Chega: sociologia de um destino • Pedro Levi Bismarck



1. Santa Eulália

Nas eleições legislativas de Maio de 2025, na freguesia do Bonfim, no Porto, o Chega teve 1760 votos (12%) e em Arroios teve 1752 (11%). Estas são duas das freguesias do país onde a imigração tem sido apresentada como um problema grave, desencadeando conflitos, insegurança e medo. A votação está longe de exprimir a tão famosa «percepção». Em Monte Gordo, o Chega teve 912 votos (50%) e na freguesia de Odemira a sua votação alcançou os 876 votos (32%). Em contrapartida, na freguesia de Caia, São Pedro e Alcáçova (Elvas) o Chega teve 1215 votos (49%) e na freguesia de Santa Eulália, também em Elvas, teve 286 votos (52%). Entre os vários testemunhos recolhidos, uma notícia da Lusa sobre Elvas refere que há um descontentamento geral da população com as políticas seguidas nos últimos anos: falta de médicos, de transportes, de segurança, isto, claro, no contexto de uma população envelhecida. Numa primeira análise aos resultados das legislativas parece ser mais claro que o fio que une o eleitorado do Chega está longe de se circunscrever, simplesmente, à imigração, tratando-se de uma combinação mais complexa de factores, que têm a crise do Estado e do Estado social em pano de fundo.

 

2. Portugal rural

De forma genérica, penso que é possível dizer que o Chega não tem uma expressão urbana acentuada, mas tem uma expressão rural forte, sobretudo (mas não só) em zonas do país com uma população substancialmente idosa, onde a presença do Estado (social) entrou em forte contracção nos últimos anos. O Alentejo é, aliás, disso um exemplo maior. Falamos de zonas de estagnação ou depressão económica fruto de um modelo económico hipercentralizado que destruiu a escala social que sustentou e construiu estes lugares durante séculos. A imigração é apenas uma expressão, nem sempre a mais forte ou preponderante, de um sentimento generalizado de perda: do Estado, da economia, da sociedade. Lugares despovoados que foram tornados obsoletos ou reduzidos à condição de simples paragens técnicas ou lugares de «exploração intensiva» (olival, eucalipto) na cadeia logística da grande agricultura industrializada que corre em grande velocidade para os centros urbanos, desfigurando ainda mais estes territórios.

O processo de desenvolvimento de Portugal a seguir ao 25 de Abril assentou numa mudança radical, antropológica, poder-se-ia dizer, que implicou o abandono de todo um modelo económico baseado na agricultura. Enquanto os novos núcleos urbanos e as grandes periferias foram associados à possibilidade de conquista de melhores condições de vida, uma grande parte do interior permaneceu vinculado a uma ideia de «atraso» e «subdesenvolvimento» ligado a uma percepção negativa da «vida rural». A agricultura tornou-se uma coisa do passado, anacrónica, entregue aos mais velhos. O resultado, como se observou, é um grande desequilíbrio demográfico, social e económico entre o «litoral» e o «interior». O interior rural é uma imensa acumulação de ruínas, casas abandonadas, campos por cultivar, extensas manchas de florestas ardidas. Um território vazio e destruído que parece ter sido objecto de uma guerra sem quartel. Uma guerra desencadeada pelo próprio capitalismo contra as populações, os seus lugares e a sua vida.

Ora, o grande fracasso dos 50 anos de democracia foi claramente a regionalização: isto é, a não implementação de políticas locais e regionais capazes de se opor a esse movimento de acumulação e concentração  inerente ao capitalismo. Pelo contrário, acentuou-se uma dependência generalizada, política e económica, do território nacional relativamente a Lisboa e, sobretudo, com a crise de 2007-2013, uma retirada constante e progressiva do Estado, pondo em causa a subsistência de serviços públicos essenciais (centros de saúde, postos de correio, escolas e, até, agências bancárias) e deixando para trás políticas estratégicas de planeamento. As juntas de freguesia, por exemplo, são uma caricatura do poder público. Há lugares em que estão abertas ao público apenas uma ou duas vezes por semana.

 

3. Uma economia asocial

Uma grande parte da população destes territórios é, de facto, filha do Estado social e das suas promessas: eles são os órfãos da social-democracia. A sua ideologia não é a da CDU ou a do Bloco ou do Livre, nem da Iniciativa Liberal, o seu discurso não lhes diz nada, porque é nos valores da social-democracia que foram formados. E foi a social-democracia quem os traiu. (Essa é a grande ironia política: a sua incapacidade em reconhecer que são esses partidos, o Bloco, o Livre, a CDU, os últimos representantes daquilo que resta da social-democracia e da salvaguarda do seu estatuto.) O Chega é a representação dos revoltados do sistema: aqueles que foram formados a partir das suas promessas irrealizadas e dos seus mitos. O Chega é o inconsciente reprimido da social-democracia, o grande reservatório das promessas que ficaram por cumprir ao longo destes últimos cinquenta anos.

Muitos destes lugares vivem hoje uma espécie de economia asocial ou dessocializada: o dinheiro circula, reproduz-se, mas não constrói uma comunidade, aprofunda desigualdades, isola, desvincula. O modelo da «exploração intensiva», seja na agricultura ou no turismo compreende uma economia separada da realidade social em que existe. Os lucros da sua actividade estão mais pertos dos seus accionistas nas Ilhas Caimão do que da freguesia de Santa Eulália.

A  figura do imigrante é talvez aquela que melhor exprime e torna visível o paradigma desta economia asocial, e, por isso, ele é um bode expiatório. A animosidade relativamente a essa economia destrutiva, esse sentimento de despossessão e de perda que atravessa o Portugal Rural é transferido para o imigrante. Porque aquilo que essas pessoas vêem no imigrante (desenraizado, deslocalizado, empobrecido) é o seu próprio reflexo: também elas se tornaram imigrantes num lugar que se tornou, também para elas, irreconhecível e estranho. Claro que isto não significa desvalorizar a existência de um racismo estrutural, animado de preconceitos relativamente alguém que é identificado como «outro». Curiosamente, em Monte Gordo passa-se o contrário: o turista, maioritariamente branco, não incarna essa lógica, porque é ele quem, desde logo, detém uma posição de superioridade de capital, mas a economia revela-se da mesma forma, isto é, na sua total associalidade e separação.

O neoliberalismo ganhou a batalha da demonização da esquerda parlamentar, aquela que lançou as bases da social-democracia, que fez a constituição de Abril, e que, na verdade, foi sempre a única a saber o que é o capitalismo, como o gerir, como o reformar e como o administrar de forma a fazer dele um sistema social minimamente aceitável. Não é certamente ao liberalismo e aos mitos da «mão invisível» que devemos a consolidação do capitalismo enquanto tal, porque este, sim, nunca teve a capacidade de pensar o capitalismo para além da reprodução imediata e privada do lucro. É por isso que a social-democracia existiu nos termos em que existiu: porque foi a fórmula que tentou, pese embora todas as contradições, construir um equilibro entre a voracidade exploradora do capital e um mínimo de políticas redistribuidoras e sociais.

 

4. Covas do Barroso

Na freguesia de Covas do Barroso, a Aliança Democrática ganhou com 60% dos votos, o Chega teve apenas 6%. (Há um debate interessante a fazer sobre as diferenças entre norte e sul. Rapidamente, talvez se pudesse dizer que no norte a presença da direita é forte e continua a prevalecer, enquanto no Alentejo não havia um enraizamento forte de um partido de direita capaz de dar voz a esse descontentamento despolitizado das classes médias). No caso de Covas, a exploração das minas de lítio ameaça destruir o frágil, mas rico ecossistema desta freguesia. E a população tem-se mobilizado arduamente contra o gigantesco poder desta multinacional apoiada pelos dispositivos políticos e legais do Estado Português. Ao longo dos últimos anos PS e PSD têm desenvolvido políticas absolutamente contrárias aos interesses desta comunidade e, no entanto, esta acredita que o voto na AD é aquele que melhor defende os seus interesses e a sua existência.

É um caso de estudo, mas sintomático. Contra todas as evidências dos interesses reais do Estado e do governo neste processo, a população continua a depositar o seu voto na AD. A «propriedade», os «valores da cultura local», a «iniciativa individual», são princípios consagrados que caracterizam esta população. Valores construídos certamente nas últimas décadas, talvez com menos base histórica do que aquilo que se poderia imaginar, veja-se a longa história do comunitarismo rural desta zona.

São estes os valores de que a direita se reivindica, mas não são certamente os valores que pratica. Não é a esquerda que persegue valores abstractos universais, é a direita. A abstracção do princípio da propriedade privada, por exemplo, permite num mesmo conceito condensar a pequena propriedade e a grande propriedade, legitimando a concentração e o monopólio fundiário, legitimando políticas que a médio prazo pressupõe a destruição do pequeno proprietário e do seu território. Do mesmo modo, nada há de «conservador» culturalmente na direita: têm sido estes os mais dinâmicos a colocar em causa os valores e o património cultural. Até a ancestral troca de sementes foi proibida em nome do negócio milionário das patentes e das grandes multinacionais do agro-negócio. Assim, paralelamente, nada pode subsistir de iniciativa individual numa economia asocial, numa economia que deixou de ter qualquer vínculo com a comunidade em que se insere. O estado de abandono e degradação, o isolamento em que vive o interior, resulta do conjunto de políticas específicas que foram levadas a cabo, nas últimas décadas, pelo PSD e pelo PS. O Chega recolhe todos estes despojos para construir e levantar outros mitos. Mas o objectivo é sempre o mesmo, em nome dos grandes grupos económicos deixar que o capitalismo possa continuar a trilhar o seu caminho, continuar a isolar, individualizar e atomizar a sociedade, mobilizando o princípio da propriedade como «último bastião de segurança» num mundo cada vez mais inseguro, isto é, tornado cada vez mais inseguro por esses cujo objectivo é apenas a maximização do seu lucro e dos seus rendimentos, nem que seja à custa da destruição da própria sociedade.

 

5. Esquerda e neoliberalismo

Não há «lições» para dar à esquerda. Há uma prática que precisa de encontrar as suas instituições, os seus instrumentos, as formas de organização e de acção colectiva, capaz de produzir uma crítica partilhável do capitalismo e desencadear um verdadeiro antagonismo diante da auto-confiança ilimitada deste. A crença absoluta no «fim da história» e no triunfo da democracia liberal reduziu a política à sua dimensão puramente gestionária e tecnocrática, isto é: despolitizou e desideologizou a política. Para a classe média, a política reduz-se à gestão do orçamento de Estado. Ela não vê a política como ideologia, porque se situa a si mesmo fora da história e para lá da história. A classe média não tem uma consciência política de si, nem da sociedade, dos antagonismos e das contradições que a atravessam e a produzem no quadro do capitalismo.

A incapacidade de pensar um modo de vida e um modo de organização colectiva da sociedade para além do capitalismo é sintomático de um senso comum que interiorizou plenamente os valores e os princípios do mercado, e que, por isso mesmo, não está habilitado para pensar as crises e o processo de expropriação permanente que hoje tomou conta da sua vida. O domínio do discurso neoliberal e dos seus mitos é hoje total. O direito a ser rico é hoje um direito universal incontestável fruto do «trabalho» e do «mérito» que ninguém se atreve a contestar, quando, na verdade, ele assenta na exploração do trabalho, na extracção de renda e na distribuição de dividendos. Há toda uma visão idílica da política, produzida pela social-democracia para pacificar as massas, que foi aproveitada pelo neoliberalismo e que dissimula hoje a realidade de uma guerra civil em curso. Quantos mais ricos, mais pobres existem. A luta de classes, a luta entre aqueles que detém os meios de produção e os que vivem da venda da sua força de trabalho, não deixou de existir. Bem pelo contrário, as formas de extracção de mais-valia não estão, hoje, apenas no trabalho, tomaram conta de todos os aspectos da vida, da saúde à educação. A desigualdade é a fundação e o destino do capitalismo. É certo que o capitalismo «produz riqueza», mas aquilo que o caracteriza é o modo como ele dissimula, externaliza e adia os custos pesados dessa produção.

Este é talvez o facto mais relevante do presente: a vigência única e absoluta de um capitalismo que absorveu tudo e todos e que não parece precisar de legitimação ou de justificação, precisamente no momento histórico em que se torna evidente como os princípios da economia capitalista baseados no progresso infinito e na exploração infinita dos recursos naturais colocam em causa as condições vitais e básicas da nossa própria existência: do desaparecimento assustador da biodiversidade aos nano-plásticos que fazem já, hoje, parte da composição do nosso corpo. E, no entanto, é a própria catástrofe, sempre prestes a acontecer, que parece hoje animar um neoliberalismo encantado e inebriado com a rentabilidade económica da iminência do próprio fim. E é também enquanto catástrofe iminente que a extrema-direita contribui para a normalização do próprio sistema e das suas políticas neoliberais.

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do jornal Punkto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Nota da edição

Artigo publicado na sequência do artigo «“O Futuro é já”»: a política, o fascismo, o mito».

 

Ficha técnica

Chega: sociologia de um destino • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 21.05.2025

 Edição #43 • Inverno-Primavera 2025