18 de Abril
«Quem
teria podido prever um apocalipse assim tão aborrecido?», pergunta-me o meu
amigo Andrea – que está habituado a uma vida de excitação e aventura e agora se
vê reduzido a passar o seu tempo num velho sofá miserável sobre o Aventino,
enquanto à sua volta a primavera Romana rebenta e ele sem a poder ver, ouvir ou
cheirar.
Boa
pergunta, excelente ponto de vista. Aborrecidos, finalmente!
Mas podemos
experimentar colocar a questão de outra forma, para ajudar a dissipar o
nevoeiro de tédio que nos envolve e nos turva a visão. Podemos tentar pensar o
apocalipse como um acontecimento a desenrolar-se em câmara lenta, no qual somos
capazes de discriminar, e até de antecipar a derrocada iminente ou o próximo colapso
de terras mas no qual, ao mesmo tempo, pouco ou nada podemos intervir.
A lição
a reter, perante o suceder de acontecimentos macro – como as alterações climáticas – e micro – como a propagação de vírus – a lição que devemos procurar
assimilar e elaborar, está na flagrante revelação da impotência da nossa
vontade consciente.
Se a
vontade não é capaz de governar os processos que comandam a vida, que outra
faculdade o poderá fazer?
Para
desanuviar, li um artigo de Francesco Sisci, um sinólogo Italiano bastante
inteligente que é membro da Academia de Ciências de Beijing, o que significa
que sabe o que está a dizer quando fala de assuntos relacionados com a China.
Sisci
parte da notícia de que os Americanos pretendem exigir uma compensação à China em
milhões de triliões de triliões de dólares. Segundo eles, a China é a única culpada
por todo este pandemónio: o vírus escapou-se do maldito laboratório que têm em
Wuhan, ocultaram e continuam a ocultar informação… Depois, passaram-nos o vírus
a nós, Americanos, o vírus Chinês deles
– como diz Trump e repete Mike Pompeo. A nossa economia encontra-se de rastos e
eles têm de as pagar – dizem, furiosos, aqueles que prometeram make America
great again.
A
culpa é da China. Vamos processá-los! Cancele-se a dívida Americana para com a
banca Chinesa.
Como
sempre, os Americanos estão a brincar com o fogo.
Imaginam
talvez que se a China se chateia, deverão enfrentar umas centenas de Boxers [1]
armados
de espada, escudo e lança que surgem da esquina mais próxima, preparados para
uma sessão de luta corpo-a-corpo.
Nein. Seria bom não esquecer a parada
militar chinesa do primeiro de Outubro do ano passado, com a sua exibição de
belas cabeças luzidias e aquelas ogivas arredondadas. Para lá do coronavírus,
estas ogivas multiplicariam o balanço total das mortes por mais de cem vezes.
Sisci,
que sabe do que fala, alerta-nos contra a loucura belicista que a catástrofe social
despoletada pelo coronavírus poderia provocar.
A
proverbial ignorância do povo Americano manifesta-se, no entanto, à vista de
todos – em cidades do Michigan e da Virginia, onde grupos armados exigem que os
seus governadores recuem na imposição das medidas preventivas. Entre uma
cerveja e outra, estão sempre disponíveis para disparar umas balas contra os
Índios. O problema é que, neste caso, não se tratará de peles-vermelhas
montados a cavalo, mas de uma potência totalitária tecno-militar altamente disciplinada.
19 de Abril
Fui
escrevendo sem dificuldade, durante as últimas semanas, e mesmo com uma certa
(irresponsável) alegria: as palavras saíam-me e seguiam-se umas às outras, quase
sem oferecer resistência.
Agora,
alguma coisa mudou. Talvez porque uma amiga me acusou de usar a palavra
“irresponsável” com um sentido positivo, quando o momento exige a máxima
responsabilidade.
A
verdade é que nunca gostei especialmente da palavra “responsabilidade”. Mas
começo a sentir um ligeiro embaraço de cada vez que me lanço nos meus voos, enquanto
o cenário à minha volta se torna todos os dias mais dramático.
20 de Abril
Passei
os últimos dias a reler William Burroughs e Philip K. Dick.
Costumava
lê-los nos anos Oitenta. Em 1982, tive a oportunidade de conhecer Burroughs, em
pessoa: fui ao encontro dele no seu bunker
sob a Bowery, para o entrevistar. Quase não consegui compreender uma palavra do
que ele me dizia, com o seu forte sotaque Texano, e o resultado foi uma
entrevista errática e incoerente publicada na revista Frigidaire.
Li Exterminator, Ah Pook is
Here, The Job, The Electronic Revolution e alguns dos
seus vertiginosos romances, que hoje podem ser relidos como premonições.
Com
penetrante e alucinada lucidez, Burroughs dizia que a linguagem humana não é
outra coisa senão um vírus que se estabilizou no organismo, obrigando-o a
mutações várias, colonizando-o progressivamente, transformando-o: «A própria
palavra pode ser um vírus que alcançou um status
permanente junto do hospedeiro» (A
revolução electrónica). Por isso, «o homem
moderno perdeu a opção do silêncio. Experimente-se suspender o discurso
sub-vocal, atingir dez segundos que seja de silêncio interior. Deparamos com um
organismo que nos resiste, forçando-nos a falar. Esse organismo é a palavra. No
princípio era a palavra…»
Mas
se a linguagem é um vírus que se impõe ao organismo, fazendo predominar a abstracção
sobre o concreto e o útil e levando-o, desta forma, a produzir as condições
históricas da sua auto-destruição – não teremos o direito de supor que será
precisamente um vírus a restabelecer a conexão entre a linguagem e o concreto,
a sensualidade, o sofrimento?
Mas onde
situar, propriamente, a acção do vírus? Eu diria que o vírus age sobre o plano
estético: é ao nível da percepção e da sensibilidade que podemos esperar
recompor uma linguagem do concreto.
21 de Abril
Desde
que começou o confinamento que nunca mais parei de pintar. Na realidade, não
lhe posso chamar pintura: faço colagens com fragmentos de imagens, fotocópias e
artigos de jornal que depois sobreponho com tintas de esmalte, verniz para as
unhas, gravuras obtidas por meio de calor, redes…
O
apartamento está cheio destas telas, 35x50 ou 70x50, empilhadas sobre a bancada,
apoiadas sobre as prateleiras da biblioteca, amontoando-se pelo chão.
Alguns
motivos são recorrentes, como obsessões: uma pomba branca atacada por um corvo
negro, por exemplo, é um tema que se tende a repetir. E que evoca uma cena da
qual não é possível não nos recordarmos.
Pinto
pombas e corvos que se combatem mutuamente perante o olhar estarrecido de
Bergoglio, o qual terá certamente procurado interpretar o sinal que assim lhe
chegava das Alturas celestes.
Foi
no dia 26 de Janeiro de 2014, Francisco ascendera recentemente ao trono de
Pedro, depois de um outro papa se ter curvado perante as potências
ingovernáveis do caos interior. Anos antes, em Habemus Papam, o génio de Moretti relatava já o drama da depressão
humana face ao prevalecer do caos.
O
papa aparece a uma janela de São Pedro, acompanhado por duas crianças. Afaga as
cabeças das crianças, enquanto estas libertam duas pombas brancas pelo ar. Um
corvo negro, vindo da esquerda, lança-se em perseguição da pobre pomba, que
procura fugir-lhe até que ele a apanha, arrasta-a, devora-a.
A simbologia
não podia ser mais clara e mais escandalosa: o mal surge repentinamente dos
abismos do caos, colorindo de sangue inocente os céus de Roma.
Preciso
de continuar? É melhor não. Não quero interpretar os signos como se fossem a
manifestação de uma vontade oculta, que se escondesse por detrás deles. O meu
ateísmo não mo permite. Mas por vezes não é fácil resistir à ideia de uma
emanação omnipoética e maligna, oferecendo signos enigmáticos mas sugestivos a
uma plateia atónita de espectadores humanos.
De Francisco,
ainda, chega-nos a valiosa lição política de um homem que trava a batalha de
Cristo não em nome da verdade, mas em nome da caridade, da partilha – ao mesmo
tempo, feliz e dolorosa – da experiência humana. Mas das suas palavras e actos,
retiramos também uma importante lição filosófica: as potências do mal são
emanações do caos, cujo efeito se faz sentir de cada vez que o caos ultrapassa
a nossa própria potência de sentido, afecto e razão. Não é a vontade de Deus
que se manifesta no mal. Na sua nocturna homilia de Março, Francisco disse-o papale papale (expressão Italiana para
“dizer sem rodeios”): Deus não castiga as suas crianças, o vírus não é uma punição
divina.
E
então? Então, o vírus é a complexidade do caos no momento em que esta supera a
nossa capacidade de compreensão, governo e cuidado.
Mas
a história da cultura é precisamente a história desta caosmose, desta relação
entre o caos da experiência e a ordem provisória da consciência.
Uma
foto no jornal: estamos na América, há uma fila de carros que buzinam e
ostentam bandeiras com estrelas e faixas. Cidadãos armados manifestam-se contra
o lockdown, pedindo que lhes seja
restituída a liberdade. Uma mulher retira para fora do carro um cartaz onde
escreveu, e onde podemos ler: FREE LAND.
Liberdade.
Do
que estarão a falar? São cidadãos brancos de uma nação que inscreveu a palavra
“liberdade” nos seus documentos fundadores mas que, desde o início, se esqueceu
de mencionar a escravidão de milhões de pessoas, apenas para melhor exaltar e
promover a sua liberdade.
Enquanto
Jefferson e companhia passavam a escrito a sua famosa Declaração de
Independência, 600.000 Africanos trabalhavam por nenhum salário nos treze
estados da Confederação, em condições de total ausência de liberdade. Alguém levantou
a questão, durante a redacção do texto sagrado. Na primeira versão, foi
efectivamente incluída uma frase que condenava a Inglaterra por ter instituído
o regime da escravatura nas suas colónias. Depois, decidiu-se apagar essa frase
– porque mencionar a escravatura significava revelar a hipocrisia e a absoluta
falsidade de todo o execrável texto sagrado sobre o qual assenta, inteira, a
civilização Americana.
Liberdade
de quem e para fazer o quê, exactamente?
A
retórica da liberdade desaba sob os golpes do indeterminismo viral. É esta, talvez,
a fraqueza essencial das posições – de resto, inatacáveis – de Agamben, que parece
restabelecer uma metafísica da liberdade que tem bem pouco de materialista.
Enquanto
isso, a procura por petróleo decresce ao ponto do seu valor nos mercados
globais atingir primeiro o zero e, depois, valores negativos: neste momento, se
comprares alguns barris, pagam-te pelo incómodo. Navios carregados de petróleo estão
estacionados nos oceanos, porque os depósitos Árabes, Texanos, Iranianos estão
cheios. A indústria Americana do gás de xisto, cuja extracção obriga à
destruição do subsolo pelo uso de martelos pneumáticos subterrâneos, encontra-se
arruinada. Esperemos que assim permaneça, e para todo o sempre. Existe ainda um
tubo que atravessa o continente, do Canadá à fronteira Mexicana – o Keystone Oil Pipeline. Quiseram a todo o custo
construi-lo, recorrendo ao uso da violência contra as comunidades
Nativo-Americanas que defendiam o seu território: por esta altura, até este tubo
deve estar a transbordar do líquido negro e gorduroso.
O
que faremos com toda esta matéria oleosa?
Uma pergunta
incómoda: se retomarmos a normalidade, aquela que era normal antes do vírus, o
que faremos com todo este petróleo barato? Se continuarem a vigorar as leis do
mercado, o máximo lucro e a competitividade, que restará da esperança
ecológica? Com petróleo a baixíssimo preço, depressa se tornará improvável a
conversão a tecnologias menos poluentes. Que restará das boas intenções
relativas às alterações climáticas?
22 de Abril
O Guardian debruça-se sobre um assunto que
a imprensa tem descuidado, nestes últimos tempos: a vida sexual. O que foi
feito do sexo durante estas semanas de confinamento, e em que sentido não
poderão deixar de mudar os comportamentos sexuais, sobretudo os das gerações
mais jovens, como a chamada geração Z (de Zoom)?
Entrevistada
pelo jornal, a doutora Julia Marcus diz o seguinte: «A recomendação, neste
momento, é para ficarmos em casa o máximo que pudermos e reduzirmos a nossa
interacção com outras pessoas ao estritamente essencial, como comprar comida. E
mesmo nessas alturas, devemos manter uma distância física de pelo menos um
metro em relação aos outros. O que torna o sexo, no mínimo, improvável.»
Mas
o doutor Carlos Rodríguez-Díaz vem imediatamente em socorro daqueles que se começavam
a sentir preocupados: «As relações sexuais podem-se tornar difíceis nas
próximas semanas, mas outras formas de expressar o erotismo, como o sexting, vídeo-chamadas, leituras eróticas
e masturbação continuarão a ser opções.»
Wow.
O cenário que nos apresentam é o de uma vida ascética com a opção de bater uma
em vídeo-conferência. Peço desculpa pela vulgaridade, não era minha intenção.
Ciara
Gaffney escreve um artigo interessante sobre a ciber-revolução sexual. «É quase
com um pouco de nostalgia que me recordo de que costumávamos falar da “recessão
sexual” da Geração Z: uma preocupação paternalista sobre a nossa geração mais
jovem vir a tornar-se psicossexualmente atrofiada, incapaz ou pouco disposta a
ter relações sexuais devido a uma sobre-exposição a smartphones, redes sociais e pornografia. Em certa medida, as
estatísticas confirmavam-no; entre 1991 e 2017, o número de estudantes do liceu
com uma vida sexual activa caiu de 54% para 40%. Mas mesmo a tempo, chegou uma
pandemia global e um novo e promissor renascimento sexual emergiu com ela.»
A
tese bizarra do artigo de Ciara Gaffney é que a pandemia está a criar as
condições para uma nova revolução sexual, que aposta essencialmente no
desenvolvimento de uma sensibilidade sem contacto: «No mundo cor-de-rosa em que
vivíamos, antes do coronavírus, o envio de imagens de nus era objecto de uma
certa vergonha. Tais imagens eram percebidas como desastradas, até um pouco
patéticas. Na era do lockdown, no
entanto, as thirst traps e os nus não
apenas fazem um glorioso e despudorado regresso como constituem uma forma
renovada e corajosa de agência, no contexto da emergente libertação sexual da
Geração Z […]. Estratificada pela distância, a Geração Z parece assumir a
tarefa de reinventar o que chamamos e não chamamos sexo, num mundo em que o
sexo físico se torna frequentemente uma impossibilidade. Como, antes, o amor
livre abalava as convenções do seu tempo, o renascimento sexual da Geração Z está
o fazer o mesmo com a relação sexual orgânica.»
Vêm-me
à mente os discursos sobre o cibersexo que circulavam entre os anos 80 e os
anos 90. Não é inverosímil que um campo de desenvolvimento da tecnologia electrónica
durante os próximos tempos venha, precisamente, a ser o casamento entre
realidade virtual e sensores tele-estimuláveis. Já aconteceu antes, no Neuromancer de William Gibson, de 1984.
«A
quarentena não apenas encoraja, mas obriga a uma exploração mais audaciosa da
vida sexual; a experimentar com nus, thirst
traps, camming e sexting, sobretudo sem repercussões na
vida real (IRL)».
Thirst trap significa: uma
armadilha que tem como efeito provocar a sede, certo. Mas e se depois falta a
água?
A
teletransmissão de estímulos sensuais através do mundo virtual cumpriria, sem
dúvida, uma função importante do ponto de vista demográfico: controlaria
finalmente a procriação, pelo menos por uns duzentos ou trezentos anos. Mas não
acredito na existência plausível de um universo de prazer sem o contacto da
epiderme com a epiderme, sem o piscar de olho irónico no momento em que a
distância se encurta, sem o sentido do olfacto. Serei, talvez, antiquado.
Entretanto,
no New York Times, Julie Halpert escreve sobre a recente vaga de ataques de
pânico entre os jovens Americanos, fechados em casa e expostos a fluxos
ininterruptos de informação.
24 de Abril
Leio
um texto de Rolando publicado no Facebook e fico com a impressão de que é
também a mim que ele se dirige.
Mais
do que da imaginação, diz Rolando, precisamos de programas concretos para fazer
frente aos próximos anos, que serão devastadores e decisivos. Rolando não tem
ainda trinta anos, por isso pensa no futuro imediato de uma maneira concreta e
com a intensidade que talvez falte aos meus setenta anos. Tendo a dar-lhe razão.
«Faço
um apelo, do fundo do coração, a todas as forças progressivas para que aprendam,
de uma vez por todas, a lição de Maquiavel: “[…] Mas dada a minha intenção de
escrever coisas que possam ser úteis a quem as escuta, parece-me que o mais
apropriado será perseguir a verdade efectiva da matéria [verità effettuale de la cosa] do que a imaginação da mesma; pois
muitos imaginaram repúblicas e principados que, na realidade, nunca chegaram a
ser conhecidos ou vistos…” Basta, peço-vos, não precisamos de mais repúblicas
futuras da imaginação. Quem quiser praticar a caridade com os gestos e as
promessas do reino anunciado, que fique em paz e siga Francisco. Todos os
outros, por favor, vão direitos à realidade efectiva [realtà effettuale] e, por uma vez, parem de contar fábulas a vocês
próprios e aos que vos rodeiam. Os próximos anos serão devastadores e decisivos»,
escreve Rolando com energia. E quem sou eu para duvidar das palavras de Maquiavel?
E no entanto, quando penso no alastrar das crises de pânico entre a juventude
Americana, dou por mim a questionar a realidade dessa “realidade efectiva” de
que falam Maquiavel e o meu amigo Rolando.
O
limiar das cinquenta mil mortes foi, hoje, ultrapassado nos EUA. São números
oficiais. O número de mortes da guerra do Vietnam foi, assim, excedido. Os
desempregados são agora mais de vinte-seis milhões. O presidente aparece todos
os dias na televisão: hoje mesmo, aconselhou a injectar desinfectante e a tomar
banhos de sol, porque o vírus desparece com o calor. Todos os dias o seu show se torna mais hilariante. Há uns
dias atrás, deixou esta mensagem no Twitter: «LIBERATE MICHIGAN! LIBERATE
MINNESOTA! and LIBERATE VIRGINIA, and save your
great 2nd Amendment».
De
cada vez que Trump menciona a segunda emenda, é de uma ameaça explícita de
guerra civil que se trata.
O
escândalo dos democratas atinge vertigens que roçam o cómico. Mas o cenário que
se vai delineando não é assim tão cómico quanto isso: de um lado, o país da
segunda emenda, o país trumpista que reivindica o direito ao porte de armas e o
exibe para que todos possam ver. Do outro lado, o poder dos Estados das costas,
os estados mais ricos, produtivos e globalizados: a Califórnia e o Oregon, na
Costa Oeste, e Nova Iorque, na Costa Leste. As zonas metropolitanas contra as
áreas rurais, o cosmopolitismo contra o nacionalismo branco. Os democratas
decidiram apostar as suas fichas num senhor chamado Biden que, aparentemente,
não goza de grande popularidade na Internet.
25 de Abril
Soubemos,
ontem, que o La Repubblica acaba de substituir
o director porque a família Agnelli – os proprietários do jornal – resolveu
escolher alguém mais alinhado para o cargo. O director demissionário chama-se
Carlo Verdelli: não o conheço, não tenho muito a dizer sobre ele, mas causa-me
alguma estranheza que o tenham despedido quando, há poucos dias, recebia
ameaças de morte ao estilo mafioso ou fascista. O que terá feito de errado o
pobre Verdelli, para ser posto a andar pelo patrão, John Elkann, enquanto os
leitores do La Repubblica recolhem
assinaturas em sua defesa?
Não posso
precisar o que se passou, mas vem-me à memória que foi publicado há não muito tempo,
neste jornal, um artigo sobre o paraíso fiscal Holandês. Talvez Verdelli se
tenha esquecido de que a firma da família Agnelli, financiada durante décadas
pelos contribuintes Italianos, nos tempos em que se chamava FIAT – hoje que se chama
FCA, tem a sua sede legal na Holanda, onde paga (isto é, não paga) os seus
impostos. É muito natural que os Agnelli o tenham levado a mal.
Em
Milão, um grupo de jovens que trazia flores para colocar sobre a lápide de um partigiano foi alvo de um ataque por forças
policiais: bateram-lhes, agrediram-nos com bastões, arrastaram-nos pelo chão. As
imagens mostram que os manifestantes eram completamente inofensivos, usavam as
máscaras e não tinham nenhuma intenção provocadora. Que necessidade, então, de carregar
sobre eles com tamanha raiva? Assistimos, talvez, à introdução de um novo
estilo de intervenção policial, integrado com tecnologias de controlo
inexoráveis? Neste momento, aparece legitimado pelo terror do contágio – mas
aqueles jovens não puseram, certamente, em perigo a saúde de ninguém.
Ao
mesmo tempo, milhões de trabalhadores “essenciais” para o lucro dos patrões da
indústria continuam todos os dias a ser expostos a condições de trabalho e de
existência que constituem um perigo muito maior que uma dezena de jovens numa
estrada dos subúrbios de Milão.
26 de Abril
Estou
cheio de dúvidas e não arrisco previsões, mas uma coisa me parece clara: que a
pandemia viral de 2020 assinala, ou revela uma passagem. Trata-se da passagem
do horizonte da expansão, que delimitava o olhar da humanidade moderna, ao
horizonte da extinção que, de uma maneira ou de outra, está destinado a
delimitar o olhar da humanidade futura.
27 de Abril
O
novo grito é, agora: «Reabram! Retomem a normalidade!»
Como
é evidente, ninguém gosta de viver encerrado num cubículo e é inteiramente
legítimo, e humano, este desejo de retomar as actividades que animam e
alimentam a vida social. Mas o retorno da normalidade significa o retorno
daquelas expectativas e daqueles automatismos que provocaram a fúria da terra e
expuseram o organismo vivo às tempestades virais.
Leio,
do Monólogo do vírus: «Fariam melhor, caros humanos, se acabassem
com os vossos ridículos apelos à guerra. Parem de me lançar esses olhares vingativos
e afastem a aura de terror na qual envolveram o meu (bom) nome. Nós, os vírus,
remontamos à origem bacteriana do mundo e formamos o verdadeiro continuum da vida na terra. Sem nós,
vocês nunca teriam chegado a ver a luz do dia, nem a primeira célula teria jamais
existido. Somos os vossos verdadeiros
ancestrais, título que partilhamos com as pedras e as algas, bem mais do que com
os macacos. Encontramo-nos por todo o lado, onde quer que estejam e também onde
não estejam. Temos pena, se não vêem no universo senão aquilo que é à vossa
imagem e semelhança! Mas sobretudo, não continuem a dizer que sou eu que vos
estou a matar. Não é da minha acção sobre os vossos tecidos que vocês morrem,
mas porque deixaram de cuidar dos vossos semelhantes. Se não tivessem sido tão
rapaces entre vocês como foram em relação a tudo o que vive sobre a superfície
do planeta, possuiriam ainda camas, enfermarias e ventiladores em número
suficiente para sobreviverem aos danos que inflijo nos vossos pulmões. […]
Deviam-me agradecer, aliás. Sem mim, por quanto tempo ainda não teriam
continuado a fazer passar por necessárias
todas essas coisas cuja suspensão foi imediatamente decretada? A globalização,
os concursos, o tráfego aéreo, as restrições orçamentais, as eleições, o
espectáculo das competições desportivas… Agradeçam-me, coloco-vos somente
perante a bifurcação que estruturava tacitamente as vossas existências: a economia ou a vida… Suspender a
economia é travar a progressão do desastre. Logo, a economia é o verdadeiro desastre em curso. Meses
atrás, era a tese: agora, é um facto. Para o remover e obliterar, quanta
polícia, vigilância, propaganda, logística e teletrabalho não virão ainda a tornar-se
necessários […]. Não o façam “pelos outros”, pela “população” ou pela
“sociedade” – cuidem dos vossos amigos e dos vossos amores. Repensem com eles,
soberanamente, uma forma justa de viver. Criem clusters (ou focos de transmissão) de vida boa, façam-nos expandir, e eu perderei o meu poder sobre as
vossas existências. Estou a apelar a um retorno massivo, não da disciplina, mas
da atenção. Não ao fim de toda a
leveza, mas de toda a negligência. De
que outra maneira poderia fazer-vos recordar que a eternidade está em cada gesto? Que tudo está no ínfimo?»
E de
um artigo de Bruno Latour, Imaginar
gestos-barreira contra o retorno à produção pré-crise: «A primeira lição do
coronavírus é ainda a mais surpreendente. Ficou, de facto, provado que é
possível suspender numa questão de semanas, e em todo o mundo simultaneamente, um
sistema económico que, até aqui, diziam ser impossível desacelerar ou
redireccionar. Face aos argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a
necessidade de alterarmos o nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento do
ímpeto irresistível da “locomotiva do progresso”, que nada era capaz de fazer
sair dos seus trilhos, “em virtude”, dizia-se, “da globalização”. E no entanto,
é justamente o seu carácter globalizado que torna tão frágil este famoso desenvolvimento,
susceptível – bem pelo contrário – de desacelerar e até de parar bruscamente.»
Mas
seria ingénuo esperar que esta nova consciência, alucinada mas lúcida, possa tornar-se
senso comum de hoje para amanhã, ou durante os próximos meses. A ânsia de
retornar à normalidade é por enquanto a força que tudo dirige, talvez mesmo
mais do que o – sempre presente – medo de um retorno do contágio.
Assim,
retomaremos a normalidade, e mesmo uma que será ainda pior do que aquela que
conhecemos no passado. Porque à exploração, à precariedade, à humilhação
quotidiana a que a economia nos submete, junta-se agora o distanciamento, a
tensão permanente da relação com o outro.
O
problema é que este regresso à normalidade depressa sairá frustrado e se
revelará uma ilusão. Não necessariamente devido ao retorno do vírus – como toda
a gente, espero e prevejo que seremos capazes de manter o corona sob controle,
ou que se encontre uma vacina, ou o que seja…
A
questão não é essa. A questão, em última análise, é que a máquina produtora de
automatismos entrou numa condição caótica sem retorno. O colapso do sistema
económico global torna-se inevitável: centenas de milhões de postos de trabalho
perdidos, o preço do petróleo a descer a valores negativos, a falência de incontáveis
negócios e empresas…
Para
além do rebentar da vingança política da direita, que foi encurralada a um
canto mas não desiste. E da competição entre interesses nacionais, e do perigo
amarelo que obceca o Ocidente. E do aperfeiçoamento de técnicas de controlo
tecnototalitário, implementadas pela China com requintes de elevada sofisticação
e que serão, agora, difundidas como o exemplo a seguir.
A
materialidade concretíssima do vírus,
desta concreção proliferante mutagénica, modificou qualquer coisa de profundo no
organismo humano: mas foi, sobretudo, capaz de fazer parar a máquina abstracta.
Reactivá-la, por sua vez, constitui uma empresa impossível. E é aqui que poderemos
tirar proveito da lição que aprendemos. Por exemplo, vimos que o sistema
militar não só não nos protege da extinção como ainda a acelera. O sistema
militar terá, pois, que ser desmontado e reconvertido. E como sobreviverão os
milhões de pessoas que trabalham nas fábricas que produzem armamento? O que
observámos é que não precisamos de fazer depender a obtenção de um rendimento
da obrigação de trabalhar. O rendimento de existência (ou Rendimento Básico
Incondicional) foi uma realidade e deve continuar a sê-lo. Mas os milhões de
pessoas que hoje são obrigadas a produzir armamento e a extrair petróleo não
ficarão necessariamente inactivas. Não faltarão coisas para fazer, enquanto substituímos
os sistemas de armazenamento, transporte e distribuição de energia que
destruíram as condições de vida no planeta e descobrimos novas maneiras de nos
deslocarmos, de nos aquecermos ou de iluminarmos a noite.
Aprendemos
a distinguir a produção do útil da produção da abstracção monetária. Aprendemos
que a riqueza não consiste na acumulação de valor, mas no prazer que obtemos do
fluir do tempo e das coisas que podemos produzir sem nos fazermos explorar.
No
decurso da tempestade que vem, estas lições voltarão, impossíveis de iludir.
•
Notas
de rodapé
1. Trata-se da chamada Rebelião Boxer, no final do século
XIX, que terminou esmagada pela intervenção de uma coligação militar alargada,
formada pelas várias potências do Ocidente. O movimento dos Boxers, ou Punhos
da Harmonia e da Justiça, reunia sobretudo camponeses, praticantes de artes
marciais e seguidores de tradições xamânicas que os tornariam invulneráveis,
diz-se, a lanças, armas de fogo e balas de canhão. [Nota do tradutor]
Franco
“Bifo” Berardi
Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de
destaque do operaísmo italiano, em particular na sua ala mais criativa e
dedicada à experimentação com os media e a produção cultural. Fundou a Rádio Alice, primeira rádio livre em
Itália (1976-1978), e a revista A/traverso
(1976-1981), que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária.
Exilado em Paris, trabalhou com Felix Guatari em esquizoanálise. Desde os anos
1990 que o seu trabalho tem incidido sobre a relação entre psicopatologia,
tecnologias da informação e capitalismo.
Nota
da edição
O Diário da
psico-deflacção resulta de uma parceria Punkto/Teatro do Bairro Alto, com
tradução de Nuno Leão. Franco “Bifo” Berardi esteve em Lisboa em Outubro
passado para a abertura deste teatro. A sua conferência
está disponível em podcast no site do TBA, assim como um glossário
experimental gravado aquando da sua
passagem pela cidade. A primeira, segunda, terceira e quarta parte do Diário estão
disponíveis na íntegra no site do Punkto.
Ficha Técnica
Data de publicação: 19.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos