Silvio Berlusconi partiu, mas o populismo reaccionário continua • Paolo Gerbaudo

 



Muitos políticos populistas de direita que dominaram a década de 2010 foram comparados a Berlusconi, sendo o primeiro deles o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Como Trump, e bem antes dele, Berlusconi insistiu no facto de não ser um político de carreira, mas sim um “empresário self-made” de sucesso, que decidiu entrar na política para salvar o seu país da esquerda. Como Trump, Berlusconi deve o seu sucesso ao uso extraordinário da televisão, o que, no seu caso, foi facilitado pelo facto de possuir a maioria dos canais privados do país. E, finalmente, tal como Trump, Berlusconi conquistou a cena política ao ignorar todas as normas de cortesia e polidez institucionais, apresentando-se absurdamente como uma vítima de juízes e autoridades eleitorais, sem nunca se esquivar das tácticas mais vulgares e sensacionalistas para chamar a atenção do público – incluindo sua famosa propensão para piadas sexuais.

Berlusconi incorporou o que Antonio Gramsci descreveu como o “gosto pelo operístico” do povo italiano, com os seus comícios e intervenções na televisão apresentando momentos que caberiam num programa de humor. Em termos de conteúdo político, porém, ele era simplesmente um neoliberal: a sua revolução consistia em cortar impostos e burocracia e em desregular o trabalho. Na verdade, ele deve ser visto, historicamente, como o elo entre o neoliberalismo e o populismo.

Em Itália, Berlusconi foi fundamental para permitir que a extrema-direita entrasse na política dominante, forjando alianças com o partido separatista Liga do Norte e com o partido pós-fascista Alleanza Nazionale, do qual descende o partido da actual primeira-ministra, Giorgia Meloni (Meloni ganhou destaque pela primeira vez ao servir como Ministra da Juventude no último governo de Berlusconi).

Curiosamente, olhando para trás, a mudança da política italiana, cada vez mais para a direita nacionalista, fez Berlusconi parecer relativamente moderado. No entanto, o seu ataque constante aos trabalhadores, os seus supostos vínculos com a máfia, a sua manipulação do sistema legal, as suas políticas económicas desastrosas que aceleraram o declínio industrial do país e a sua celebração do individualismo extremo criaram as condições para a actual viragem reaccionária em Itália.

Um elemento-chave do seu sucesso, que foi imitado por populistas de direita no mundo todo, foi a sua capacidade de transformar as acusações contra ele em combustível para a sua sobrevivência. A carreira de Berlusconi foi marcada por processos por crimes relacionados com a máfia, a corrupção e a fuga aos impostos. Como resposta, Berlusconi adoptou uma abordagem em duas frentes. Por um lado, insistiu vigorosamente que era inocente, vítima de juízes comunistas – a pessoa mais perseguida da história da humanidade. Por outro lado, para o benefício de seus apoiantes mais dissimulados, especialmente aqueles da classe empresarial, muitas vezes envolvidos em práticas ilegais ou limítrofes, ele frequentemente apelava para o facto do seu comportamento não ser tão puro, mas, na verdade, quem o é?

Quando saiu à pressa, pela última vez, da residência oficial do primeiro-ministro, a 16 de Novembro de 2011, Silvio Berlusconi parecia um homem humilhado. As finanças italianas estavam com problemas, com os investidores internacionais a apostar contra os títulos do tesouro do país; os procuradores estavam atrás dele devido ao infame escândalo “bunga bunga”, que envolvia uma trabalhadora do sexo menor de idade; e os aliados europeus como Nicolas Sarkozy e Angela Merkel tornaram público o seu descontentamento com ele. Poucos teriam imaginado na época o quanto a política futura seguiria o modelo populista de Berlusconi.

Berlusconi morreu aos 86 anos – estava internado em um hospital de Milão, a tratar uma infecção pulmonar. No entanto, se olharmos à nossa volta podemos ver o seu legado em todo o lado. Na verdade, os anos que se seguiram à saída de Berlusconi do cargo justificaram o seu estilo político, que combinava uma política de culto à personalidade extrema, um uso habilidoso dos media e uma demagogia desavergonhada – tudo para explorar a desilusão e o cinismo dos eleitores sobre o status quo. É difícil pensar num outro político mais prefigurativo da política que estaria por vir. Os ecos das actuais tribulações legais de Trump nos EUA são claros – e não são um bom augúrio para aqueles que pensam que o destino do ex-presidente será selado por mais uma acusação.

Em Itália, a ascensão de Berlusconi foi possibilitada pelo cansaço que a democracia liberal italiana cultivou nas pessoas comuns, desde o escândalo de corrupção de Tangentopoli no início dos anos 1990. Noutros países, as figuras de direita aproveitaram-se de sentimentos semelhantes de desilusão em relação à política que não parecem favorecer os interesses de ninguém a não ser da elite.

Enquanto a política for vista – às vezes com razão – como um grande “pântano” (para citar a retórica trumpista) de corrupção e hipocrisia, a política cínica, da qual Berlusconi foi pioneiro e que foi aperfeiçoada pelos populistas de direita pelo mundo fora, continuará a triunfar. A única maneira de quebrar esse feitiço tóxico é refundar a política com uma missão moral, mas tangível, que realmente proporcione melhorias concretas para os trabalhadores. E isso é precisamente o que Berlusconi não conseguiu fazer.

 

 

Paolo Gerbaudo

Doutor em Media and Communications pelo Goldsmiths College (University of London) e professor do Departamento de Humanidades Digitais e director do Centro de Cultura Digital do King’s College em Londres. Publicou no Brasil o livro «Redes e Ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo» e «Máscaras e bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global» pela Editora Funilaria.

 

Nota da edição

Este texto foi publicado na Jacobin Brasil com tradução de Caio Valiengo. Foi revisto para publicação em português no Punkto.


Ficha Técnica

«Silvio Berlusconi partiu, mas o populismo reaccionário continua» • Paolo Gerbaudo

Data de publicação: 14.06.2023

Edição #38 • Primavera 2023 •