«O Futuro é Já»: a política, o fascismo, o mito • Pedro Levi Bismarck




A AD teve 1 914 913; votos enquanto o PS teve 1 394 491 e o Chega 1 345 575 votos. O que significa que há, neste momento, em Portugal três blocos praticamente equivalentes. O Livre teve 250 651 votos, a CDU, 180 943 e o Bloco 119 211 (totalizando um número de votos de 550 805).

Com este resultado é lícito dizer que há pelo menos 2 milhões de portugueses que não viram qualquer relevância nas questões éticas e políticas levantadas pelo caso Spinumviva. A comunicação social e o comentariado nacional, que entraram em esteróides por causa dos «casos e casinhos» de António Costa, tentaram a todo o custo, após o susto inicial, desvalorizar e normalizar a situação da empresa «familiar» de Montenegro. Basta ver como o discurso de alguém como Bernardo Ferrão foi evoluindo ao longo do tempo. Ou como João Maria Jonet, que teve talvez umas das mais acutilantes críticas a Montenegro, parece ter desaparecido do comentário da SIC.

A comunicação social uniu-se em torno de Montenegro, porque aquilo que esta não poderia admitir era um regresso do PS ao poder e ainda para mais com Pedro Nuno Santos ao volante. A entrevista de Pedro Nuno Santos à jornalista da SIC Notícias Nelma Serpa Pinto é o ponto de ebulição de uma estratégia geral que visou sempre virar as acusações de carácter que estavam a ser lançadas contra Montenegro em direcção a P.N.S. Todas as entrevistas a que este foi sujeito visaram colocar em causa o seu carácter («imaturo», «impulsivo», «irresponsável», etc.). Em contrapartida, Montenegro, cujo carácter estava e está inequivocamente em causa, que mentiu e omitiu vezes sem conta ao Parlamento e aos jornalistas pelos negócios obscuros e mal explicados da Spinumviva, nunca foi alvo das mesmas avaliações duras de carácter, nunca foi alvo do mesmo dinamismo interpelativo que a comunicação social parece ter tido em tempos idos.

A comunicação social elegeu Montenegro e isso é um facto. A direita preferiu ter alguém moralmente falido e uma figura representativa do chico-espertismo nacional, a ter o PS no poder. Que Montenegro não se tenha demitido e que tenha visto a sua votação reforçada diz muito daquilo que é o estado de espírito da direita portuguesa e dos media que preferiram agudizar e levar a crise da democracia a um novo patamar para salvaguardar os seus próprios interesses políticos e ideológicos. Ao contrário daquilo que o administrador e jornalista da SIC Ricardo Costa dizia, enfaticamente, não é aos dirigentes do PS que temos de imputar as culpas por ter levado o país para eleições e contribuir para o aumento do CHEGA, é a Montenegro que temos de imputar todas as culpas pelo seu contributo fundamental neste longo caminho de descrédito da democracia portuguesa. Ter o seu próprio Sócrates era algo que a Direita não podia aceitar e, portanto, o horizonte tão elevado dos seus valores éticos e morais foi imediatamente redesenhado.

A subida do CHEGA, para além de tantos outros factores, nasce no contexto desta dupla conjunção: o sucesso absoluto da estratégia de demonização do PS como Partido-Sistema e o pouco à vontade que seguiu no resto do eleitorado relativamente aos conflitos de interesse mal explicados de Montenegro. O CHEGA é o exemplo maior de como fazer política na era do fim do jornalismo: tudo é espectáculo político. O CHEGA e os media alimentam-se mutuamente, precisam um do outro. O sinal da catástrofe que vem, o movimento imparável e irresistível em direcção a um desfecho prestes a acontecer, alimenta o pathos emocional das audiências sobressaltadas, mas também o pathos de um eleitorado colocado perante o desenrolar vertiginoso de um thriller narrativo: cada ida ao hospital, cada declaração polémica, assegura a continuação do espectáculo em curso, assegura as receitas de publicidade, as sondagens e as tracking polls. O eleitor é, hoje, pouco mais do que um espectador e, no final, ele apenas pode votar a performance do candidato, como se votasse a saída de um participante num qualquer reality show. Não há política ou programa: tudo gira em torno da construção do personagem e da encenação permanente de uma narrativa. A psicologização do candidato e das suas características é parte deste processo de novelização da política como espectáculo de entretenimento. A política é apenas um momento no espectáculo permanente que caracteriza hoje as televisões nacionais algures entre o Programa da Tarde e o Big Brother.

É por isso que é tão contraditória a posição de alguém como Ricardo Costa, jornalista e administrador da SIC. Na noite de domingo, este qualificava a posição dos responsáveis do PSD e PS de «burrice» pela forma como precipitaram a subida do Chega com estas eleições. Mas talvez a sua assertividade seja apenas uma forma de dissimular as contradições da sua própria posição perante um jornalismo que morreu, que perdeu toda e qualquer pretensão de neutralidade e de pluralidade, que vive hoje da pura espectacularização da notícia e não da construção de um debate intelectualmente informado. Porque é aos media que devemos agradecer em parte a subida do CHEGA, não apenas pelo fascínio que este exerce na construção das audiências, mas porque foram os media que destruíram e continuam a destruir o jornalismo e a fazer da política um momento do seu espectáculo permanente de entretenimento das massas, por entre os interesses privados das empresas de comunicação social. Mas há um outro aspecto inultrapassável. A esquerda terá, certamente, muitas responsabilidades nesta derrota, mas há inegavelmente uma ofensiva bem articulada e concertada de descrédito e esvaziamento político da esquerda, que passa pelos media e que tem contribuído para consolidar o CHEGA como partido de protesto. É essa, aliás, uma das funções históricas da extrema-direita: evitar a politização da sociedade, fazer convergir o voto de protesto e os descontentes para a direita, precisamente aí para onde não se podem organizar colectivamente e politicamente.

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O CHEGA não é a crise do regime, é o regime. É o regime no momento da sua reconfiguração, da sua revolução,  isto é, o voltar a si mesmo do regime. O CHEGA é o filho pródigo de um sistema que elevou o «povo» à condição de elemento central do sistema, sem jamais lhe conferir um qualquer poder. Tal como o rei no modelo da monarquia constitucional, também o povo reina, mas não governa. Esta é frase que sintetiza a contradição fundadora da democracia liberal representativa: a posse de uma soberania popular que apenas pode ser sonhada ou encenada. A política da democracia liberal nunca foi outra coisa que o ficcionamento permanente e constante de uma ilusão de posse de soberania. E, por isso, o fascismo não é apenas ou exactamente uma política do ressentimento, mas uma política da esperança: ele é o momento que tem como função reactualizar a potência redentora dessa ficção, desse mito, capaz de salvaguardar o estatuto fictício do povo enquanto sujeito político. Neste sentido, a observação de Walter Benjamin segundo a qual o «fascismo […] vê a sua salvação na possibilidade que dá as massas de se exprimirem (mas com certeza não a de exprimirem os seus direitos)» é talvez a fórmula que melhor sintetiza a operação fundamental do fascismo na política moderna do capitalismo. E a «salvação» é, em todo o caso, a palavra-chave: porque é, precisamente, o conteúdo religioso da redenção aquilo que o fascismo mobiliza e manipula tão sabiamente.

Ora, o CHEGA aparece quando as ficções da social-democracia chegam ao seu ponto de exaustão (talvez o slogan do PS «O futuro é já», seja um exemplo disso mesmo). E o seu papel político é, precisamente, o de reactualizar a ficção, o mito, capaz de garantir que o povo possa continuar a auto-representar-se a si mesmo como detentor de um poder que na verdade não tem, e, sobretudo, garantir que o actual processo neoliberal de privatização do Estado e de acumulação de desigualdades possa continuar. É isso que define o sucesso do CHEGA: a possibilidade última que oferece ao povo de se ver a si mesmo como povo, de se continuar a sonhar como povo. E é essa, aliás, a grande obsessão actual da Direita a que o fascismo sempre deu corpo: uma espécie de neo-realismo capaz de afirmar a direita como a expressão cultural e espiritual da identidade essencial desse «povo». Mas esta possibilidade de expressão de si para si, não como sujeito político mas como um sujeito, poder-se-ia dizer meramente patético (dominado pela ordem do pathos), isto é, um sujeito puramente emocionalizado e fechado em si próprio e na experiência dos seus mitos é, em primeiro lugar, uma construção da Social-democracia e de um regime político que fez da democracia não um instrumento de emancipação e de autonomia política, mas de pura pacificação e controlo das massas. Como escrevi há um ano, em «Dizer qualquer coisa de esquerda», «a social-democracia no seu processo de pacificação política e depois o neoliberalismo, no seu processo de precarização laboral e social, fizeram da classe média um gigantesco vazio político e intelectual, uma massa politicamente dessubjectivada e politicamente iletrada». E, neste sentido, a presença do fascismo apenas se pode consumar quando a sociedade atingiu o ponto total da sua desideologização.

Ainda que a história se tenha esforçado por ver no fascismo uma espécie de momento acidental de erupção de uma irracionalidade qualquer no quadro de uma política absorvida totalmente no movimento e na lógica do mito, a verdade é que é o mito quem funda o espaço da política ocidental moderna (é essa, de resto, a tese que o pequeno opúsculo A Economia Política do Mito também propõe). O mito não é exclusivo do fascismo. Não é o fascismo que impõe o mito, é a política do mito que impõe o fascismo. O fascismo é, precisamente, a fórmula que visa salvar o regime político do capital no momento da sua dissolução.

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do jornal Punkto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Ficha técnica

«"O futuro é já". A política, o fascismo, o mito» • Pedro Levi Bismarck  

Data de publicação • 19.05.2025

 Edição #43 • Inverno-Primavera 2025