorque, 2005; primeira edição, 1944 [Kaputt, Cavalo de Ferro, Amadora, 2020].

81. Para uma análise inspirada do livro de Malaparte, ver Milan Kundera, Une rencontre, Gallimard, 2009, pp. 184–189 [Um Encontro, Dom Quixote, Alfragide, 2011, pp. 178-182]. Duas outras obras importantes e controversas que usam os animais para compreender o nazismo são os livros de Art Spiegelman, Maus I: A Survivor’s Tale: My Father Bleeds History, Pantheon, Nova Iorque, 1986, e Maus II: A Survivor’s Tale: And Here My Troubles Began, Pantheon, Nova Iorque, 1991 [Maus: A História de Um Sobrevivente. O Meu Pai Sangra e Aqui Começaram os Meus Problemas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014].

 

 

 

Tiago Saraiva

Professor no departamento de História da Drexel University em Filadélfia. Licenciado pelo Instituto Superior Técnico e doutorado pela Universidade Autónoma de Madrid, foi investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa de 2005 a 2012 e professor visitante na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e Berkley. É co-editor da revista History and Technology e co-organizador da Cambridge History of technology.

 

Nota de edição

O texto que aqui se publica corresponde à introdução do livro Porcos Fascistas. Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo, de Tiago Saraiva, publicado pela Dafne Editora em 2022 e gentilmente cedido pelo autor e pela editora. O livro está também publicado em inglês pelo MIT Press (2016) e foi ainda galardoado com o prémio Pfizer Prize for the best scholarly book em 2017. Uma recensão da edição portuguesa por Marta Macedo, pode ser lida na Revista Ler História.

 

Imagem

1. Experiências com raios x sobre o teor de gordura dos porcos.

2. O ministro da Agricultura e Obergruppenführer da SS Herbert Backe com dirigentes agrários a contemplar porcos no Reichsgau Wartheland, na Polónia sob ocupação nazi, 1943.

 

Ficha Técnica

«Porcos Fascistas. Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo» •  Tiago Saraiva

Data de publicação: 15.11.2022

Edição #36 • Outono 2022 •