Considerações em torno do manifesto «Mais do que Casas» • Diogo Simões



Quais são efectivamente as vantagens de uma iniciativa agora lançada a várias instituições com o propósito de pensar a questão da habitação em Portugal? «Mais do que Casas» procura, segundo os curadores Teresa Novais e Luís Tavares Pereira, contribuir para a promoção de «uma discussão aberta e cruzada sobre o problema da habitação hoje». Com este intuito, formalizaram um convite à participação das instituições de ensino em Portugal, Faculdades de Arquitectura, Arquitectura Paisagística, e Belas Artes. Desta iniciativa nasceu um manifesto, assim o denominam, um programa, que dê resposta às questões (preocupações) levantadas no manifesto e, recentemente, uma exposição, cujo título celebra os 50 anos e o contributo da actividade do SAAL em 1974; «Mais do que Casas: Como vamos habitar em Abril de 2074?».

Não precisamos de avançar muito no texto para percebermos desde logo ao que vêm: um justo equilíbrio entre as forças destrutivas do capitalismo e suas políticas neoliberais, e os modos de vida actuais, agora totalmente subjugados, que nos obrigam a uma adaptação constante. «Mas é essa a cidade que hoje estamos a construir?», questionam.

As inquietações levantadas no manifesto, tão caras à população mais desfavorecida, assentam aparentemente na criação de reformas para que a vida possa ser um pouco mais suportável, mas em que os intervenientes são os de sempre. As conversas parecem ocorrer nos bastidores, à mesa das «negociações» sentam-se especialistas, arquitectas e arquitectos, estudantes do ensino superior; de fora, ficam colectivos e activistas, a população local – as pessoas que sofrem no dia-a-dia as consequências de políticas neoliberais opressoras. Como pode advir daqui uma prática realmente prefiguradora?

É, justamente, este o desconforto sentido ao lermos o manifesto «Mais do que Casas». Exigem uma «cidade intercultural», que promova a diversidade e que «recus[e] a atomização, a guetização e a racialização», melhores casas, melhores espaços, exigem o direito da cidade para todos, mas «esquecem» a lógica capitalista. É esta a cidade em que queremos viver? Com isto, perpetuam-se as mesmas tácticas, o mesmo modo «indiferente», as mesmas reformas, o mesmo conformismo, para lidar com as políticas que constantemente reduzem a vida, que a expropriam. Oxalá dure bastante, replicam deste modo as palavras de Napoleão.

Ora, parte desta conscientização que o programa sustém (as dinâmicas em torno do habitar, a sua inserção nos tecidos urbanos, o espaço público, os vazios, a preocupação na redução de resíduos e emissões de CO2, etc.) configura já, ou deveria configurar, nos programas das faculdades de arquitectura, onde alunas e alunos devem ser chamados à responsabilização. Aparentemente nada de novo, a não ser a importante reunião das instituições na defesa por uma sociedade justa.

Posto isto, trata-se, com efeito, de gerir os problemas, começando por definir os seus limiares. Justamente, o programa «Mais do que Casas» está mais interessado na gestão dos problemas, diria mesmo na sua perpetuação, do que na criação de um verdadeiro questionamento que possa retribuir uma vida boa, uma vida justa. O que é, convenientemente, favorável à economia de mercado, ao Estado, mas pouco às populações locais. E correm sobremaneira o risco de verem impávidos as suas tácticas e estratégias serem sucessivamente recuperadas pela lógica capitalista, e de mercado, e não servirem mais do que para estratégias comerciais. A crítica, neste sentido, longe de ser positiva – atravessada pelo movimento (Wigley) –, apenas contribui para a formação de consensos de todo o tipo. Recordemos Marx, quando, em 1844, escrevia: «A crítica não é uma paixão da cabeça, mas a cabeça da paixão. Não é um bisturi anatómico, mas uma arma. O seu alvo não é um inimigo que ela procura refutar, mas destruir.» [1]

1. Karl Marx, Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, LusoSofia press, Covilhã, 2008, p. 8.

Nisto, o problema, que é real, torna-se num campo árido pronto a ser explorado por todos os meios. Ao negarem, ou ao não quererem falar e questionar as políticas opressoras, neoliberais, subjacentes aos nossos modos de produção, apenas contribuem para a sua perpetuação.

Sente-se, de todo o modo, a desconfiança nas instituições num tal projecto, cuja iniciativa parece ceder a conformismos. Mas regressemos à pergunta inicialmente formulada: quais são as vantagens da iniciativa e consequente programa? Referem as questões para as quais exigimos respostas, por um lado, por outro, nem o mais pequeno vislumbre em referir aquilo que nos parece ser a supra-mencionada questão: como libertar a arquitectura das demandas do capitalismo? Apenas pelos conhecimentos especializados das mentes privilegiadas? Julgamos que não. Abaixo as torres de marfim!

 

 

Diogo Simões

Diogo Simões (1994). Formado em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, com a dissertação "Modos de produção dos Forensic Architecture: Uma prática contra-hegemónica, seguida de algumas derivas".

 

Nota da edição

Este texto contínua o debate iniciado aqui no Punkto com o artigo Quem pode pensar a questão da habitação?, de Pedro Levi Bismarck, igualmente uma crítica sobre o programa e a iniciativa “Mais do que Casas”

 

Imagem

«Uma só solução, resolver o problema da habitação», Porto, 1975. Alexandre Alves Costa

 

Ficha Técnica

«Considerações em torno do manifesto “Mais do que Casas”» • Diogo Simões

Data de publicação: 04.12.2024

Edição #42 • Outono 2024 •