Je est un autre: a persistência do desejo fascista • Paulo Ávila



Mergulhando no universo das elaborações em torno do fascismo, será hoje indispensável voltar ao livro que viria a ser descrito, num prefácio de Michel Foucault, como uma  «introdução à vida não fascista». O que nos propôs o Anti-Édipo foi uma viagem além das concepções «históricas» do fascismo, enquanto movimento localizável no tempo e no espaço (de Hitler a Mussolini), para começar a compreendê-lo como matéria de desejo — um fenómeno que atravessa cada um de nós, que persiste em estado latente, incrustado no pensamento, reproduzido numa infinidade de comportamentos quotidianos; para Foucault, aquilo «que martela os nossos espíritos, o fascismo que nos faz desejar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora»; [1] trata-se do fascismo molecular, o húmus psico-social que germinou o fascismo histórico, mas que não começou com a sua emergência, nem tão pouco se extinguiu com a sua derrota. Compreender o fascismo como fenómeno do desejo passa por abandonar a crença na inocência das massas; por recusar a ideia de que a vasta adesão a esses movimentos possa ser explicada por truques de ilusionismo ou pelo medo da repressão. O que Deleuze e Guattari nos propõem, partindo de Reich, é que as massas não foram ingénuas, não foram atraiçoadas por líderes carismáticos e mentirosos. As massas desejaram o fascismo. Não se trata de negar que a ilusão tenha tido um papel, ou de implicar que cada indivíduo tenha almejado conscientemente a violência que esses regimes fariam abater sobre os outros e, em última instância, sobre si mesmos. Trata-se antes de reconhecer que a sua dimensão e a sua violência, como de resto, a de todos os grandes movimentos de massas, não pode ser compreendida sem atender a uma economia do desejo em que surgiram, e que souberam mobilizar em seu favor.

1. Michel Foucault. Prefácio à edição americana de L’anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie, de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Olhando para o caso português, uma aproximação à natureza do regime salazarista não se pode restringir às instituições centralizadas de repressão e de propaganda. É preciso compreender como esse regime se apropriou de uma subjectividade cultivada durante séculos pela Igreja, para investir todo o campo social de uma paixão lasciva pela servidão, pela denúncia e pelo castigo, toda uma rizomática da vigilância permanente, que avançou pelas cidades até às aldeias mais remotas, penetrando cada grupo, cada família, cada indivíduo, cobrindo todos os corpos e cada uma das suas partes. O salazarismo não teria sobrevivido sem a capilaridade da sua rede de «chibos» voluntários; toda uma atmosfera social em que cada um era incitado a observar o seu vizinho, a apontar cada acto «suspeito», cada excentricidade, cada desvio da norma; uma espionagem disseminada cuja motivação não ia, tantas vezes, além do simples prazer mesquinho da coscuvilhice, do controlo, da repressão do outro e de si mesmo. Na mesma medida em que essa produção já era anterior ao salazarismo, também é preciso entender que ela não se extinguiu com a sua queda, subsistindo hoje de forma molecular, vincada nos nossos corpos e nos nossos hábitos, e tão pouco foi preciso André Ventura para reacendê-la. Já Passos Coelho encarnara a figura de um autêntico messias da castração, rentabilizando habilmente esse desejo pervertido de tomar as rédeas do próprio castigo, essa ânsia de ir além do capataz, de «apertar o cinto», de ir «além da troika»; uma tendência que o governo «de esquerda» esteve longe de contrariar, sob o espectro do «bom aluno» Mário Centeno. Também não é por acaso que foi justamente do círculo de Passos Coelho que emanou a figura de André Ventura, o mesmo homem que usou cilício para auto-infligir danos corporais na sua passagem pelo seminário. Pois como pode ainda surpreender-nos o seu êxito num país onde os estudantes faltam às aulas para se submeterem em massa à humilhação da praxe? O desejo fascizante está por toda a parte, desde o neonazi, com os seus sonhos molhados de ser o cão de caça do capital, até ao estagiário que vigia o colega e se humilha diariamente por uma recompensa que não passa, tantas vezes, de uma palmadinha nas costas.

Guattari destacou a eficiência distintiva do nazismo na captura de uma energia libidinal [2] que lhe concedia a capacidade de penetrar todas as células da sociedade. Terá sido essa vantagem a seduzir os industriais alemães, que não viram noutras formas totalitárias a mesma promessa repressiva que o partido nacional-socialista, articulado com os seus bandos semioficiais, lhes apresentava. O que os capitalistas não previram foi a potência destrutiva que estavam prestes a libertar; uma máquina louca que seria mais ameaçadora para o seu domínio do que a própria Revolução de Outubro. O desejo, em Deleuze e Guattari, tem mais a ver com economia do que com ideologia — ele é «pura matéria, um fenómeno da matéria física, biológica, psíquica, social ou cósmica». [3] Desejo seria também o propulsor desse movimento niilista, em aceleração perpétua, que Deleuze apontou como condição da sobrevivência do nazismo: [4]  a máquina de guerra nazi, alimentada por uma exasperação que a iminência da derrota só veio intensificar; passando da «Economia de Guerra» à «Guerra Total», aos discursos sacrificiais de Goebbels: e enfim coroada com o último telegrama de Hitler — «Se a guerra está perdida, que a nação pereça»  —, onde o führer ordenou ao exército que obliterasse as próprias infra-estruturas e reservas civis, unindo-se ao inimigo para consumar  a extinção do próprio povo.

2. Félix Guattari. A Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo.

3. Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie.

4. Gilles Deleuze. Sur Anti-Oedipe et d’autres réflexions.

O destino suicida, que as massas alemãs abraçaram desde o início, não estava apenas anunciado nos discursos fulminantes do nazismo. Era reconhecível nas próprias transformações que este operou na economia, na substituição gradual dos meios de produção por meios de destruição. [5] Pois o que levou, então, as massas a abraçarem esse projecto, não só assassino, como suicidário? Num texto publicado recentemente no Punkto, [6] Toni Negri realçava como a palavra de ordem do fascismo — o «Viva a Morte!» — se oculta sob o véu de «necessidade de espírito» e da «obrigação moral». Também Deleuze e Guattari reconheceram que a máquina fascista não podia sobreviver à exposição crua da sua violência e do seu absurdo, ao admitirem que «até o mais descarado fascismo fala a linguagem dos objectivos, da lei, da ordem e da razão», assim como «o mais insano capitalista fala em nome da racionalidade económica» [7]. Basta-nos recordar o historial de pedofilia e de abusos sexuais praticados sob a protecção da Igreja para admitir como a mais rígida máscara moral serve tantas vezes para ocultar justamente os impulsos mais doentios e perversos. Pois, também hoje constatamos como os neofascistas mais delirantes não ousam prescindir desses eternos chavões. Falam de «Lei e Ordem» (ao mesmo tempo que pregam o caos), do «combate à corrupção» (que praticam à vista de todos), ou de «valores tradicionais» (que desprezam abertamente). Pese, no entanto, a imprescindibilidade do véu com que se cobrem, não deixa de ser reconhecível a sua escassa opacidade — lembremos os dolorosos zig-zags mediáticos durante a primeira campanha de Trump quando, a cada incoerência flagrante, a cada escândalo sexual, a cada traição ao seu próprio discurso, se profetizava uma quebra de popularidade que nunca se veio a verificar. Oito anos passados, incorremos na mesma armadilha em Portugal quando, precipitados pelas sondagens, decretámos o fracasso do partido de Ventura.

5. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie.

6. Toni Negri. Que a Eternidade dos Abrace.

7. Gilles Deleuze e Felix Guattari. L’anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie.

A nossa vulnerabilidade a estes equívocos revela uma inépcia generalizada em compreender o fenómeno do neofascismo contemporâneo. Refugiamo-nos na expectativa de que seja passageiro, que se dissipe assim que a mentira seja descoberta, ou que a hipocrisia dos seus líderes seja exposta. Continuamos a crer que as massas são ingénuas e que se encantaram com essa débil máscara moral do fascismo; tudo isto para não admitir que o que as seduz não é a máscara, mas justamente o que ela deixa transparecer — a promessa de uma tirania democratizada, de uma repressão sem limites, a cada instante insinuada no subtexto, na retórica, na gestualidade codificada, na proliferação dos dog whistles: dos fuzis imaginários de Bolsonaro aos rostos rasurados nos cartazes do Chega. Deleuze reconheceu no fascismo a promessa da morte do outro, mas a morte do outro «coroada» com a própria morte. [8] Na Revolução Molecular, Guattari realçou como «Hitler e os nazis lutavam pela morte, incluindo, e sobretudo, pela morte da Alemanha». [9] O «judeu», o «cigano», o «eslavo», o «bolchevique», ficções levantadas como entraves à realização da utopia ariana, comportariam assim outro sentido obscuro: o de re-territorializar em grupos sociais delimitáveis uma pulsão de morte colectiva e efervescente, sem nenhum horizonte além da pura destruição — uma linha de fuga intensa convertida em linha de morte e abolição.

8. Gilles Deleuze. Seminar on Anti-Oedipus and Other Reflections, 1980. Conferência 1, 27 de Maio de 1980.

9. Félix Guattari. A Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo.

Partindo da imagem desse impulso incendiário que se auto-consome, para descrever o espectáculo mediático a que hoje assistimos, será pertinente recuperar o que Pedro Levi Bismarck escreveu em 2016 sobre a cobertura dos incêndios em Portugal: «O segredo do seu fascínio é a secreta e irreprimível complacência que une os espectadores». [1o] Do mesmo modo, a extraordinária simbiose entre os meios de comunicação de massas e o neofascismo não seria possível sem as paixões massificadas e subterrâneas que a mobilizam e lhe servem de combustível; o magma de amor e repulsa que faz detonar as audiências, e para onde fluem as nossas paixões tristes, o nosso ressentimento, todo o nosso desejo colectivo, secreto e mortificado, de ver «o mundo a arder», de assistir enfim ao eclipse fulminante de uma vida desprovida de intensidade, na qual nada de novo parece realmente acontecer. É partindo desta dinâmica transversal e recíproca que podemos reconhecer o nosso grande equívoco, quando repetimos que «eles não passarão», traçando assim uma fronteira ilusória entre um eles e um nós, um fora, onde o fascismo existiria, e um dentro que lhe seria necessariamente antagónico. Pois é justamente da criação de um mundo oposto e exterior que nasce aquilo a que Nietzsche chamou a «moral dos escravos»,[11] a moral daqueles que dizem que «o outro é mau, portanto eu sou bom» para assim elegerem a reacção, ou a negação, como o seu único princípio motor.

10. Pedro Levi Bismarck, O tempo dos incêndios.

11. Friedrich Nietzsche, Zur Genealogie der Moral.

Talvez seja esta a irónica tragédia que nos anunciam estes 50 anos da Revolução de Abril. Ela não está apenas no facto de sermos presenteados com cinquenta deputados fascistas nas celebrações oficiais. Está, sobretudo, na chance envenenada, oferecida por Ventura a cada um de nós, de se comprazer com a sua ilusória oposição face a algo que não é senão o nosso tenebroso reflexo — a triste autobiografia de um país que há muito deixou capturar, pela mão estranguladora do mercado, aquele desejo que Abril libertou.

 

 

Paulo Ávila

Paulo Ávila (1994) é arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Colabora com o Jornal Punkto desde 2017.

 

imagem

Salò ou os 120 Dias de Sodoma, Pasolini, 1976.

 

Ficha técnica

«Je est un autre: a persistência do desejo fascista» • Paulo Ávila

Data de publicação • 19.03.2024

Edição #41 • Inverno 2024