Quem, se eu gritasse? \ Álvaro Domingues




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Quem, se eu gritasse?
Álvaro Domingues

Os anjos (que costumam cantar em latim) reuniram-se um dia e cantaram para os pastores Gloria in excelsis Deo et in terra pax (nunca houve) etc. Tinha nascido quem sabeis numas instalações péssimas, um burro de um lado, uma vaca do outro, mãe virgem e pai mais ou menos incógnito. Três reis magos viriam depois animar esta função. Repetem-se todos os anos os festejos e redobram os reclames na TV, uma popota e o pai natal vestido de vermelho hohoho!!! e luzes a acender e a apagar em pinheiros.
Os anjos são os mensageiros dos deuses, os que anunciam a glória, os desígnios divinos. Organizados em hierarquias, há serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, potestades, principados, arcanjos e os propriamente ditos anjos, incluindo os da guarda, andróginos, sempre com crianças à frente para proteger dos precipícios. Pintados e esculpidos, são normalmente bem-apessoados, de ar sereno, e beleza sem sal, loiros a tocar trombeta, de cabelos aos cachos (está quase tudo…), ora com asas, ora sem asas, vestidos com longos drapeados, quase cortinados e reposteiros, só com os pés de fora. Não há anjas. São machos. Quando caídos, é o diabo. Quando crianças, andam nuzinhos e mostram boa carnação e regueifas abundantes. Confundem-se assim com divindades muito pagãs e lascivas; um desses, um tal Cupido, por exemplo, andava metido com a Psique, rapariga problemática, na qual Freud se inspirou para fazer psicanálise (estou a um passo de perder o fio e a meada).
De tudo isto se me ia povoando o pensamento para não cair na tentação de sair dos salmos, dos evangelhos, dos livros sérios, das coisas sagradas e na ordinarice habitual do sexo dos anjos que, seja anatomia ou teologia, é coisa que com facilidade acaba emporcalhada, mais caso, menos caso, profanando a moral e a quadra natalícia, entre outros assuntos e acontecimentos.
O caso é que me apareceu esta espécie de anjo guitarrista, perna cruzada, túnica atirada para o lado a mostrar o corpo, sentado em cima de uma bola branca que bem podia ser o mundo em tempos de grande glaciação global ou talvez apenas caiado pela alva cabeleira de um cometa que se lhe atravessou na órbita. No muro onde a Silvana Ciara e o Carlo pintaram os nomes, estão umas calças penduradas e uma camisola no chão, cadeiras tombadas e móveis aos trambolhões, anunciando excesso de hormona, fogosidades, incontroláveis ímpetos e brincadeira que o anjo disfarça mal e a sonoridade da música não abafa.
Enfim…, demasiados cabos eléctricos pelo ar, muita construção de variados feitios, uma grande árvore esguedelhada e aquela gigantesca molhada tubular ao fundo, riscada em faixas de azul e branco, misteriosa, de exorbitante cilindrada.
Agora que estava fixado nesses canudos, ia-me esquecendo dos bidões azuis – cilindros de igual feitio. Está tudo ligado. O que não se sabe é com quê. Talvez os fios que atam tudo por cima, talvez este anjo fadista que Rainer Maria Rilke não deve ter conhecido quando escreveu as suas elegias: “Quem, se eu gritasse, dentre as legiões dos anjos / me ouviria?” Ninguém, pois claro. Este aqui, além de distraído e a borrifar-se para o que quer que seja, até tem as orelhas tapadas com cabelos negros em penteado de capacete (e, se calhar, também é capado dos órgãos ouvidores).
Havei todos, pois, umas alegres festividades nestes dias, muito amor e sorrisos rasgados et in terra pax sabe-se lá quando.
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Imagem
Torrão, Trafaria, Álvaro Domingues, 2015.
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Álvaro Domingues
Melgaço, 1959. É geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
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Ficha técnica
Data de publicação: 21 de Dezembro 2015
Etiqueta: Geografias \ cidades



Tornos. Uma escatologia Turístico-Patrimonial \ Rui Gilman



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Tornos
Uma escatologia Turístico-Patrimonial
Rui Gilman

Turismo e património são vulgarmente apresentados como entidades confrontantes, o primeiro mais ligado à economia e ao lazer, o segundo mais conotado com a cultura e a identidade. Aceita-se que os dois se toquem apenas ligeira e ocasionalmente para criar sinergias. No entanto, a realidade é bem diferente. Turismo e património não só estão intimamente ligados como operam em conjunto, segundo as mesmas regras e princípios. O turismo condiciona, orienta e enforma o conceito de património e as estratégias para sua conservação, classificação e reabilitação, sendo ambos os fenómenos emanações duma lógica do capitalismo globalizante e directamente ligados à aceleração do tempo.
Se, efectivamente, salvaguardamos o património movidos pelo turismo, que diz isso sobre a validade dessa mesma conservação? O que estaremos realmente a conservar? De que forma e qual a autenticidade do que conservamos? Numa sociedade saturada pela atomização da imagem e pela multiplicação virtual do real, qual o futuro da relação turismo-património?
“Olhos em todo lado. Nenhum ângulo morto.
Com que sonharemos quando tudo for visível?
Sonharemos estar cegos.” [1]


Jenny Holzer, Truisms, Money creates taste, 1982. Times Square, New York.

The economy, stupid.
Porto:
Melhor destino europeu de 2012, segundo a European Consumers Choice.
18 Mil passageiros de cruzeiros no mês de Setembro, igualando o total de 2009.
1 Milhão de dormidas em 2004; 2,4 milhões de dormidas em 2013.
Aeroporto Sá Carneiro passa de 2,4 a 6,7 milhões de passageiros, entre 2004 e 2013.
Cais da Ribeira, uma das “31 ruas a percorrer antes morrer”, para Condé Naste Traveler.
Destino gastronómico do ano em 2013 na Wine.
Edifício da Alfândega, “melhor centro de conferências” da Europa em 2014.
Livraria Lello, terceira melhor do mundo no Lonely Planet's Best in Travel 2011.
Yeatman Hotel, “Best Dining Experience” nos Condé Nast Johansens 2015.
74 hotéis, 27 hostels e mais 1000 alojamentos sazonais ou permanentes para turistas.
1ºtrimestre de 2014: metade dos fogos licenciados para reabilitação destinam-se ao sector turístico.
Março de 2014: Presidente de Câmara eleito presidente da Associação de Turismo do Porto e Norte.
Melhor destino europeu 2014, segundo a European Consumers Choice.

No espaço de uma década de actividade económica residual, o turismo passou a “motor económico” da cidade do Porto e é um exemplo paradigmático do crescente peso do turismo na economia nacional, representando actualmente 5,8% do PIB (quase o dobro da média europeia). Este crescimento rápido e exponencial do turismo nas cidades, nomeadamente cidades históricas, promove mudanças socioeconómicas profundas, levando a conflitos de interesse entre população residente e população flutuante. Nem sempre muito divulgados e vulgarmente abafados pela propaganda pró-turística, estes efeitos estão sobejamente estudados e documentados: fenómenos de gentrificação com a “expulsão” de população residente provocada pelo aumento vertiginoso do custo de vida (rendas, alimentação e outros bens essenciais); substituição do pequeno comércio tradicional por comércio especializado para turismo e/ou por grandes marcas internacionais; privatização e mercantilização dos espaços públicos (comércio ambulante de souvenirs e esplanadas a ocuparem os passeios, entradas pagas em monumentos e jardins); criação de pedaços de cidade monotemáticos, complicações de trânsito; apropriação turística de lojas tradicionais e franchisição das mesmas.
O recente documentário “Bye Bye Barcelona” explora estes atritos e consequências do aumento de fluxo turístico: mostra o ciclo vicioso criado pela indústria turística que quanto mais aumenta e mais zonas invade, mais dependente vai tornando a cidade. Aborda, também, a promiscuidade entre os poderes político e económico no âmbito do turismo.
Em cidades históricas, como Porto ou Barcelona, este turismo aparece continuamente associado ao património - turismo cultural - que os poderes político e económico, através dos media, vendem como um turismo diferente: um turismo “benigno”, mais culto, que não só não modifica qualitativamente a identidade do local como o ajuda a aprofundar esse mesmo sentido de identidade, valorizando-o quer a nível material quer a nível imaterial.
Na verdade, o turismo cultural não passa duma subsegmentação do turismo, seguindo os mesmos moldes economicistas. O património é o recurso e o turismo cultural a sua forma de exploração. O valor do património é mensurável pela sua capacidade de gerar receitas via turismo, sendo estas posteriormente usadas para beneficio e conservação do mesmo, tendo em vista a multiplicação do número de turistas. Estamos perante uma lógica circular e autojustificada. A recente polémica sobre as taxas turísticas em Lisboa demonstra este raciocínio: segundo a Câmara, o turismo teria causado “um acréscimo de pressão no espaço urbano, nas infra-estruturas e equipamentos públicos” que exigiria um reforço das operações de limpeza, segurança e manutenção, “sob pena da excessiva ocupação/lotação e precoce degradação colocar em causa a sustentabilidade do crescimento do destino turístico” [2]. As taxas não têm, assim, qualquer propósito regulatório: o turismo é taxado para amenizar distúrbios causados pelo próprio turismo, para permitir que haja mais turismo, para assim permitir que se recolham mais taxas, para amenizar maiores distúrbios, para que haja mais turismo, numa lógica circular, paradoxal, crescente e perpétua.


Barbara Kruger, Untitled (Your Fictions Become History), 1983
Détournement Situacionista, Sociedade do espectáculo, 1973.

De conhecimento a produto
Este género de raciocínio, exemplificado pelo caso das taxas turísticas em Lisboa, inclui-se numa doutrina fetichista patrimonial patrocinada e “simbolizada pela política de industrialização da UNESCO, com a sua Convenção do Património Mundial e a rotulagem dos bens culturais à escala mundial” convertendo “as nossas heranças culturais em produtos de consumo mercantil.” [3]. Turismo e património aparecem assim fundidos, indestrinçáveis. Renunciar a um é abdicar do outro.
Para compreender o presente e vislumbrar o futuro da relação turismo-património necessitamos de recuar ao passado. Analisar a evolução dos sucessivos conceitos de turismo e de património é analisarmos a construção, desenvolvimento e mudança da identidade ocidental e as suas relações com a temporalidade e com o espaço. Cruzando as cronologias de turismo e património detecta-se uma evolução paralela em ciclos temporais sucessivos cada vez mais curtos, aumentando em cada um o âmbito e alcance do seu próprio significado, ao mesmo tempo que se cruzam com noções de tempo, espaço, liberdade ou democracia. Podemos dividi-los em cinco ciclos.

Civilização da Imagem: Século XV – Século XVIII
A primeira noção de património nasce do aparecimento do conceito “do monumento histórico, sob a designação de antiguidades” na Itália do século XV [4]. Este transforma a visão ocidental, promovendo uma atitude reflexiva sobre o passado à luz da história, do conhecimento e do gosto, rompendo com o teocentrismo medieval. Desta mudança de paradigma nasce o Grand Tour, em meados do século XVII, e com ele o turismo moderno. Podendo levar entre meses a anos, o Grand Tour, quase um rito de passagem, consistia numa viagem que jovens nobres e da alta burguesia do norte da Europa faziam pelo velho continente, acompanhados de guias ou tutores, a fim de tomar contacto com o legado cultural clássico. Nasce assim uma nova forma de viagem, de carácter individualista, motivada pelo prazer e pelo conhecimento, e que rompe com a tradição medieval de viagem: a peregrinação religiosa.

Industrialização: Século XIX – Século XX anos 30
Um segundo ciclo de aceleração e desenvolvimento surge com advento da Revolução Industrial. Esta produz alterações e destruições que levam à substituição do conceito de antiguidades pelo de “monumentos históricos”, uma protecção de tipo museológico devido ao seu interesse para a Arte e a História. O monumento é assim, dotado de “um diferente estatuto temporal” passando “a um objecto de culto (...) dotado de (...) um papel memorial impreciso (...), símbolo de uma era perdida pelo avanço da técnica” [5]. Simultaneamente, a Revolução Industrial massifica o uso do comboio e do barco a vapor, popularizando primeiro e extinguindo depois o Grand Tour, substituído por viagens de lazer mais próximas do turismo contemporâneo. Em 1841, Thomas Cook cria a primeira agência de viagens, inaugurando a era das viagens organizadas e dos pacotes turísticos (a “fordização” do turismo). Em 1891, a American Express cria o primeiro sistema de cheques de viagem em larga escala, facilitando as transacções económicas (globalização).
Em 1931, em Atenas, realiza-se o primeiro congresso internacional dedicado à conservação artística e histórica de monumentos. Entre guerras, o interesse pelo património é renovado pelo ressurgimento dos nacionalismos autoritários. Património e turismo aparecem unidos, o primeiro como símbolo de identidade nacional e o segundo como veículo de disseminação do primeiro às massas. Nas palavras de António Ferro, responsável pelo Secretariado da Propaganda Nacional “O turismo perde, assim, o seu carácter de pequena e frívola indústria para desempenhar o altíssimo papel de encenador e decorador da nação” [6]. Surgem nesta altura as primeiras colónias de férias acessíveis ao proletariado como os Butlins (de iniciativa privada), em Inglaterra, ou a gigantesca estância balnear de Prora (de iniciativa estatal), na Alemanha. Apesar do clima económico desfavorável criar uma quebra nos números de turismo, este beneficia da popularização do automóvel, do surgimento das primeiras redes de auto-estradas e da abertura das primeiras rotas aéreas regulares de passageiros.

Democratização: 1945 – 1970
A grande aceleração e expansão quer de turismo, quer de património, dá-se após a 2ª Guerra Mundial. Estabilidade social, prosperidade económica e boom demográfico, aliados à necessidade de reconversão da economia de guerra, dão origem ao nascimento da cultura do ócio no mundo ocidental. Uma classe média, incentivada por uma série de iniciativas legislativas (menor horário de trabalho, maiores períodos de férias, mais apoios sociais) e pelo recém-adquirido poder aquisitivo, começa a interessar-se por viagens. Tal fez com que se banalizasse o carro, se tornassem mais acessíveis as viagens de avião (voos charter) e vulgarizasse o barco de cruzeiro.
Este período é decisivo tanto para o turismo e para o património como para a ligação umbilical dos dois através do consumo cultural. É nos anos 60 que, em França, através de André Malraux, a expressão património adquire o significado que hoje lhe conhecemos. Citando Choay: “o grande projecto de democratização do saber, herdado do Iluminismo e reanimado pela vontade moderna de erradicar as diferenças e os privilégios do usufruto dos valores intelectuais e artísticos, a par do desenvolvimento da sociedade de lazer e do seu correlativo, o turismo cultural dito de massas, estão na origem da expansão talvez mais significativa, a do público dos monumentos históricos” [7]. O Ministério da Cultura Francês que Malraux dirige, faz de França pioneira da política cultural liberal de Estado oferecendo à “Europa o modelo jurídico, administrativo e técnico” [8]. Esta visão ocidental estabelece-se progressivamente como predominante/hegemónica, culminando na assinatura da Carta de Veneza, em 1964. É durante este período que é constituída a UNESCO e que são feitas as primeiras campanhas internacionais para a salvaguarda de património histórico como em Abu-Simbel.

Informatização: 1970 – 1990
Na década de 70 o turismo decresce fruto da crise energética, a primeira grande crise do capitalismo desde do crash de 1929. O dólar torna-se moeda flutuante. Durante estes anos de abrandamento inicia-se o processo global de patrimonialização com a assinatura da Convenção do Património Mundial (1972) Comité do Património Mundial (1976) e a inscrição dos primeiros sítios na Lista do Património Mundial (1978).
A década seguinte dá novo fôlego ao capitalismo ocidental com a desregulação progressiva dos mercados financeiros e a informatização em larga escala (primeiros computadores pessoais). Dá-se início ao processo de internacionalização das grandes empresas hoteleiras e dos maiores operadores turísticos. Surgem o TGV e os novos aviões comerciais, ao mesmo tempo que, em 1980, se dá assinatura da Declaração Mundial do Turismo de Manila, afirmando o turismo como essencial à vida das nações quer a nível social, cultural e educacional, quer nas suas relações internacionais com outros países.

Virtualização: 1990 – dias de hoje
Na década de 90 assiste-se ao nascimento do verdadeiro mercado global, à queda do comunismo, à solidificação das redes de comunicação, à ascensão da televisão global e ao advento tecnológico da internet. O turismo beneficia desta nova consciência global, bem como das políticas que fomentam o livre-trânsito de pessoas (Tratado de Maastricht em 92 e Acordo Schengen em 97). As viagens de avião tornam-se progressivamente mais acessíveis e mais frequentes graças às companhias low cost e à liberalização da gestão dos aeroportos.
O 11 de Setembro (2001) e a crise do sub-prime (2008) constituem-se como quedas temporárias numa trajectória ascendente e contínua dos números do turismo, uma das únicas indústrias com lucros e taxas de crescimento inalterados pela depressão económica. Tal faz crescer a dependência económica de cidades e países em crise, onde o turismo passa a ser visto como tábua de salvação.
No mesmo espaço de tempo populariza-se o GPS e o Google, ao passo que os telemóveis tornam-se de minicomputadores, massificando o uso da fotografia e a ininterrupta ligação à internet. Entretanto as redes sociais substituem os meios clássicos de divulgação turística, contribuindo para a diversificação do turismo numa infinidade de sub-segmentações. Do turismo médico ao turismo de guerra, do turismo LGBT ao turismo sexual.
No campo do património as classificações multiplicaram-se várias vezes em número, encurtando progressivamente o espaço de tempo entre construção e classificação. Simultaneamente foram-se criando mais categorias patrimoniais nacionais e internacionais, abrangendo um universo de criações humanas cada vez mais vasto. Exemplo disso é a assinatura da Convenção para Salvaguarda do Património Cultural Intangível (2003) e a criação da Lista do Património Cultural Intangível (2008). Este património imaterial abrange coisas tão díspares como folclore, tradições orais e até, criações digitais.


 Jenny Holzer, The Survival series, Protect Me From What I want, 1983-1985.

Nostalgia-Tecnologia
“Assim é o turismo, nascido vinculado à morte, convertendo o mundo num museu, uma cidade fantasma de que (os turistas) são coleccionadores de vestígios.” [9]
Escalpelizando o presente, revisto o passado, interessa vaticinar o advir do turismo, do património e da sua dialéctica. Comprovamos a relação umbilical entre turismo e património. Vimos como os dois conceitos foram forjados sobre a égide da Civilização da Imagem, substituta da Civilização da Palavra. Vimos como as evoluções tecnológicas, politicas e sociais fizeram transitar os dois conceitos, da área da cultura do conhecimento para a do consumo de massas. Da união improvável entre as aspirações sociais igualitárias e a ânsia de lucro económico nasceu um novo paradigma de relação com os monumentos históricos e as viagens enquanto produtos de consumo cultural. “O museu imaginário de André Malraux não é apenas o princípio de um ilustrado populismo da cultura, como abre também o recinto sagrado do artístico à multiplicação das visões” [10]. A visão unilateral de uma elite cultural (transmitida de cima para baixo) é substituída por uma visão múltipla em que todos os intervenientes estão em igualdade. Esta nova visão múltipla assenta no poder de mediação das imagens. Os objectos, descontextualizados “da sua substância cultural inicial (...) convertem-se basicamente, em imagens” [11]. A democratização do acesso à fotografia fez com que esta se tornasse o meio preferencial de apropriação dos objectos culturais e das vivências humanas. No entanto, esta apropriação é apenas ilusoriamente mais pessoal, pois os média encarregam-se de forjar uma certa educação visual através da repetição constante de imagens via televisão, cinema ou publicidade. É a estandardização, sincronização e mundialização do olhar e dos afectos. Estes processos criam e decorrem numa temporalidade nova que Paul Virilio designa por “tempo acidental”, um tempo instantâneo e inabitável criado pela aceleração/compressão do espaço-tempo, ditada pela tecnologia e do qual o turismo é factor acelerador. A sucessão destes fragmentos sucessivos de tempo cria uma noção de transhistória, onde o património é alojado, despojado de qualquer qualidade particular e reduzido a imagens. A sobreestimulação, a simultaneidade, a ubiquidade e complexidade do edifício de superestruturas económico-sócio-culturais que criamos são tais que se tornam de impossível entendimento para o Homem, fazendo-o delegar progressivamente na máquina a interpretação das suas vivências. Esta progressiva falta de capacidade de compreensão intelectual e de ligação emocional efectiva, criada pela associação entre velocidade e quantidade de informação, condena as políticas patrimoniais a aproximarem-se da lógica do Parque Temático. A autenticidade, já pouco distinguível, é perdida em favor do simulacro. O Parque Temático Patrimonial, através de tecnologias de hiper-realidade e de bem oleadas técnicas de psicologia do consumo, consegue servir uma versão de património simplificada mas entendível.
A reincarnação do património enquanto Parque Temático, que já em parte habitamos, é apenas um estádio intermédio antes da dissolução do mesmo. A classificação patrimonial de cada vez mais criações (quer humanas, quer naturais), cada vez mais rápida e em domínios cada vez mais vastos, é disso sintoma. Classificamos e conservamos para arquivamento e memória futura, impelidos simultaneamente pela consciência clara da nossa capacidade de destruição total e da nossa total incapacidade para a deter. O processo de patrimonialização é uma catalogação para a extinção.
O turismo cultural, exploração económica da nostalgia, tenderá também ele a desaparecer à medida que a sociedade vá trocando memória humana pela memória artificial, pedras por bytes, real por virtual, substituindo nostalgia por tecnologia.
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Referências
1. Paul Virilio, “Cyberwar, God and Television: interview with Paul Virilio”.
2.“Como vai ser paga a taxa turística?” in Observador , 11/11/2014.
3. Françoise Choay, Património e Mundialização, p.24.
4. Françoise Choay, Alegoria do Património, p.221.
5. Ibidem, pág. 222.
6. António Ferro, “Turismo, fonte de riqueza e poesia”.
7. Françoise Choay, Alegoria do Património, p.225.
8. Idem, pág. 223.
9. Alexandre Alves Costa, Património e Turismo, Ciclo de Debates, 1999, p.21.
10. Ignasi de Solà-Morales, Territorios, pág.201.
11. Idem, pág.198.
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Cibergrafria:
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Imagem de capa
Turistas sentados numa mesa na Praça de São Marcos, durantes cheias em Veneza, em 2012. Foto: Associated Press.
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Rui Gilman
Porto, 1982. Licenciado em Arquitectura pela Escola Superior Artística do Porto, frequentou o Curso de Estudos Avançados em Património na FAUP, criador e locutor do programa de arquitectura "cidadesINdiziveis" na Radio Manobras.


Dionora. Para uma Arquitectura Menor \ Patrício del Real



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Dionora. Para uma
Arquitectura Menor
Patrício del Real


Não deve surpreender-nos que num mundo assim, onde os mais belos jovens tinham sido reproduzidos nus e num tamanho gigantesco, por todos os lados, se desencadeasse uma virulenta febre de ninfomarmáticos e ninfomarmóreas.
Reinaldo Arenas

Dionora domina o terraço do seu edifício. Há muito já que se mudou para a açoteia de uma antiga construção de Habana Vieja: "Fui a primeira moradora", diz com uma voz forte e segura, "deste 'palácio', antes da Revolução" - em Havana, todas as casas velhas se transformam em palácios. Ostentando uma atitude senhorial, conta como "alargou ao terraço" o seu espaço "depois de a moradora se ter ido embora do país". Defensora das conquistas da Revolução, admite também os seus malogros, mas adverte-me que não pense que o estado ruinoso do edifício se deve à negligência, que não vá dizer "lá fora" que o que aqui se vê é sinal de um fracasso colectivo. Dionora é combativa; vive há muito tempo já uma batalha quotidiana: litígios com os vizinhos devidos às infiltrações constantes; negociações no mercado negro enquanto procura materiais para prosseguir a sua expansão permanente sobre as açoteias de Havana. Dionora combate para conservar o seu pequeno estado matriarcal. Embora defendida por um sistema legal e ético, Dionora luta contra uma cidade colonial que está a ser objecto de saneamento e posta ao serviço do turismo internacional desde que foi declarada pela UNESCO, em 1982, Património da Humanidade. As recentes transformações do Estado cubano, a legalização da propriedade privada em finais de 2010, com o objectivo da inserção do espaço urbano num mercado imobiliário nascente, geram novos conflitos para aqueles que, como os construtores de barbacoas [i] vivem intensamente o património histórico da nação cubana; por detrás das pressões do mercado internacional perfila-se a geografia económica nacional e consolida-se a imagem do "cubano" através de uma arquitectura colonial consumida por turistas.
No Rio de Janeiro, a batalha pela cidade assumiu dimensões olímpicas. Recentemente, o presidente do Comité Olímpico Internacional, Jacques Rogge, reclamou a "urbanização" das favelas do Rio. Rogge declarou que um grande investimento em infra-estruturas seria qualquer coisa de "fantástico" [1]. Por detrás da soma delirante, calculada em mais de cinco mil milhões de dólares, de um projecto fantasista, esconde-se o ditame de urbanizar - ou seja, de produzir um sujeito urbano. Os recentes projectos de arquitectura e urbanismo no Rio revelam uma cidade sequestrada pelo Olimpo, na qual os mecanismos internacionais são usados para expulsar ("relocalizar", na boa gíria burocrática) sujeitos incivilizados em operações menos espectaculares do que as recentes incursões paramilitares em favelas transformadas, através da imprensa e da televisão, em baluartes do tráfico internacional de drogas. Os construtores de favelas já não têm apenas de combater quotidianamente situações e organismos locais; hoje, é-lhes necessário ainda inserirem-se em circuitos internacionais e defenderem, através de organismos como a Organização dos Estados Americanos, reivindicações locais, não esquecendo que tais instituições possuem os seus próprios mecanismos de ofuscação [2]. A situação relocalizou as favelas do Rio, uma vez que o olhar internacional as deslocou para o sector dos desportos. A visão das favelas, apresentada nas páginas internacionais e de desporto, produz uma ofuscação populista entre espectáculos de violência real e violência ritualizada. Este modo de apresentar a questão, que tenta conter e localizar o problema como sendo o da existência de focos de intensidade urbana malsã, faz-nos esquecer que é o sujeito urbano, que Rogge deseja, que materializa o tráfico de drogas, e que as supostas redes internacionais têm a sua contrapartida nos consórcios internacionais das empresas farmacêuticas que possibilitam os escândalos olímpicos do doping.
"You don't need these", dizia Encarnación num inglês refinado aos agentes da polícia da cidade de Nova York; "não faço mal a ninguém", continuava, entregando-lhes as algemas que, deslizando, lhe tinham caído das mãos pequenas. Há mais de dez anos que Encarnación vende tamales a um dólar em Harlem, a trabalhadores, a estudantes, ao autor deste texto, a menos de um quarteirão de distância de um McDonalds, onde se fala espanhol. Encarnación vivia no Estado de Guerrero, no México, "com um telhado de folhas de palma e paredes de adobe", e, como muitos, veio para os Estados Unidos para melhorar a vida dos que ficaram no seu país [3]. Encarnación também melhorou Harlem; a sua pequena banca móvel (um carrinho de supermercado) à boca da estação de metro, junto a um pequeno parque, acabou por desenvolver ao longo de muitos anos uma pequena zona comercial efémera, onde, dependendo do dia e do tempo, se podem encontrar fruta, flores, bijutaria e até mesmo artigos de segunda mão. Esta forma de pressão sobre o uso correcto e oficial da cidade provocou a acção policial directamente sofrida por Encarnación, mais como um aviso destinado a lembrar quem realmente manda do que da efectividade de um poder que tem de negociar com uma economia estratificada e, assim, usar múltiplas estratégias de cooptação. As acções urbanizadoras da polícia de Nova Iorque não são tão espectaculares como as do Rio - as detenções efectuadas pela polícia da cidade são, em geral, bastante silenciosos. Menos violenta ainda é a política oficial de beneficiação estética da cidade (Arts in the Parks Program), que instala, temporária mas ruidosamente, esculturas nos parques da cidade, urbanizando assim uma cidade já urbana e que, em certas ocasiões, se sobre-urbaniza. As ovelhas de bronze do escultor Peter Woytuk, que disputam agora com Encarnación o pequeno parque, não serão, sem dúvida, detidas [4].


1. “Par de Ovelhas”, Escultura de bronze. Peter Woytuk na Broadway, Harlem, Nova Iorque (Via Flickr).

Em Havana, Rio de Janeiro e Nova Iorque, nestas três cidades tão diferentes, como em tantas outras, entretecem-se relações de poder no espaço urbano que desdobram um leque de desejos locais e internacionais, sob uma globalização que mobiliza e põe a produzir todos os estratos sociais e económicos. Pequenas acções, como vender um tamal a um dólar, mobilizam estratégias que revelam mercados paralelos em Nova Iorque (evitemos andar por aí a dizer que o mercado negro só existe no Terceiro Mundo), que, como em Havana ou no Rio, melhoram um certo número de vidas. O desejo de uma vida melhor transformou-se num imaginário colectivo que, nas suas pulsações globais, transcende qualquer geografia. As infiltrações contra que Dionora batalha na sua açoteia, manifestam um mundo de fendas através do qual a informação se globaliza e se democratiza. Este uso intenso do espaço urbano revela uma cidade conectada, articulada em redes internacionais, tanto legais como alheias à realidade oficial, activadas por um sujeito local que navega essas intensidades segundo os seus desejos e necessidades, produzindo múltiplas cidades dentro e fora dela. A cidade é uma zona de contacto intenso e expansivo onde o desejo encontra a sua forma. Surge aqui uma clara contradição, porque a intensificação dos contactos e a expansão das redes manifestam uma heterogeneidade que fragmenta a totalidade implícita na ideia de cidade. É, portanto, necessário falar, não de cidade, mas de cidades. Esta necessidade de falar no plural, assinalada há já algum tempo por Michel de Certeau, entre outros, e de romper com a ideologia da universalidade na qual se esconde ainda a táctica de reduzir "o outro", continua a ser um obstáculo para os que tentam articular meta-geografias, como a que a noção de Ibero-América supõe. Esta noção, e a relação histórico-cultural iniciada pela colonização espanhola e portuguesa a que a noção implicitamente se refere, articula um território possível de diferença e resistência, mas que se dilui com Encarnación, que articula outra comunidade, que não é só aquela que vive nos Estados Unidos, mas a que vive nos fluxos migratórios de uma força de trabalho "liberalizada". Inserir trabalhadores deslocados no quadro de geografias culturais particularistas parece ser um acto comprometedor, uma vez que os nigerianos na Península Ibérica, que não participam dos benefícios culturais de uma ideologia ibero-americanista, por exemplo, sofrem do mesmo modo que os equatorianos que hipoteticamente poderão mobilizar uma suposta cultura comum como se fosse uma carta de chamada. A mobilização do termo e da ideia de uma comunidade ibero-americana pode ser um acto de reivindicação, mas a ideia esconde uma consagração implícita de valores e tradições que reclamam unidade de espírito e transformam a história e a cultura em essências, por mais que as fragmentemos em pluralidades. A noção de Ibero-América depende da ideia de território; esta convergência entre espírito e território manifesta-se hoje como sintoma de retracção e alargamento do Estado frente ao mercado internacional. Deve ter-se presente que o imaginário luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre, que serviu para exaltar as bondades do colonialismo e da ditadura num momento de debilidade democrática no chamado Terceiro Mundo, serve como advertência perante qualquer meta-geografia que insista em articular oposições e exclusões. Creio ser hoje mais importante falar de uma rede de cidades do que de territórios, uma vez que a crescente urbanização agenciada actualmente pela expansão do mercado internacional reclama de nós novos imaginários geográficos. A chamada comunidade transnacional ibero-americana exerce as suas próprias exclusões, e se há alguma coisa que da globalização devamos recuperar, é precisamente a sua força de inclusão. Assim, devemos menorizar a Ibero-América.


2. Biblioteca de Espanha no Bairro de Santo Domingo, em Medellin, Colómbia. Projecto de Giancarlo Mazzanti, 2005-2007  (via wikipédia)

Hoje, ranchos como os de Caracas [ii], que antes não figuravam nos mapas, são cadastrados e incorporados na cidade; no Rio de Janeiro, pode fazer-se um circuito turístico pelas favelas; as barriadas de Lima integram-se plenamente no mercado imobiliário, de acordo com o ideário do economista peruano Hernando de Soto. As acções de uma "linguagem imperial" de "urbanização" passaram ultimamente a tomar por objecto lugares anteriormente inexistentes, excluídos ou demonizados. A cidade é rearticulada hoje enquanto corpo orgânico, quer dizer, como um total diferenciado, não desprovido de conflitos, mas necessariamente funcional sob a globalização. Esta rearticulação, ainda em processo, manifesta-se a diferentes escalas. Em Bogotá, Caracas e Rio, os bairros pobres de Santo Domingo, San Agustín e Alemão respectivamente, foram incorporadas no tecido urbano através de elegantes teleféricos, e, em certos círculos de arquitectura da Ibero-América, encontramos um interesse pontual e renovado pelos processos ditos informais, que dão origem a favelas, ranchos, villas miserias, barbacoas, barriadas, tapancos, chabolas, pueblos jóvenes, shanty towns, slums, bidonvilles, etc. Estabelecem-se assim momentos de contacto, de fascínio e de desejos, entre o marginal e a arquitectura.
A constante luta dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro esforçando-se por melhorarem as suas vidas é uma fonte de admiração e estupefacção para arquitectos que propõem intervenções críticas e para ateliers de escolas de arquitectura que tentam introduzir novos temas, com o objectivo de promoveram a renovação de uma disciplina já comprometida com o poder e de uma profissão cega por uma espectacularização sob a tutela dos star architects. Das condições extremas - extremadas pela intensidade daqueles que as vivem e pela distância daqueles que não a sofrem -, os arquitectos recuperam um agenciamento inventivo do presente e do agora, executado por sujeitos marginais investidos de uma certa inocência e de uma criatividade intensa. O desdobrar-se de estratégias construtivas ad hoc, deste bricolage material e produtivo, solicita o interesse e a admiração, e mobiliza um estranho humanismo que reclama a nossa compaixão e a nossa inveja, revelando a profunda transformação conceptual que os ranchos sofreram. Se antes as villas miserias eram cancros a ser extirpados, são hoje imaginados como padrões urbanos alternativos, construções sociais de onde emergem propostas vernaculares de um "lugar" possível contraposto ao espaço abstracto da cidade moderna. Hoje os processos de construção das barbacoas revelam novos procedimentos de projecto para uma arquitectura sobrecarregada pela tecnologia e reduzida à subjectividade do seu autor. Nestes espaços marginais, alguns descobrem um processo de construção de comunidade enquanto acto social reivindicativo e processo de projecto de resistência; aos dois níveis, social e pessoal, surge aqui como que uma alternativa aos discursos hegemónicos da globalização. A sedução em causa não é nova, possui uma já longa tradição, que, desde o século XIX, tenta reintegrar uma tradição enraizada nas forças descontextualizantes da modernização: trata-se da luta que encontramos em Dionora, quando, armada com baldes de cimento e pequenas vigas de ferro, madeiras e pás, menoriza a subjectividade de género do "construtor", que a própria linguagem prefigura como sujeito masculino. Como já observou a crítica Eve Kosofsky Sedgwick, dos Estados Unidos, a recuperação do não-oficial liberta um fluxo de desejos escondidos. As incursões paramilitares nas favelas do Rio revelam os complexos combates de género de um lugar já altamente politizado. As intervenções dos arquitectos nos ranchos desarticularão os desejos de masculinidade da arquitectura?
A dualidade persistente entre tradição e modernidade foi forjada na arquitectura por um modernismo que desejava ser a linguagem oficial do moderno. Os bairros degradados não podem ser reduzidos a sonhos românticos, a espaços vernaculares de sociabilidade pré-capitalista, numa tentativa visando reproduzir lugares de resistência ao mercado internacional; também não podem ser reduzidos a espaços de um capitalismo selvagem dominados e espectacularizados pela violência; não são lugares de resistência ou espaços de violência, mas constituem âmbitos nos quais descobrimos resistências e violências; por outras palavras, são lugares reais e actuais, não imagens para deleite ou horror de um consumidor afectuoso ou hostil, embora nos dois casos igualmente distante. Neste sentido, qualquer tentativa de articular uma relação entre uma urbanidade intensa de emergência e uma arquitectura emergente na Ibero-América requer a identificação de um momento de inflexão histórica. A valorização de espaços produzidos à margem, ainda que sempre ligados ao mercado, à cidade, à arquitectura, marca a nossa particularidade histórica. Trata-se de uma postura sintomática de um mundo heterogéneo, e também de uma mudança cultural, em que já não vemos, nas suas vastas extensões urbanas, o "atraso da nação", como se dizia nos anos 50 a propósito dos ranchos de Caracas, mas o seu futuro. A capitalização da cidade tornou-se extensiva; mas se se valoriza a experiência vivida pelos residentes dos bairros pobres, se se valorizam os processos de construção, o uso dos materiais que aponta para uma criatividade do sujeito marginal, devemos perguntar também onde terminam os contornos desta valorização. A coincidência dos valores de mercado e dos valores produzidos nos ranchos está ainda em gestação. As narrativas anteriores, que descreviam a injustiça social no interior de um quadro nacional de cidadania, são hoje reformuladas no quadro da economia, duplicando-se a todos os níveis, da gestão dos recursos naturais (ecologia) à correcta administração do doméstico (oeconomia) e do pessoal.


3. Small Scale, Big Change: New Architectures of Social Engagement (October 3, 2010–January 3, 2011), Moma. Página web da exposição.

É importante, por isso, perguntar que valores hoje aqui descobrem os arquitectos. A obra persistente de Jorge Mario Jáuregui - insistindo durante quinze anos sobre as favelas do Rio através do Programa Favela-Bairro - obteve ressonância e constituiu-se como modelo para a Ibero-América. Trata-se, contudo, de um trabalho que causa também desorientação, uma vez que, sem menosprezo da magnífica e necessária obra realizada, depende da figura do arquitecto como profissional-especialista que reconcilia os desejos dos moradores dos bairros com o poder. A capitalização da arquitectura social, embora não completamente consolidada, efectuou-se já na Sétima Bienal de Veneza sob o título Less Aestethics, More Ethics - Menos estética, mais ética, e, mais recentemente, no Museu de Arte Moderna de Nova York, com a exposição Small Scale, Big Change. O que estou a tentar articular aqui são os limites tanto do fascínio que hoje exerce sobre os arquitectos a necessidade sofrida pelos construtores de tapancos [iii] como os limites de um olhar que responde a uma pergunta tautológica, uma vez que, nesse fascínio e nesse olhar, os arquitectos ou se descobrem a si próprios, ou se descobrem arquitectos "menores", e deparamos aqui com um impasse. A pergunta é unidireccional - de quem olha quem - tentando abrir assim um espaço teórico. Porque aquilo que importa, se quisermos continuar a reclamar benefícios das barracas, não é vermos como os construtores de pueblos jóvenes [iv] são arquitectos em ponto pequeno, mas como as suas acções menorizam a arquitectura. É fácil descobrir arquitectura nas shanty towns [v], mas é mais difícil descobrir shanty towns na arquitectura. Proponho que retomemos o processo de capitalização efectuado em Veneza, no sentido em que o limite da valorização das favelas - quer dizer, o que não se trata de valorizar nas favelas - deve ser precisamente a estética que exibem. Daí que, em Veneza, se tenha insistido mais na ética, a fim de prevenir o colapso da arquitectura sob os seus próprios valores estéticos.
As recentes e magníficas arquitecturas de Bogotá e de Medellín - como, por exemplo, a Biblioteca España de Giancarlo Mazzanti, na segunda destas cidades - abrem um diálogo complexo que mobiliza os contrastes: uma clara estética arquitectónica de elite sobrepõe-se à estética convulsa do slum [vi] de Medellín. Articula-se assim uma arquitectura cívica de elevado valor, tanto financeiro como estético. Em Santiago do Chile, Alejandro Aravena, com o concurso das soluções de construção ELEMENTAL, integra estratégias de crescimento gradual, incorporando assim uma temporalidade presente nos bidonvilles e estratégias de construção elaboradas durante a década de 1950, por exemplo, no Norte de África sob o regime colonial francês. Mas o que importa é perguntar se as estratégias e os discursos fluem nas duas direcções: quer dizer, se podemos descobrir na arquitectura de Aravena ou de Mazzanti essa informalidade que hoje exerce tanto fascínio; descobrir os ranchos nas Torres Siamesas do Campus San Joaquín da Pontificia Universidad Católica do Chile; se podemos descobrir as villas miserias num dos bastiões do poder na Ibero-América; se a estética da emergência aparece na arquitectura ibero-americana emergente - uma arquitectura que começa a transbordar do seu limite geográfico, não como curiosidade do momento, mas como arquitectura menor.


4. Conjunto habitacional Quinta Monroy, Chile, Elemental, 2003-05. Fotografia Cristóbal Palma (Elemental).

As incursões de arquitectos nas barbacoas menorizaram a arquitectura. A polivalência material, a utilização de diversos materiais tradicionalmente precários, como o tijolo e a madeira; a revalorização dos processos de construção informais ou primitivos, como o adobe - como na Escuela de Artes Visuales de Oaxaca, no México, de Mauricio Rocha -, revelam as atitudes da arquitectura emergente. A preferência por estratégias informais é condicionada por uma tendência já bem estabelecida para a experimentação material em arquitectura. Assim, a articulação material não é necessariamente uma menorização da arquitectura. Talvez seja, portanto, mais produtivo tornarmos a insistir no campo da estética, uma vez que a estética de elite resiste a incorporar a emergência. Se examinarmos a produção arquitectónica que se contém na casa unifamiliar da Ibero-América, descobriremos que nada nela emerge. A casa unifamiliar revela-se como o grande baluarte de uma classe social tradicionalista hoje protegida por um cuidado e sufocante minimalismo estético. As múltiplas versões daquilo a que podemos chamar "a gaiola" de vidro, cimento ou madeira - muitas vezes desvirtuada por combinações de materiais ou geometrias decorativas postiças - exprimem o tédio, a leviandade intelectual e a ausência de valores comunitários dos seus proprietários. Estes cubículos da versão estética oficial, espaços de abstracção minimalista, são máquinas de fuga potenciadas pelos arquitectos - pois, quem desejará viver num estado de constante fragmentação como o das barriadas? Mas são também espaços de poder, onde se reproduzem os valores de uma sociedade desigual e tradicionalista no pior sentido da palavra, como é o caso com o ainda muito vincado paternalismo da região. O elitismo que circula com insistência nas revistas de arquitectura e a compartimentação das construções informais no interior de uma emergência que não vê a sua contribuição estética, não fazem mais do que confirmar que a região continua a ser a mais desigual do mundo. Após as repetidas incursões no mundo da informalidade, a arquitectura na Ibero-América não foi capaz de articular um projecto coerente de arquitectura menor. E se a incursão nas favelas radica somente na capitalização de uma economia de valores imobiliário e humanitário, reduz-se consequentemente a valorização e o efeito saudável que aquelas podem ter sobre uma arquitectura que depende ainda da estética do poder.
Mas a resposta não está nem nos proprietários, defensores dos seus próprios interesses, nem nos arquitectos, porque ao fim e ao cabo o simples construir já é suficientemente difícil: o problema radica na ausência da crítica da arquitectura - mas que arquitecto ou proprietário deseja que a sua obra e o seu investimento financeiro e estético seja desvirtuado por subtilezas intelectuais que, embora também difíceis de construir, a poucos interessam? Não devemos esquecer que só o meritório merece ser criticado, pois o que interessa é a crítica produtiva, a crítica que trabalha. Como tantas outras casas difundidas por revistas ibero-americanas, a elegante Casa Poli dos arquitectos Pezo von Ellrichshausen (PvE), instaura, numa falésia da costa chilena, a convergência de uma casa de férias com um centro cultural, que, como um cubo caído do céu, tenta fazer esquecer o preço ecológico que estas arquitecturas implicam - não só devido aos processos de construção que alteram o ambiente, mas também, e em primeiro lugar, pela contaminação abstracta que a sua capitalização estética exerce sobre o quadro natural. A estética da paisagem, tão elegantemente elaborada pela equipa chileno-argentina de arquitectos através das elegantes vistas sobre o Oceano Pacífico que perfuram o cubo, articula uma manipulação visual que insiste na definição artístico-estética da palavra paisagem - uma definição que esquece por força a sua relação com um terreno que o camponês trabalhou arduamente, sem contemplação, mas com a sua própria naturalidade estética. O império do visual desdobra-se na imagem, produzindo uma arquitectura facilmente capturada pelas revistas. A estética do camponês já foi capturada pelo romantismo no século XIX, e hoje, na Ibero-América, resiste a esta nova forma de incorporação.


5. Casa Poli, Pezo von Ellrichshausen, 2003-2005. (PvE)

A partir da convergência entre o visual e o terreno, do confronto entre a paisagem e o camponês, da união entre o olhar do autor e a mão da sua antítese, do contraste máximo entre a obra na falésia dos arquitectos PvE e a açoteia de Dionora, podemos elaborar uma tentativa de arquitectura menor. Devemos começar por recusar qualquer tentativa de definir as favelas como arquitectura, uma vez que essa incorporação  discursiva esconde a hierarquia operacional de valores estéticos ainda bem instalada na arquitectura, e desarticula qualquer tentativa possível de elaborar uma arquitectura menor, uma vez quer, se seguirmos Deleuze, ela só poderá ser a prática menor no interior de uma linguagem maior. Se considerarmos a produção construtiva por volume da cidade ibero-americana, veremos que são os arquitectos que produzem a menor quantidade de estruturas e de espaço construído da cidade, enquanto são os construtores dos bairros que produzem a maior parte. Assim, a operacionalidade da arquitectura como linguagem a menorizar radica principalmente em acções críticas sobre os seus valores estéticos - quer dizer, na sua relação com o poder, ou, como diriam os modernistas brasileiros, com a bão tradição, com essa tradição que delineia os contornos da boa sociedade. Se os arquitectos podem aprender alguma coisa com os construtores de favelas é o modo como estas permanecem frágeis, sem que isso seja fraqueza: a fragilidade construtiva que faz da favela uma obra em surgimento constante é qualquer coisa que os arquitectos começam já a incorporar, ainda que de modo insuficiente. Estando em construção permanente, as barriadas exibem as suas contradições à flor da pele e revelam uma construção estética colectiva, uma montagem expressiva sem autor a que a arquitectura resiste. O caminho a percorrer é difícil, uma vez que a ideologia do estilo unitário e representativo da mão do "arquitecto" como criador singular e autoritário está tão enraizada que um artefacto tão complexo como um edifício, um artefacto que requer uma equipa de pessoas e profissionais, precisa ainda de ser identificado e reduzido a um único arquitecto. Objectar-se-á que, sem esta força homogeneizadora e controladora o resultado seria uma vaga desordenada de kitsch numa sinfonia sem tom nem harmonia. Talvez, mas temos de nos dar conta de que, por detrás de tais argumentos contra a dissonância e a heterogeneidade, se esconde a produção de simples objectos de consumo imediato, de uma arquitectura capitalizada pelo mercado e não por arquitectos.
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Notas da tradução
i. As barbacoas — por vezes consideradas como "favelas interiores" — são plataformas ou tablados construídos aproveitando os "pés direitos" muito altos de velhas casas, cujo resultado é subdividir e reordenar os espaços interiores, fornecendo alojamento a um grande número de elementos da população de Cuba.
ii. Um rancho, na Venezuela, é uma construção improvisada, utilizando materiais usados e pobres, como as que encontramos nos chamados "bairros de lata". Este tipo de construção proliferou em Caracas, sobretudo a partir da década de 1960
iii. O tapanco designa originalmente, no México, um piso que se constrói sob o telhado, por cima do tecto ou falso tecto das outras divisões
iv. Designação peruana de aglomerações de construções precárias, que surgem na periferia das cidades, e cuja população é composta quase integralmente por negros, índios e ex-camponeses mestizos.
v. Bairro precário e muitas vezes clandestino, como o "bairro de lata", o bidonville, os pueblos jóvenes, a favela, a barriada, etc.
vi. Ver a N.d.T. anterior
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Referências
2. Por exemplo, é impossível encontrar a referência a estes conflitos na página web da OEA, organismo que pretende defender tanto os direitos privados como humanos. Ver: http://www.cidh.oas.org e http://www.usatoday.com/sports/olympics/2011-02-23-rio-de-janeiro-slums-humans-rights-2016-Olympics_N.htm 
4. Ver http://www.nycgovparks.org/art Estas esculturas são efémeras, o que significa que não são permanentes; no momento em que escrevo este ensaio, encontram-se no parque duas ovelhas de bronze, Sheep Pair, do escultor Peter Woytuk. Ver http://www.woytuk.com/archives/gallery/the-new-york-sculptures/ 
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Nota de edição
Este artigo faz parte do Dossier «Devir menor» coordenado por Susana Caló e publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista Lugar Comum, 41, Brasil, Universidade Nômade. Tradução do espanhol por Miguel Serras Pereira
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Patrício del Real
Realizou o doutoramento em História da Arquitectura e Teoria na Universidade de Columbia em Nova Iorque e o mestrado em Arquitectura pela Universidade de Harvard. É co-editor da antologia Latin American Modern Architectures: Ambiguous Territories, publicado pela Routledge, 2012, e actualmente trabalha no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.