Muitos políticos
populistas de direita que dominaram a década de 2010 foram comparados a
Berlusconi, sendo o primeiro deles o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump. Como Trump, e bem antes dele, Berlusconi insistiu no facto de não ser um
político de carreira, mas sim um “empresário self-made” de sucesso, que decidiu
entrar na política para salvar o seu país da esquerda. Como Trump, Berlusconi
deve o seu sucesso ao uso extraordinário da televisão, o que, no seu caso, foi
facilitado pelo facto de possuir a maioria dos canais privados do país. E,
finalmente, tal como Trump, Berlusconi conquistou a cena política ao ignorar
todas as normas de cortesia e polidez institucionais, apresentando-se
absurdamente como uma vítima de juízes e autoridades eleitorais, sem nunca se
esquivar das tácticas mais vulgares e sensacionalistas para chamar a atenção do
público – incluindo sua famosa propensão para piadas sexuais.
Berlusconi
incorporou o que Antonio Gramsci descreveu como o “gosto pelo operístico” do
povo italiano, com os seus comícios e intervenções na televisão apresentando
momentos que caberiam num programa de humor. Em termos de conteúdo político,
porém, ele era simplesmente um neoliberal: a sua revolução consistia em cortar
impostos e burocracia e em desregular o trabalho. Na verdade, ele deve ser
visto, historicamente, como o elo entre o neoliberalismo e o populismo.
Em Itália,
Berlusconi foi fundamental para permitir que a extrema-direita entrasse na
política dominante, forjando alianças com o partido separatista Liga do Norte e
com o partido pós-fascista Alleanza Nazionale, do qual descende o partido da actual
primeira-ministra, Giorgia Meloni (Meloni ganhou destaque pela primeira vez ao
servir como Ministra da Juventude no último governo de Berlusconi).
Curiosamente,
olhando para trás, a mudança da política italiana, cada vez mais para a direita
nacionalista, fez Berlusconi parecer relativamente moderado. No entanto, o seu
ataque constante aos trabalhadores, os seus supostos vínculos com a máfia, a sua
manipulação do sistema legal, as suas políticas económicas desastrosas que
aceleraram o declínio industrial do país e a sua celebração do individualismo
extremo criaram as condições para a actual viragem reaccionária em Itália.
Um elemento-chave
do seu sucesso, que foi imitado por populistas de direita no mundo todo, foi a sua
capacidade de transformar as acusações contra ele em combustível para a sua
sobrevivência. A carreira de Berlusconi foi marcada por processos por crimes
relacionados com a máfia, a corrupção e a fuga aos impostos. Como resposta, Berlusconi
adoptou uma abordagem em duas frentes. Por um lado, insistiu vigorosamente que
era inocente, vítima de juízes comunistas – a pessoa mais perseguida da
história da humanidade. Por outro lado, para o benefício de seus apoiantes mais
dissimulados, especialmente aqueles da classe empresarial, muitas vezes
envolvidos em práticas ilegais ou limítrofes, ele frequentemente apelava para o
facto do seu comportamento não ser tão puro, mas, na verdade, quem o é?
Quando saiu à
pressa, pela última vez, da residência oficial do primeiro-ministro, a 16 de Novembro
de 2011, Silvio Berlusconi parecia um homem humilhado. As finanças italianas
estavam com problemas, com os investidores internacionais a apostar contra os
títulos do tesouro do país; os procuradores estavam atrás dele devido ao infame
escândalo “bunga bunga”, que envolvia uma trabalhadora do sexo menor de idade;
e os aliados europeus como Nicolas Sarkozy e Angela Merkel tornaram público o seu
descontentamento com ele. Poucos teriam imaginado na época o quanto a política
futura seguiria o modelo populista de Berlusconi.
Berlusconi
morreu aos 86 anos – estava internado em um hospital de Milão, a tratar uma
infecção pulmonar. No entanto, se olharmos à nossa volta podemos ver o seu
legado em todo o lado. Na verdade, os anos que se seguiram à saída de
Berlusconi do cargo justificaram o seu estilo político, que combinava uma
política de culto à personalidade extrema, um uso habilidoso dos media e uma
demagogia desavergonhada – tudo para explorar a desilusão e o cinismo dos
eleitores sobre o status quo. É difícil pensar num outro político mais
prefigurativo da política que estaria por vir. Os ecos das actuais tribulações
legais de Trump nos EUA são claros – e não são um bom augúrio para aqueles que
pensam que o destino do ex-presidente será selado por mais uma acusação.
Em Itália, a
ascensão de Berlusconi foi possibilitada pelo cansaço que a democracia liberal
italiana cultivou nas pessoas comuns, desde o escândalo de corrupção de
Tangentopoli no início dos anos 1990. Noutros países, as figuras de direita
aproveitaram-se de sentimentos semelhantes de desilusão em relação à política
que não parecem favorecer os interesses de ninguém a não ser da elite.
Enquanto a
política for vista – às vezes com razão – como um grande “pântano” (para citar
a retórica trumpista) de corrupção e hipocrisia, a política cínica, da qual
Berlusconi foi pioneiro e que foi aperfeiçoada pelos populistas de direita pelo
mundo fora, continuará a triunfar. A única maneira de quebrar esse feitiço
tóxico é refundar a política com uma missão moral, mas tangível, que realmente
proporcione melhorias concretas para os trabalhadores. E isso é precisamente o
que Berlusconi não conseguiu fazer.
•
Paolo Gerbaudo
Doutor em Media and Communications pelo Goldsmiths College
(University of London) e professor do Departamento de Humanidades Digitais e director
do Centro de Cultura Digital do King’s College em Londres. Publicou no Brasil o
livro «Redes e Ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo» e «Máscaras e
bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global» pela Editora Funilaria.
Nota da edição
Este texto foi publicado na Jacobin
Brasil com tradução de Caio Valiengo. Foi revisto para publicação em português
no Punkto.
Ficha Técnica
«Silvio Berlusconi partiu, mas o populismo reaccionário continua» • Paolo
Gerbaudo
Data de publicação: 14.06.2023
Edição #38 • Primavera 2023 •