Mergulhando no universo das elaborações em
torno do fascismo, será hoje indispensável voltar ao livro que viria a ser
descrito, num prefácio de Michel Foucault, como uma «introdução à vida não fascista». O que nos
propôs o Anti-Édipo foi uma viagem além das concepções «históricas» do
fascismo, enquanto movimento localizável no tempo e no espaço (de Hitler a
Mussolini), para começar a compreendê-lo como matéria de desejo — um fenómeno
que atravessa cada um de nós, que persiste em estado latente, incrustado no
pensamento, reproduzido numa infinidade de comportamentos quotidianos; para
Foucault, aquilo «que martela os nossos espíritos, o fascismo que nos faz
desejar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora»; [1] trata-se do fascismo
molecular, o húmus psico-social que germinou o fascismo histórico, mas que não
começou com a sua emergência, nem tão pouco se extinguiu com a sua derrota.
Compreender o fascismo como fenómeno do desejo passa por abandonar a
crença na inocência das massas; por recusar a ideia de que a vasta adesão a
esses movimentos possa ser explicada por truques de ilusionismo ou pelo medo da
repressão. O que Deleuze e Guattari nos propõem, partindo de Reich, é que as
massas não foram ingénuas, não foram atraiçoadas por líderes carismáticos e
mentirosos. As massas desejaram o fascismo. Não se trata de negar que a
ilusão tenha tido um papel, ou de implicar que cada indivíduo tenha almejado
conscientemente a violência que esses regimes fariam abater sobre os outros e,
em última instância, sobre si mesmos. Trata-se antes de reconhecer que a sua
dimensão e a sua violência, como de resto, a de todos os grandes movimentos de
massas, não pode ser compreendida sem atender a uma economia do desejo
em que surgiram, e que souberam mobilizar em seu favor.
1. Michel Foucault.
Prefácio à edição americana de L’anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie,
de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Olhando para o caso português, uma aproximação
à natureza do regime salazarista não se pode restringir às instituições
centralizadas de repressão e de propaganda. É preciso compreender como esse
regime se apropriou de uma subjectividade cultivada durante séculos pela
Igreja, para investir todo o campo social de uma paixão lasciva pela servidão,
pela denúncia e pelo castigo, toda uma rizomática da vigilância permanente, que
avançou pelas cidades até às aldeias mais remotas, penetrando cada grupo, cada
família, cada indivíduo, cobrindo todos os corpos e cada uma das suas partes. O
salazarismo não teria sobrevivido sem a capilaridade da sua rede de «chibos»
voluntários; toda uma atmosfera social em que cada um era incitado a observar o
seu vizinho, a apontar cada acto «suspeito», cada excentricidade, cada desvio
da norma; uma espionagem disseminada cuja motivação não ia, tantas vezes, além
do simples prazer mesquinho da coscuvilhice, do controlo, da repressão do outro
e de si mesmo. Na mesma medida em que essa produção já era anterior ao
salazarismo, também é preciso entender que ela não se extinguiu com a sua
queda, subsistindo hoje de forma molecular, vincada nos nossos corpos e nos
nossos hábitos, e tão pouco foi preciso André Ventura para reacendê-la. Já
Passos Coelho encarnara a figura de um autêntico messias da castração,
rentabilizando habilmente esse desejo pervertido de tomar as rédeas do próprio
castigo, essa ânsia de ir além do capataz, de «apertar o cinto», de ir «além da
troika»; uma tendência que o governo «de esquerda» esteve longe de contrariar,
sob o espectro do «bom aluno» Mário Centeno. Também não é por acaso que foi
justamente do círculo de Passos Coelho que emanou a figura de André Ventura, o
mesmo homem que usou cilício para auto-infligir danos corporais na sua passagem
pelo seminário. Pois como pode ainda surpreender-nos o seu êxito num país onde
os estudantes faltam às aulas para se submeterem em massa à humilhação da
praxe? O desejo fascizante está por toda a parte, desde o neonazi, com os seus
sonhos molhados de ser o cão de caça do capital, até ao estagiário que vigia o
colega e se humilha diariamente por uma recompensa que não passa, tantas vezes,
de uma palmadinha nas costas.
Guattari destacou a eficiência distintiva do
nazismo na captura de uma energia libidinal [2]
que lhe concedia a capacidade de penetrar
todas as células da sociedade. Terá sido essa vantagem a seduzir os industriais
alemães, que não viram noutras formas totalitárias a mesma promessa repressiva
que o partido nacional-socialista, articulado com os seus bandos semioficiais,
lhes apresentava. O que os capitalistas não previram foi a potência destrutiva
que estavam prestes a libertar; uma máquina louca que seria mais ameaçadora
para o seu domínio do que a própria Revolução de Outubro. O desejo, em
Deleuze e Guattari, tem mais a ver com economia do que com ideologia — ele é «pura
matéria, um fenómeno da matéria física, biológica, psíquica, social ou cósmica».
[3] Desejo seria também o
propulsor desse movimento niilista, em aceleração perpétua, que Deleuze apontou
como condição da sobrevivência do nazismo: [4] a máquina
de guerra nazi, alimentada por uma exasperação que a iminência da derrota só
veio intensificar; passando da «Economia de Guerra» à «Guerra Total», aos
discursos sacrificiais de Goebbels: e enfim coroada com o último telegrama de
Hitler — «Se a guerra está perdida, que a nação pereça» —, onde o führer ordenou ao exército
que obliterasse as próprias infra-estruturas e reservas civis, unindo-se ao
inimigo para consumar a extinção do próprio
povo.
2. Félix Guattari. A
Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo.
3. Gilles Deleuze e
Felix Guattari. Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie.
4. Gilles Deleuze. Sur
Anti-Oedipe et d’autres réflexions.
O destino suicida, que as massas alemãs abraçaram
desde o início, não estava apenas anunciado nos discursos fulminantes do
nazismo. Era reconhecível nas próprias transformações que este operou na
economia, na substituição gradual dos meios de produção por meios de destruição.
[5] Pois o que levou, então,
as massas a abraçarem esse projecto, não só assassino, como suicidário? Num
texto publicado recentemente no Punkto, [6] Toni Negri realçava como a palavra de ordem do fascismo —
o «Viva a Morte!» — se oculta sob o véu de «necessidade de espírito» e da «obrigação
moral». Também Deleuze e Guattari reconheceram que a máquina fascista não podia
sobreviver à exposição crua da sua violência e do seu absurdo, ao admitirem que
«até o mais descarado fascismo fala a linguagem dos objectivos, da lei, da
ordem e da razão», assim como «o mais insano capitalista fala em nome da
racionalidade económica» [7].
Basta-nos recordar o historial de pedofilia e de abusos sexuais praticados sob
a protecção da Igreja para admitir como a mais rígida máscara moral serve
tantas vezes para ocultar justamente os impulsos mais doentios e perversos.
Pois, também hoje constatamos como os neofascistas mais delirantes não ousam
prescindir desses eternos chavões. Falam de «Lei e Ordem» (ao mesmo tempo que
pregam o caos), do «combate à corrupção» (que praticam à vista de todos), ou de
«valores tradicionais» (que desprezam abertamente). Pese, no entanto, a
imprescindibilidade do véu com que se cobrem, não deixa de ser reconhecível a
sua escassa opacidade — lembremos os dolorosos zig-zags mediáticos
durante a primeira campanha de Trump quando, a cada incoerência flagrante, a
cada escândalo sexual, a cada traição ao seu próprio discurso, se profetizava
uma quebra de popularidade que nunca se veio a verificar. Oito anos passados,
incorremos na mesma armadilha em Portugal quando, precipitados pelas sondagens,
decretámos o fracasso do partido de Ventura.
5. Gilles Deleuze e
Félix Guattari. Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie.
6. Toni Negri. Que
a Eternidade dos Abrace.
7. Gilles Deleuze e
Felix Guattari. L’anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie.
A nossa vulnerabilidade a estes equívocos
revela uma inépcia generalizada em compreender o fenómeno do neofascismo
contemporâneo. Refugiamo-nos na expectativa de que seja passageiro, que se
dissipe assim que a mentira seja descoberta, ou que a hipocrisia dos seus líderes
seja exposta. Continuamos a crer que as massas são ingénuas e que se encantaram
com essa débil máscara moral do fascismo; tudo isto para não admitir que o que
as seduz não é a máscara, mas justamente o que ela deixa transparecer — a
promessa de uma tirania democratizada, de uma repressão sem limites, a cada
instante insinuada no subtexto, na retórica, na gestualidade codificada, na
proliferação dos dog whistles: dos fuzis imaginários de Bolsonaro aos
rostos rasurados nos cartazes do Chega. Deleuze reconheceu no fascismo a
promessa da morte do outro, mas a morte do outro «coroada» com a própria morte.
[8] Na Revolução
Molecular, Guattari realçou como «Hitler e os nazis lutavam pela morte,
incluindo, e sobretudo, pela morte da Alemanha». [9] O «judeu», o «cigano», o «eslavo», o «bolchevique», ficções
levantadas como entraves à realização da utopia ariana, comportariam assim
outro sentido obscuro: o de re-territorializar em grupos sociais delimitáveis
uma pulsão de morte colectiva e efervescente, sem nenhum horizonte além da pura
destruição — uma linha de fuga intensa convertida em linha de morte e
abolição.
8. Gilles Deleuze. Seminar
on Anti-Oedipus and Other Reflections, 1980. Conferência 1, 27 de Maio de 1980.
9. Félix Guattari. A
Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo.
Partindo da imagem desse impulso incendiário
que se auto-consome, para descrever o espectáculo mediático a que hoje
assistimos, será pertinente recuperar o que Pedro Levi Bismarck escreveu em
2016 sobre a cobertura dos incêndios em Portugal: «O segredo do seu fascínio é
a secreta e irreprimível complacência que une os espectadores». [1o]
Do mesmo modo, a extraordinária simbiose
entre os meios de comunicação de massas e o neofascismo não seria possível sem
as paixões massificadas e subterrâneas que a mobilizam e lhe servem de combustível;
o magma de amor e repulsa que faz detonar as audiências, e para onde fluem as
nossas paixões tristes, o nosso ressentimento, todo o nosso
desejo colectivo, secreto e mortificado, de ver «o mundo a arder», de assistir
enfim ao eclipse fulminante de uma vida desprovida de intensidade, na qual nada
de novo parece realmente acontecer. É partindo desta dinâmica transversal e recíproca
que podemos reconhecer o nosso grande equívoco, quando repetimos que «eles não
passarão», traçando assim uma fronteira ilusória entre um eles e um nós,
um fora, onde o fascismo existiria, e um dentro que lhe seria
necessariamente antagónico. Pois é justamente da criação de um mundo oposto e
exterior que nasce aquilo a que Nietzsche chamou a «moral dos escravos»,[11]
a moral daqueles que dizem que «o outro
é mau, portanto eu sou bom» para assim elegerem a reacção, ou a negação, como o
seu único princípio motor.
10. Pedro Levi
Bismarck, O tempo dos incêndios.
11. Friedrich Nietzsche,
Zur Genealogie der Moral.
Talvez seja esta a irónica tragédia que nos
anunciam estes 50 anos da Revolução de Abril. Ela não está apenas no facto de
sermos presenteados com cinquenta deputados fascistas nas celebrações oficiais.
Está, sobretudo, na chance envenenada, oferecida por Ventura a cada um de nós,
de se comprazer com a sua ilusória oposição face a algo que não é senão o nosso
tenebroso reflexo — a triste autobiografia de um país que há muito deixou
capturar, pela mão estranguladora do mercado, aquele desejo que Abril libertou.
Paulo
Ávila
Paulo
Ávila (1994) é arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do
Porto. Colabora com o Jornal Punkto desde 2017.
imagem
Salò
ou os 120 Dias de Sodoma, Pasolini, 1976.
Ficha
técnica
«Je
est un autre: a persistência do desejo fascista» • Paulo Ávila
Data de
publicação • 19.03.2024
Edição #41 • Inverno 2024