A habitação tornou-se um dos elementos
centrais do debate público. Ainda que a necessidade de construção de habitação
apareça como a resposta mais directa (mas nem por isso a mais imediata), a questão
está longe de poder ser resolvida apenas com a construção de «mais casas»,
porque uma parte do problema está no mercado. Mas dizer que o problema está no
mercado não significa que se trata simplesmente de ajustar os mecanismos de
regulação da relação entre a oferta e a procura. Pelo contrário, significa que um
dos aspectos fundamentais que está na base desta crise é a conversão absoluta e
total da habitação em «activo financeiro».
Ora, a financeirização da economia
significa que o capitalismo é, hoje, fundamentalmente rentista, que os seus
lucros não advêm (apenas) da exploração do trabalho, mas da exploração
intensiva da vida, naquilo que ela tem de mais íntimo: Habitação, Saúde,
Educação, Segurança Social. Seguindo uma célebre fórmula podemos dizer que
tudo o que era solidamente público foi privatizado no ar dos circuitos etéreos
da finança, isto é, transformou-se em função essencial do negócio da
finança. Todos os dias uma parte de nós está em cotação na bolsa, circula
abstractamente enquanto função algorítmica de capital acumulado. Com o
neoliberalismo financeiro, não é apenas o Estado, mas a vida que é privatizada.
E a «crise da habitação» não é senão a face mais visível de todo este processo.
Ora, sem interpelar os princípios constitutivos da finança e do modelo político
neoliberal que a legitima, dificilmente estaremos aptos a enfrentar esta crise.
Neste sentido, tanto a iniciativa «Uma
revolução assim – Luta e ficção: A questão da Habitação» como o programa «Mais
do que Casas» apresentam-se como contributos cruciais para esta discussão ao
colocar o problema da habitação de forma ampla. Não é este o lugar para uma crítica
detalhada desta última iniciativa (que reúne um conjunto abrangente de
faculdades, sobretudo de arquitectura), no entanto, lendo o seu «Manifesto» pressente-se,
desde logo, uma certa dificuldade em enunciar a crise da habitação dentro do
seu quadro político-económico. Fala-se e bem de «multiculturalismo» como o
grande desafio das cidades no futuro, mas fica de fora a interpelação à lógica económica
profundamente desigual do neoliberalismo e ao mecanismo expropriador e
especulativo da finança. Por outro lado, os dois seminários realizados no âmbito
desta iniciativa não convocaram os movimentos sociais que se têm batido no
terreno pelo direito à habitação (ao contrário do «Uma Revolução Assim», cuja
pertinência esteve precisamente na capacidade de permitir esse cruzamento). É,
aliás, estranho que uma iniciativa como esta, que surge no âmbito das
celebrações do 25 de Abril e que convoca a memória do SAAL, não sinta a
necessidade de construir uma relação com os movimentos sociais, o que acaba por
confirmar uma profunda academização da discussão.
A inauguração da
exposição «Mais do que Casas: como vamos habitar em Abril 2074?» constitui assim
um momento precioso para um reconhecimento das respostas dadas pelas diversas
faculdades. No seguimento de um convite para escrever sobre esta iniciativa, fui
visitar a exposição ao MUDE, coisa que me vi impossibilitado de fazer por uma razão
de natureza ética: o custo do bilhete. Ora, pergunto-me: como é possível que
instituições públicas de ensino e instituições públicas da
cultura, num trabalho que diz respeito às condições de acesso a uma habitação pública
possa ter um custo de entrada de onze euros (num museu que tinha, aliás, meia-dúzia
de turistas, definitivamente pouco interessados na questão da habitação).
Mas a questão fundamental que se deve
colocar é esta: em nenhum momento, nenhuma destas instituições considerou um
absoluto paradoxo cobrar onze euros para aceder a uma exposição que aquilo que tem
como tema é a habitação acessível, produzida por estudantes de escolas públicas
em museus financiados com dinheiros públicos? Não se trata apenas de perguntar
a quem é que realmente esta exposição se dirige ou o que é que ela visa, porque
o seu objectivo não será certamente o de constituir um debate aberto e
acessível. Pelo contrário, aquilo que o custo desmesurado de entrada expõe é a
crise de todas estas instituições, o modo como estas são tão facilmente capturadas,
por inocência ou inaptidão, pela mesma lógica que pretendem contrariar.
E o que esta exposição faz de modo tão lacónico
é apenas isto: privatizar o acesso à discussão sobre a habitação, excluir o
público da possibilidade de aceder à discussão. Nada mais violento, nada
mais contrário à sua própria natureza, expropriando, assim e de uma só vez, a
própria base teórica que fundamenta todo o seu programa. Mas se tal coisa é possível
não é apenas porque o programa teórico onde o «Mais do que Casas» se coloca é demasiado
frágil, mas porque ele assenta sobre as fundações (que ficaram por interrogar) demasiado
instáveis de um retorno nostálgico a um projecto social-democrata de Estado
social que não tem hoje nem as bases político-económicas nem as instituições necessárias
capazes de o colocar em marcha. E, assim, aquilo que esta exposição escreve neste
seu bilhete é apenas isto: estamos aqui, mas servimos para muito pouco,
resta-nos a possibilidade da nossa própria mercantilização, o nosso derradeiro
autocomprazimento.
Os curadores do programa, Teresa Novais
e Luís Tavares Pereira, defendiam no dia da inauguração da exposição, numa das
sessões do «Uma revolução Assim», a necessidade de um certo espírito
«positivista» dos arquitectos face às leituras mais abrangentes, «complexas» e
«pessimistas», daqueles que sublinhavam a erosão das instituições públicas e de
todo um modelo de cidade e co-existência às mãos do neoliberalismo. Talvez assim
se possa finalmente compreender que aquilo a que tantos chamam, num artifício
retórico demasiado gasto, de «positivismo» é, tão-só, o mais puro idealismo. Há
uma discussão sobre a habitação que é preciso fazer, mas há também uma
discussão sobre aquilo que as universidades querem ser. Na questão da habitação
importam certamente as soluções, mas importa compreender, como já dizia o velho
Engels, a questão, a Wohnungsfrage: se não formos capazes de
perceber a pergunta estamos condenados a dar ao Capitalismo as soluções que
este precisa, mas certamente não as soluções que nós, enquanto comunidade, efectivamente
precisamos.
•
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Ficha
técnica
«Quem
pode pensar a questão da habitação?» • Pedro Levi Bismarck
Data de
publicação • 03.10.2024
• Edição #42 •