Declaração do Porto, ICOMOS



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Declaração do Porto,
ICOMOS-Portugal, 2013:
um olhar de hoje sobre as dinâmicas da conservação e reabilitação de cidades históricas
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A Carta de Washington (1987) sublinha que a conservação se baseia em valores determinados por consensos globais, esclarecendo que, num núcleo urbano que tenha sido distinguido com o reconhecimento nacional ou mundial, esses valores são “o carácter histórico da cidade e o conjunto dos elementos materiais e espirituais que lhe determinam a imagem, em especial:
a) a forma urbana definida pela malha fundiária e pela rede viária; b) as relações entre edifícios, espaços verdes e espaços livres; c) a forma e o aspecto dos edifícios (interior e exterior) definidos pela sua estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cor e decoração; d) as relações da cidade com o seu ambiente natural ou criado pelo homem; e) as vocações diversas da cidade adquiridas ao longo da sua história.”
Uma adequada conservação do património urbanístico exige a preferência por intervenções mínimas e pouco intrusivas e não por intervenções máximas e profundamente reformuladores, que no fundo não são mais que renovação urbana encoberta. Assim a manutenção é preferível à reparação, a reparação é preferível ao restauro, a substituição tem de ceder lugar à reabilitação (ICOMOS, 2008).
As experiências de salvaguarda de sectores urbanos com valor cultural, demonstra-nos que a eficácia exige que a sua gestão integre outros domínios à escala da cidade, designadamente do âmbito socioeconómico. É a reabilitação integrada (ICOMOS, 1987). Integrada e integradora, jamais exclusiva (no sentido de única e, assim, segregativa).
A centralidade dos núcleos históricos é crucial como agregadora das urbes que cada vez mais se espalham pelo território, mas isso não pode conduzir à sua sobrecarga e renovação de usos que de forma alguma podem comportar, sob o risco de deixarem de ser o que os justifica enquanto tal. As escalas têm de ser compreendidas e as vocações potenciadas. A cidade tradicional sempre viveu da diversidade e complexidade. Por isso a seriação, a normalização, a importação de modelos genéricos só pode produzir a sua condenação enquanto organismo vivo e auto-sustentável.
Um dos elementos essenciais, estruturadores da identidade, da forma, da imagem, dos usos e da vida urbana, é o parcelário. Tão relevante e intrinsecamente relacionada com o parcelário é a interação clara e de fronteira(s) entre os domínios público e privado. A alteração, mesmo que subtil, desses sistemas de relação acaba por fragilizar o organismo urbano, por vezes ultrapassando o limite da perda de urbanidade.
Um quarteirão renovado por trás da sua diversidade de fachadas (o que se tem vindo a designar por fachadismo), fazendo tábua rasa do parcelário de forma a funcionar como um edifício único, um condomínio, um centro comercial, etc. é uma ilha de autismo, um tecido cancerígeno no meio da cidade. Algo que, num processo paradoxalmente autofágico, perde a capacidade de relação com a envolvente. Virar as intervenções para si mesmas é uma perda de oportunidade crucial para a dinamização do tecido urbano, das ruas e praças do seu contexto.
A diversidade de usos aumenta exponencialmente o espectro de atratividade, primeiro para quem ocupa (comerciantes, residentes, hoteleiros, etc.), depois de quem usa, além de assegurar a máxima flexibilidade na otimização dos espaços e expressões arquitectónicas das preexistências a salvaguardar e desenvolver. A adequação dos programas às características morfotipológicas e a transformação cautelosa do edificado preexistente é também a única fórmula para a manutenção da autenticidade que, no fundo, é o principal capital urbano na captação de novos investimentos e públicos, designadamente de âmbito criativo.
No sistema assim criado — o de uma autêntica reabilitação integrada — não são apenas o edificado, as atividades económicas e o tecido social que se revitalizam e regeneram, mas também uma indústria da construção civil e demais atividades conexas de escala local. O que torna viável e simples as operações de manutenção, de adaptação de cunho orgânico, etc. No fundo é de sustentabilidade social, económica, patrimonial que se trata.
Note-se como a intervenção à escala da parcela — é disso que se trata — potencia também a ansiada e mais justa distribuição do trabalho de projeto e aumenta a capacidade de intervenção das entidades que deveriam ter como incumbência a gestão urbanística por critérios claramente estabelecidos. A intervenção de grande escala depende sempre demasiado de vontades particulares e da gestão política, que se deveria preocupar essencialmente com o estabelecimento das políticas globais.
Os seres humanos necessitam de um habitat estável. A rapidez e uma maior amplitude na transformação imposta a um tecido urbano consolidado, afectam de forma decisiva o sentido de pertença e de identidade. Assim nos centros históricos “a rapidez da mudança é um parâmetro que deve ser controlado. Uma excessiva velocidade da mudança pode afectar adversamente a integridade dos valores de uma cidade histórica […] As cidades e conjuntos urbanos históricos correm o risco de se tornarem um produto do consumo turístico de massas, o que pode conduzir à perda da sua autenticidade e valor patrimonial” que justificou a classificação e consequente necessidade de protecção” (ICOMOS, 2011).
Os planos de salvaguarda, reabilitação ou conservação devem orientar-se tanto para a preservação das memórias que interessam (proteção e restauro) como para projetar o seu futuro (reabilitação). Essa conjugação depende da identificação e desenvolvimento dos valores em presença que dão significado e identidade aos sítios. Entre os valores, as pessoas são o expoente máximo, pois são elas a essência do fenómeno urbano. Nos centros históricos não podem ser desenvolvidas políticas e ações de segregação, mas sim de desenvolvimento social (ICOMOS, 1964). “A participação e o envolvimento dos habitantes da cidade são imprescindíveis ao sucesso da salvaguarda.” Se a salvaguarda dos núcleos urbanos históricos diz respeito, em primeiro lugar, aos seus habitantes, estes devem ser envolvidos na sua governança (ICOMOS, 1987).
Os novos elementos (edifícios, corpos, acessórios) têm obviamente de seguir as regras (escala, volumetrias, gramática e linguagem) estabelecidas pelos instrumentos de salvaguarda e gestão, que no fundo devem ser uma interpretação e codificação das preexistências. A introdução de elementos de seriação estranha e os projectos de reprodução-cópia (a invenção de um pretenso “como era e onde estava”), rompem com a estratificação e a diversidade que caracteriza o equilíbrio compositivo das preexistências e falsificam o meio ambiente urbano (ICOMOS, 1964).
Diversidade que se estende á sobreposição harmónica de intervenções de diferentes épocas. Por isso a demolição de elementos autênticos dos edifícios existentes com base em argumentos de clarificação ou autenticidade epocal ou estilística, é também inaceitável (Carta de Veneza, 1964, artº11º), menos ainda quando é usada como forma de catalisar a renovação urbana em extensão.
“A nova arquitetura deve ser consistente com a organização espacial da área histórica e respeitosa da sua morfologia tradicional enquanto, ao mesmo tempo, ser uma expressão válida das tendências da arquitetura do seu tempo e espaço.” (ICOMOS, 2011). Por isso às normativas de salvaguarda cumpre determinar com precisão “quais os edifícios ou grupos de edifícios a serem especialmente protegidos, a conservar em certas condições e, em circunstâncias excepcionais, a serem demolidos” (ICOMOS, 1987). Até por razões de transparência, essas decisões não podem ser decididas no seio de um só organismo, em especial quando este é o promotor, como é o caso das SRU. Exigem não só um processo participado como uma criteriosa avaliação crítica, na qual as histórias do urbanismo, da arquitetura e da construção desempenham um papel crucial. E no meio de tudo isso, conforme o tipo de classificação e proteção, há organismos de tutela a notificar e informar (nacional e internacionalmente).
Aqui no Porto reaprendemos na última década o que já sabíamos de décadas anteriores: que sob todos os aspetos, incluindo o do mero negócio, tem muito mais retorno e só é sustentável a implementação sistemática de uma miríade de acções difusas com tempo e menos dinheiro, envolvendo muito mais arquitetos e promotores comprometidos com as necessidades efetivas dos diversos grupos sociais em presença.
Aqui no Porto reaprendemos como é desastroso dispor de pouco tempo e muito dinheiro, concentrando num só promotor, num só modelo de financiamento, num restrito grupo de projetistas, intervenções de profunda renovação urbana de quarteirões inteiros.
Aqui no Porto reaprendemos tudo isso nas Cardosas, será necessário reaprender na Sé?
O antigo quase sempre encerra mais modernidade que o novo que muitas vezes é mais velho do que a sua idade histórica. Vejamos a cidade que se tem construído nos últimos anos em Portugal; na sua generalidade é mais velha do que as nossas cidades antigas.
Como bem escreveu Maria da Luz Valente Pereira: Reabilitar o urbano é restituir a cidade à estima pública; a reabilitação não pode constituir-se como um regime de excepção mas tem de ser uma prática corrente!
Portugal e o Porto precisam de uma capacidade crítica e de uma visão mais esclarecida para a grande oportunidade da conservação do património urbano. 
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Referências
ICOMOS 1964, Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, [Carta de Veneza]; ICOMOS 1987, Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas [Carta de Washington]; ICOMOS 2008, Guia de gestão de cidades património mundial. Organization of World Heritage Cities (OWHC): Edição online de Outubro de 2008; ICOMOS, 2011, Principes de la Valette pour la sauvegarde et la gestion des villes et ensembles urbains historiques, [Carta de La Valleta].
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Nota

O ICOMOS organizou no dia 25 de Outubro de 2013 o Seminário “Porto Património Mundial: boas práticas em reabilitação urbana”, onde foi apresentada a declaração que aqui se publica.