Diário da psico-deflacção VI: Xeque • Franco “Bifo” Berardi





«E quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no céu durante cerca de meia hora. E vi os sete anjos, que estão de pé diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas». (Apocalipse 8:1)

29 de Abril
Tenho um amigo no Facebook, cujo nome prefiro não revelar (vou chamar-lhe F.Z.) e que é, por assim dizer, aquele tipo de “amigo” que nunca perde uma oportunidade para abusar da tua paciência e te chamar cretino. Às vezes, respondo amigavelmente; outras, menos.
Ainda assim, sempre apreciei os seus comentários maldosos, nos quais reconheço o anarco-marxista altamente radical que odeia intelectuais como eu. Como o compreendo.
Hoje, pela primeira vez, teve a gentileza de me dedicar uma mensagem bastante longa, articulada e sem polémica. Talvez me tenha perdoado, quem sabe. Por isso, leio-a.
Copiei um excerto, não a mensagem toda, mas quase. Tomei a liberdade de incluir algumas correcções e clarificações, já que tenho a certeza de que F.Z. a terá escrito de um só jacto, procurando perder o mínimo de tempo possível comigo.
«Se do ponto de vista da organização do poder, a história dos últimos 14.000 anos toma uma aparência fragmentada e não linear, verifica-se – apesar de tudo – uma tendência absolutamente coerente. Nomeadamente, a eliminação dos espaços físicos [eu diria, antes: a privatização dos espaços físicos, que conduz à sua eliminação para a maioria – nota minha]. Como contam os arqueólogos, uma das primeiríssimas coisas a suceder em cidades-estado como Uruk foi, justamente, nomear a terra. Aquele solo era propriedade de um rei, de uma cidade, pertencia a uma entidade “jurídica”. Durante o período em que decorriam as guerras entre Hititas e Sumérios, criaram-se os acordos de extradição. Desaparecia a possibilidade de aceder livremente à terra, ficava-se ligado a um solo, a um lugar. Este processo não mais parou. As enclosures inglesas dos anos 1600s transformam as terras comuns, a terra de ninguém, em propriedade do Estado. Resultado, não ficou um único centímetro quadrado de terra por reclamar: que não seja de alguém, que não tenha um proprietário. E o que tem proprietário, pode ser vendido. Um exemplo especialmente terrível deste processo foram as aquisições de terras na Palestina pelos sionistas. Ou quando os Ingleses impuseram às populações indígenas, em África, o registo das terras como forma de controlo do território, sabendo que ali se decidia o sucesso da empresa colonial. Hoje, chegamos a um momento crucial desta história. Há muito que os livros de ficção científica nos falam da ascensão das máquinas ao poder. Passámos a reconhecer, na nossa propriedade, o único espaço habitável. Por isso, tudo se deve tornar propriedade: cada estrada e cada jardim. Podemos obter concessões para percorrer um determinado território, mas no contexto de um espaço privado e rentável. A partir daqui, é apenas lógico que o Estado deixe de existir: a propriedade do Estado já não existe, o monopólio da violência deixou de pertencer ao Estado-nação, o dinheiro dos impostos da Glovo, da Google ou da Amazon não entra nos cofres nacionais, a jurisdição não apela já à constituição, o Estado deixou de imprimir moeda uma vez que a moeda nacional já não existe, o público recua e desaparece. Neste momento, e para que o controlo seja total, vai ser necessário que o consumidor se mantenha conectado à rede 24 horas por dia, aterrorizado por todo e qualquer tipo de fisicalidade. Estamos no bom caminho, quando a maioria das pessoas já prefere ficar – voluntariamente – em casa. O 5G, neste sentido, é indispensável. Uma tecnologia que permite gerir 2 biliões de dispositivos subcutâneos, para não falar da robótica doméstica. Assim, o que enfrentamos com o 5G é tão simples quanto isto: as grandes companhias privadas estão a comprar os lugares onde vivemos. Land grabbing.
P.S.: Obviamente que o vírus, só por si, não desempenha nenhum papel nesta história. O vírus como problema, em si mesmo, não existe. Existe o medo, que se alimenta da nossa fraqueza: o terror de morrermos sem nenhuma perspectiva no horizonte, para além de nós próprios e dos nossos corpos.»
F.Z. conclui, mas deixa um voto: «Dizem-nos, desde crianças, que o povo não pode vencer e dizem-no claramente para nos convencer à inacção. Se têm filhos, ou se possuírem uma réstia de dignidade, este é o momento para se tornarem nómadas. O momento para lançarem os vossos computadores pessoais pela janela. De uma só vez, sem olhar para trás. Num épico acto de rebelião.»

30 de Abril
A administração Trump corta o financiamento aos Estados, quando estes se encontram ainda sob o ataque do vírus. Têm de enfrentar o problema sozinhos, diz aos governadores de Nova Iorque e da Califórnia. É um modo de colocar pressão sobre os governadores para que estes renunciem ao lockdown e retomem a actividade económica, custe o que custar – isto, ao mesmo tempo que grupos de trumpistas armados invadem o edifício do governo do Michigan. Um dos manifestantes anti-lockdown mostra um cartaz no qual se reivindica que o trabalho liberta. Escrito em Alemão, nele se lê, palavra por palavra: «Arbeit macht frei».

1 de Maio
As preocupações do Economist evidenciam o brutal realismo que sempre caracterizou este antigo jornal: o mercado livre está em perigo. «A compra de títulos do tesouro por parte da Reserva Federal assemelha-se bastante a imprimir dinheiro para financiar o déficit. O banco central anunciou programas para suportar o fluxo de crédito às empresas e aos consumidores. A Reserva Federal está a agir como credor de última instância junto da economia real, e não apenas para o sistema financeiro… Larry Kudlow, director do National Economic Council da Casa Branca, chama ao estímulo fiscal acordado pela administração Trump “o maior programa de assistência a Main Street na história dos Estados Unidos”, comparando-o aos resgates de Wall Street de há uma década. Os cidadãos Americanos receberão cheques no valor de 1200 dólares.» (Com a assinatura de Trump, suprema arrogância.)
Continua o Economist: «O modelo de Estado que se afirmou na Europa entre os anos 1950 e os anos 1970, com os burocratas a controlarem serviços essenciais, da electricidade aos transportes, não teria sido possível sem a experiência da guerra – em que o Estado controlava praticamente tudo e as pessoas faziam tremendos sacrifícios, no campo de batalha ou em casa.»
Catástrofes – como guerras e pandemias – favorecem o reforço do aparelho de estado, continua o Economist, que receia sobretudo que o Estado imponha taxas aos seus leitores ricos. «A nova ideia de que o governo deve salvar a todo o custo as empresas, os empregos e os rendimentos de quem trabalha poderia consolidar-se. Um número crescente de países procurará tornar-se auto-suficiente na produção de bens estratégicos como medicamentos, material sanitário ou até papel higiénico, provocando um ulterior recuo da globalização. O papel do Estado poderia transformar-se em definitivo. Durante séculos, as regras do jogo evoluíram numa direcção: neste momento, perfila-se no horizonte uma mudança radical.»
O socialismo de Estado que o Economist acredita estar a emergir das medidas de apoio à economia e do reforço da intervenção pública em sectores como a saúde assusta o jornal, fiel – como sempre – ao neoliberalismo global. É compreensível. Mas pode o intervencionismo de Estado, só por si, salvar a situação e restituir a energia a um corpo social exausto, distanciado, paralisado pelo medo? Não acredito.
O poder do dinheiro mostra-se enfraquecido.
Por demasiado tempo, a aceleração tecno-financeira e a precariedade levaram à exaustão as energias mentais da humanidade: o mundo parece entrar, agora, numa condição de permanente debilidade.
Baudrillard tinha intuído, em 1976, que só a morte escapa ao código do Capital. Longamente removida da cena da expansão ilimitada, eis que a morte surge de novo no horizonte. No decorrer da era digital e neoliberal, a abstracção financeira colocou a sociedade em xeque. Em seguida, veio o bio-info-psico vírus: uma concreção material proliferante que colocou em xeque a abstracção do Capital.
Inicia-se, agora, uma nova partida.
Como no filme de Bergman em que o nobre cavaleiro Antonius Block, regressando da Cruzada, encontra a Morte à sua espera numa praia, frente a um mar agitado. À sua volta, as terras do Norte, assoladas pela peste e o desespero. Então, Antonius desafia a Morte para uma partida de xadrez e a Morte consente em adiar. Assim se tinge o horizonte do nosso século com as cores da extinção, e a partida de xadrez pode começar. O nome deste jogo, pedimo-lo de empréstimo a uma peça [1] de Samuel Beckett: Nagg e Neil vivem, cada um no seu caixote de lixo, enquanto Hamm é cego e não se pode mover da sua poltrona…
Para levar de vencida o nosso adversário na partida que agora se inicia, duas ou três jogadas bastariam, pelos meus cálculos: redistribuir a riqueza produzida pela colectividade e garantir, a cada um, um rendimento suficiente para levar uma existência frugal, abolir a propriedade privada, investir tudo na investigação, na educação, na saúde, nos transportes públicos. Simples, no fundo. Infelizmente, não creio que estejamos à altura – refiro-me a “nós”, humanidade. A humanidade simplesmente não se encontra à altura da situação, pouco podemos fazer. Como diz Pris, a replicante de Blade Runner: somos estúpidos, vamos morrer. Não é motivo para fazer um drama.
O bio-vírus assinala a irrupção da matéria sub-visível no ciclo abstracto do tecnocapital.
Os gritos de protesto, os cocktails molotov arremessados contra as vitrines dos bancos, o voto da maioria dos cidadãos Gregos, não foram capazes de travar a agressão financeira contra a vida social – produziram o mesmo efeito (nulo) que as considerações razoáveis de economistas e jornalistas que, no mesmo momento, davam nota do extremo perigo que constituía essa absurda concentração de riqueza nas mãos de uma ínfima minoria.
Agora, o bio-vírus vinga-se: mas não existe modo de o governar, de o reconduzir ao bem comum. Por isso se torna um info-vírus, transferindo-se para a infoesfera e saturando a mente colectiva com o medo, a suspeita, a distância. O risco é que estabilize como psico-vírus, patologia tendencionalmente fóbica da epiderme, paralisia do desejo erótico, em suma, depressão generalizada ou, finalmente, psicose agressiva latente, pronta a manifestar-se na vida quotidiana assim como na dinâmica geopolítica enlouquecida.
O circuito bio-info-psicótico do contágio tornou obsoletos os instrumentos tradicionais da intervenção financeira e paralisou a vontade política, reduzindo-a à execução militar de um programa sanitário.

3 de Maio
Recebi uma mensagem de Ângelo, que termina da seguinte maneira: «Acreditávamos que a terra, doravante totalmente antropizada, não nos reservaria mais surpresas e, em vez disso, estamos a entrar numa terra incognita, onde os vírus fazem as vezes dos “leões” do passado [2]. Em suma, sigo o teu diário com uma certa angústia, tendo quase perdido a esperança de que as profecias que destilas, perscrutando o horizonte dia após dia, possam vir a tornar-se menos sombrias e desesperadas do que, neste momento, me parecem.»
Nathalie Kitroeff relata, no New York Times, que o embaixador americano no México está a exercer pressão para que as fábricas no norte do México, que abastecem o ciclo de produção automóvel yankee, regressem ao trabalho: não obstante o contágio, não obstante as medidas de confinamento decididas pelas autoridades do país, que continua sob a ameaça constante do muro de Trump.
Christopher Landau – é o nome do embaixador – disse que se o México não for ao encontro das exigências norte-americanas, perderá as encomendas de que aquelas fábricas dependem para funcionar. Afinal, é o embaixador do país que já foi considerado o líder do Ocidente, do país que inspirou as reformas impostas pela força das armas e da finança durante os últimos quarenta anos. Mas é legítimo nutrir a esperança de que este país não sobreviva à catástrofe que presentemente o varre de cima a baixo. A miséria, o desemprego, a violência psicótica, a guerra civil, começaram já a sua obra de destruição e preparam-se para o deixar em pedaços. Infelizmente, antes de desaparecer da face da terra, o império psicótico que é a América fará uso, ou tentará fazer uso da força de devastação de que o seu exército é ainda o depositário. É por isto, e não por efeito do vírus, que a extinção da civilização humana sobre o planeta constitui, no presente, a perspectiva mais provável. Decorridos cinco séculos, difícil seria não o ver: a América já foi o futuro do mundo, hoje é o abismo no qual o mundo parece condenado a desaparecer.
Da sua clausura parisiense, Alex faz-me chegar esta mensagem: «O coronavírus é a forma de imaginação material que a Terra usa para nos interrogar sobre o possível destino da nossa espécie e do planeta inteiro. Aqueles que pensavam que a imaginação pertencia exclusivamente ao homem, sob a forma abstracta da recombinação simbólica, cometiam um erro grosseiro. Uma pequena mutação material (orgânica? inorgânica? não importa) encarrega-se de destruir as grandes construções simbólicas que estavam a aniquilar, uma por uma, todas as formas de vida no planeta. Destrói e re-imagina, já que qualquer recombinação do virtual trata sempre de demolir e, ao mesmo tempo, de abrir novos espaços e criar possibilidades. Caosmose…»
No site Psychiatry Online, Luigi D’Elia sustém a tese de que o princípio de reciprocidade está destinado a ocupar o lugar do princípio da dívida, desde que – ele não o diz, mas parece-me implícito – a sociedade não se decida a desintegrar-se: chegou o momento de admitir que todas as dívidas são impossíveis de pagar, de abolir da economia o conceito de dívida e de o substituir pelo de reciprocidade.
O primeiro ministro da Etiópia exprime-o, com absoluta clareza, num artigo saído no New York Times, intitulado: Porque deve ser cancelada a dívida global dos países pobres. Reciprocidade significa interdependência e interconexão. É preciso uma coisa como uma pandemia para tornar visível o fio que nos liga a todos. A estratégia evolutiva na qual se move a nova racionalidade (anti-mercado) faz com que, neste momento, se torne “conveniente” (no sentido utilitarista clássico) colaborar ou, até mesmo, rever as regras do jogo. Entre as quais a da tirania da dívida, a primeira a dever cair.
Quando não tenho qualquer hipótese de te pagar o que te devo, o meu prejuízo torna-se o teu prejuízo. O contágio demonstrou-o. Os alemães têm alguma dificuldade em aceitar o conceito, mas depressa chegarão a esta conclusão.
Se não formos capazes de modificar radicalmente a forma geral na qual se desenvolve a actividade humana, se não formos capazes de abandonar o modelo da dívida, do salário e do consumo, diria que a extinção é garantida no espaço de duas gerações. Parece uma afirmação um pouco exagerada, sem dúvida, mas começo a não vislumbrar uma terceira via entre o comunismo e a extinção.
Diga-se de passagem, a extinção em si e por si não é uma perspectiva assim tão terrível quanto isso. A terra vê-se livre do seu hóspede ávido e arrogante, e boa noite.
O problema, entretanto, é que não é assim tão simples – não é como se adormecêssemos à meia-noite e, pela manhã, já lá não estamos. A extinção é um processo que se iniciou há alguns e que se desenrolará ao longo do século: deslocamentos em massa de populações com fome através de desertos que não param de se expandir, guerras de extermínio pelo controlo das reservas de água, incêndios que devastam territórios inteiros e, naturalmente, epidemias virais cada vez mais frequentes.
Já o devíamos ter compreendido, por esta altura: o capitalismo não será, daqui em diante, mais que um enorme oceano de horrores.

4 de Maio
A meio da tarde, enchemos os pneus das bicicletas e saímos para dar uma volta pelo centro da cidade.
Os automóveis voltaram a circular, mas são poucos. Raparigas de calções curtos e rapazes nas suas scooters eléctricas. Toda a gente usa a máscara. Quase toda.
É o dia da reabertura. Wow. Mas para ir aonde? A Cofindustria mal pode esperar: para os patrões, é perfeitamente normal ver milhões de pessoas afundarem-se na doença e na morte, desde que a competitividade não decaia.
«Assusta-me a ideia de que se normalize a distância social, o não poder abraçar, tocar: esta perspectiva profilática enche-me de pânico», escreve-me Alejandra, que fez a sua tese de doutoramento sobre o tema da identidade digital e deveria defendê-la. Mas quando e como? Provavelmente em Setembro, à distância.

5 de Maio
Trump estava convencido de que o seu nome, aquele ridículo monossílabo com uma sonoridade vulgar, tinha conquistado o primado absoluto na mediascape de todos os tempos. Disse-o mesmo algures, se não estou em erro: que o nome dele era o mais citado desde que existe uma esfera pública global. Acredito que, agora, deve estar furioso com o facto de a palavra “coronavírus” lhe ter estragado esse registo.
O Corriere della Sera, com o seu provincianismo atrasado em cinquenta anos, aposta nos intelectuais franceses como se estes ainda caminhassem entre os vivos. Hoje, propõe um breve texto de Houellebecq, que nos diz: «Não creio, nem por um momento, em declarações do tipo: “nada será como antes”. Pelo contrário, tudo permanecerá exactamente igual ao que era antes. O desenvolvimento desta epidemia é, na verdade, absolutamente normal».
Tudo ficará exactamente igual, diz Houellebecq. Abençoado.
Eu, pelo meu lado, assisto a uma espécie de acidente ferroviário. A vida social descarrilou, largou os seus eixos formais assim como os seus eixos psíquicos. O eixo do trabalho, o eixo da dívida, o eixo do salário, deixaram de a conduzir. O eixo da oferta e da procura tem dificuldade para articular os fluxos de mercadorias, como o petróleo que navega pelos oceanos porque todos os depósitos estão cheios.
O dinheiro, o eixo que um dia ligou todos os eixos, vem sendo lançado em pacotes que procuram desesperadamente, aqui e ali, tapar o enorme buraco que se criou: mas perdeu o seu charme e a sua capacidade de mobilizar energias.
Uma tempestade que não se julgava possível emerge da terra maldita de onde são originários os pesadelos.
Uma concreção material, invisível e proliferante, corrói os eixos nos quais se fazia passar o mundo; mas seria superficial indicar o vírus – o agente biológico que se transferiu para a informação e dali transmigrou para a psique humana – como a causa que explicaria todo este sinistro.
Há muito tempo que os eixos cediam. Rangiam.
Mas não havia alternativa, dizia-se. Com efeito, até à data, confirma-se que uma alternativa tarda em manifestar-se: e não é de excluir que não venha jamais a tomar uma forma coerente. Enquanto isso, o que é certo que o edifício já não se aguenta de pé.
Em neurogreen, a lista mais selecta e enigmática da Infoesfera, Rattus comunica que [a revista] Rizomatica saiu, finalmente. Corro a espreitá-la, está cheia de pistas interessantes.

6 de Maio
O meu velho amigo Leonardo convidou-me a participar num seminário sobre as perspectivas psicopatológicas e psicoterapêuticas abertas (ou fechadas) pelo distanciamento. Faço os procedimentos habituais para entrar no Zoom e dou por mim perante um cenáculo de psicólogos que se encontram numa dezena de cidades diversas, desde a América Latina à Europa. A discussão é apaixonante, estimulante e, a espaços, perturbadora. Não são intervenções teóricas, mas fragmentos de auto-análise, um conjunto de relatos descrevendo a experiência vivida daqueles que contactam quotidianamente com pacientes, sobretudo através do virtual.
A questão central que vejo emergir destes relatos é esta: quanto tempo demorará para se elaborar, e sob que modalidades se elaborará o trauma produzido pelo contágio e pelo confinamento?
Em primeiro lugar, podemos prever o desenvolvimento de uma espécie de sensibilização fóbica ao contacto com o outro. O distanciamento, a angústia decorrente da proximidade da pele do outro – tudo isto age sobre um plano que não é o da vontade consciente, mas o do inconsciente.
De repente, dou-me conta de que estamos a entrar na terceira época do Inconsciente, que é também a terceira época da psicanálise.
Há muito tempo atrás, sob a paisagem ferrosa da indústria e da família monogâmica, dominava a neurose, patologia ligada à repressão das pulsões, à remoção do desejo. Foi a época da psicanálise freudiana.
Depois, a esquizoanálise antecipou a ruptura da fronteira, o emergir do esquizo como figura predominante do panorama colectivo.
Entrando na esfera do semiocapital, o Inconsciente alastra como uma erva rasteira: o imperativo geral não é mais a repressão mas a hiper-expressão. Just do it. A explosão reticular do Inconsciente é responsável pela predominância das patologias psicóticas de tipo narcísico, do pânico à depressão.
Finalmente, por efeito do bio-vírus que agride a Psicoesfera, passamos da conexão voluntária das décadas da Internet à conexão obrigatória no distanciamento. O Zoom, o Instagram e o Google permitem-nos dar continuidade ao fluxo social e informativo, mas sob condição de renunciarmos ao contacto da epiderme e a uma respiração comum. A tecnologia 5G tornará possível um controlo integral da vida pela conexão.
À passagem pela esfera da conexão voluntária, correspondeu um processo de hiperexcitação e dessensibilização; adiamento do prazer em nome de um estado de excitação constante e de um desejo sem corpo. Na psicose de hiper-expressão, o desejo era mobilizado até à exaustão das suas próprias forças e a imaginação delirante não podia não falhar o plano da realidade.
Agora que entramos na esfera da conexão obrigatória e do distanciamento dos corpos, o que se parece delinear toma a forma de uma sensibilização fóbica ao corpo do outro. Medo da aproximação, terror do contacto. Ou quem sabe, num volte-face imprevisível, o overload conectivo não possa conduzir a uma rejeição e acabar por romper o feitiço do virtual?
O “trabalho do trauma” não é imediato, precisa do tempo para se desenvolver: a sensibilização fóbica irá manifestar-se em primeiro lugar, juntamente com a angústia da aproximação dos lábios. Podemos prever que depois do domínio da neurose freudiana, depois da psicose semiocapitalista, entramos numa esfera dominada pelo autismo enquanto paralisação da imaginação do outro?
Questões inquietantes mas urgentes, para as quais ainda não tenho uma resposta.
Pareço confuso? Um pouco, necessariamente, desculpem-me se conseguirem.

7 de Maio
Trump diz – fizemos tudo o que podíamos, agora basta, é hora de retomar o trabalho.
Na verdade, o país está em fase de expansão descontrolada do contágio. A Universidade de Washington prevê 134.000 mortes até Agosto. Os números oficiais dizem que morrem entre duas a três mil pessoas por dia, um ritmo que deve continuar a acelerar até ao início de Junho. Mas Trump não quer desculpas, diz que é preciso trabalhar duro e sobretudo: make America great again. Trinta mil novos casos de infecção todos os dias e, em muitos estados, este número está a crescer. Mas Trump tem pressa.
Uma em cada cinco crianças passa fome no país a quem coube a tarefa de liderar o Ocidente. Um número três vezes superior ao de 2008, no início daquela que parecia ser uma tremenda recessão. Na altura, houve bancos para salvar: que foram salvos, ao mesmo tempo que eram removidas, uma por uma, as condições que viabilizavam a vida em sociedade.

8 de Maio
Sessenta mil migrantes, na sua maioria Africanos, depois de terem atravessado o deserto, de terem sido detidos e abusados nos campos de concentração líbios mandados construir por Marco Minniti, depois de se terem arriscado a morrer afogados no canal da Sicília, chegaram ao sul de Itália e encontraram trabalho nos campos. Dez, doze horas por dia ao sol, por três ou quatro euros à hora. No último verão, houve quem morresse sob o sol da Apúlia enquanto procedia à recolha dos odiosos tomates que os italianos metem no esparguete, que asfixiem com eles.
Mas eis o problema, neste momento: ninguém parece interessado em ir apanhar pêssegos e tomates.
Por isso, as empresas agrícolas solicitaram a mobilização daqueles sessenta mil migrantes no mais breve espaço de tempo possível e a boa da Ministra da Agricultura propôs regularizar a sua situação, ou pelo menos dar-lhes autorização de residência por seis meses: para os fazer trabalhar como escravos, entenda-se, não para andarem por aí a dançar a tarantela!
Ontem, a questão foi levada ao parlamento e há, agora, no parlamento um partido de ignorantes nazistóides no qual votei há seis anos atrás (que Deus me perdoe), chamado Cinco Estrelas de bosta. Os Cinco Estrelas de bosta apanharam um valente susto com a ideia de ver umas centenas de negros regularizados, têm terror à amnistia. Que os escravos trabalhem e se mantenham calados, é a sua moral de moralistas de merda.
Podem estar descansados: o parlamento acabou por conceder a dita autorização, mas só por três meses. O suficiente, enfim, para trabalharem dez horas por dia, enquanto um deles cairá sob efeito do calor, atacado por uma dor intensa no peito, recebendo dois euros à hora, talvez três. Os Cinco Estrelas de bosta ficarão satisfeitos: esperam apenas para ver este país infame a afundar-se definitivamente na miséria. Uma questão de meses.

8 de Maio
Uma peça jornalística extremamente interessante, no Financial Times, com o título: Can we both tackle climate change and build a Covid-19 recovery? Levanta a questão: será possível lidar com os efeitos económicos do lockdown ao mesmo tempo que reduzimos o consumo de energia à base de combustíveis fósseis, para conter o aquecimento global?
Christina Figueres, do secretariado das Nações Unidas, começa por dar uma resposta afirmativa: «a questão não é se podemos fazer frente à pandemia e às alterações climáticas ao mesmo tempo, mas é se nos podemos permitir não o fazer». Com boa vontade, mas de um modo um tanto débil, Figueres fala em crescimento sustentável: «Não podemos sair das garras da pandemia para acabarmos nos braços da emergência climática… os programas de recuperação económica deverão ser capazes de conduzir a economia global para um crescimento sustentável e uma maior resiliência.»
O uso repetido da palavra “sustentável” denuncia um pouco a fragilidade da argumentação.
A recuperação económica é sustentável, o crescimento é sustentável, mas como se faz?
A resposta de Benjamin Zycher, que trabalha para o ultraconservador American Enterprise Institute, soa dolorosamente mais credível, mais concreta – não obstante o manifesto desinteresse pelo destino ao qual os seres humanos estão condenados.
«A energia não convencional não é competitiva, em termos de custos; senão, porque seriam necessárias taxas, subsídios e quotas de mercado para a tornar viável? A falta de fiabilidade do vento e do sol, o conteúdo de energia não concentrada nos fluxos aéreos e na luz solar, os limites teóricos da conversão do vento e do sol em energia eléctrica, são estas as razões para que quotas de mercado maiores para energias renováveis tenham provocado uma subida no preço da energia na Europa e nos EUA. Dar prioridade às políticas climáticas contribuirá para que a maioria das pessoas não seja capaz de melhorar a sua condição, sobretudo depois do terrível choque económico provocado pelos lockdowns. Além disso, se os países vêem a sua riqueza reduzida, dispõem de menos recursos para a protecção ambiental. A pergunta não é se os defensores de um maior crescimento económico odeiam o planeta. A pergunta é se os ambientalistas odeiam a humanidade, e o planeta também.»
Estou ciente, claro, que o American Enterprise Institute é uma associação de criminosos ultraconservadores que apoiou no passado, entre outras coisas, as guerras de George Bush e que vive do financiamento de instituições de beneficência como a Exxon Corporation, e por aí adiante.
E no entanto, as considerações deste delinquente continuam a ser mais convincentes do que o melhor que tem para nos oferecer Figueres, com toda a sua boa vontade. O problema – em última análise – é que as palavras “crescimento sustentável” formam um oxímoro, ao lado de outras tantas noções obscuras utilizadas por quem prega a economia verde para uma retoma mais doce do capitalismo.
Não existe mais nenhuma possibilidade de crescimento económico, mais nenhuma possibilidade de crescimento do produto global que não passe pela extracção, destruição e devastação ambiental. Ponto. Se crescimento significa acumulação de capital, competição, expansão do consumo, então o crescimento é incompatível com a sobrevivência a longo prazo do género humano.
O clube de Roma disse-o de forma clara, há quase cinquenta anos atrás, no famoso Relatório sobre os limites do crescimento: «Um planeta finito não pode suportar um crescimento económico infinito.» Simples e conciso.
O crescimento infinito não é uma condição necessária à sobrevivência da espécie. É necessária uma distribuição igualitária daquilo que a inteligência técnica e a actividade livre possam produzir. Assim como é necessária uma cultura da frugalidade, que não significa nem pobreza nem renúncia, mas um deslocamento do foco: da esfera da acumulação para a esfera do prazer.
O capitalismo está em constante mudança, mas não pode mudar na sua essência. Assenta sobre a exploração ilimitada do trabalho humano, do saber colectivo e dos recursos físicos do planeta. Cumpriu a sua função durante os últimos quinhentos anos: tornou possível o enorme progresso da modernidade, assim como os horrores do colonialismo e da desigualdade.
Agora acabou. Só pode continuar a existir se acelerar a extinção da espécie, ou pelo menos (na melhor das hipóteses) a extinção daquilo a que chamámos civilização humana.
Um estudo intitulado Parentalidade em tempos de Covid-19 informa-nos do facto de não se antecipar um baby boom por efeito do lockdown – suspiro de alívio.
A ausência de perspectivas económicas num futuro próximo, e talvez ainda um certo desconforto causado pelo distanciamento, aconselham os casais a esperar. «Cerca de 37% daqueles que programavam um filho antes da pandemia terão, para já, desistido»: há males que vêm por bem. Segundo os demógrafos, os seres humanos sobre o planeta deverão ser, no final do século, entre nove e onze biliões. Com semelhantes números, não é difícil de prever a vitória na partida de xadrez para o jogador com a foice. O estudo sugere que o vírus nos fez cair em nós, por pouco que seja.

9 de Maio
O sol entra no apartamento pela janela entreaberta e eu penso na imensa praia de San Augustinillo. Não se podia propriamente nadar naquele mar, de tão perigoso. Havia mesmo, por perto, uma praia a que chamavam playa del muerto: aqueles que aí mergulhavam tinham por hábito não regressar para contar. O Oceano Pacífico não é para brincadeiras. Alugámos uma cabana em Punta Placer e à noite íamos comer ao Nerone – de regresso, caminhávamos ao longo da praia e eu repetia, na escuridão: Lupita, Lupita, amor da minha vida.
Talvez tenha terminado, por agora. Ou talvez não.  



Notas de rodapé
1.          Trata-se, naturalmente, de Endgame – na tradução, do próprio Beckett, para inglês. Escrita originalmente em francês, com o título Fin de Partie, estreou em 3 de Abril de 1957 no Royal Court Theatre, em Londres. [Nota do tradutor]
2.        Os antigos cartógrafos, romanos e medievais, usavam a expressão HIC SVNT LEONES para assinalar nos mapas as regiões desconhecidas e inexploradas – a terra incognita. [Nota do tradutor]

Franco “Bifo” Berardi
Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de destaque do operaísmo italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação com os media e a produção cultural. Fundou a Rádio Alice, primeira rádio livre em Itália (1976-1978), e a revista A/traverso (1976-1981), que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária. Exilado em Paris, trabalhou com Felix Guatari em esquizoanálise. Desde os anos 1990 que o seu trabalho tem incidido sobre a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e capitalismo.

Nota da edição
O Diário da psico-deflacção resulta de uma parceria Punkto/Teatro do Bairro Alto, com tradução de Nuno Leão. Franco “Bifo” Berardi esteve em Lisboa em Outubro passado para a abertura deste teatro. A sua conferência está disponível em podcast no site do TBA, assim como um glossário experimental gravado aquando da sua passagem pela cidade. A primeira, segunda, terceira , quarta e quinta parte do Diário estão disponíveis na íntegra no site do Punkto.

Ficha Técnica
Data de publicação: 01.07.2020
Edição #28 • Verão 2020 •
Caderno #8 • Epidemos