O livro da Selva e do Jardim • Pedro Levi Bismarck

 




A Europa é um jardim. Nós construímos um jardim. Tudo funciona (…). O resto do mundo é uma selva e a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros devem cuidar dele, mas eles não poderão proteger o jardim construindo muros. Um pequeno e simpático jardim rodeado de grandes muros para prevenir que a selva entre não é uma solução. Porque a selva tem uma grande capacidade de crescimento e um muro nunca será grande o suficiente para proteger o jardim.

Josep Borrell

 

A metáfora em epigrafe — que motivou já uma petição acusando Josep Borrell de racismo e colonialismo — tem pelo menos a virtude de ser honesta. É assim que a Europa constrói a imagem de si (o «jardim»); é assim que a Europa constrói a imagem do resto do mundo (a «selva»).

Mas foi essa «selva» que a Europa, ao longo dos últimos séculos, não se coibiu de colonizar, explorar e destruir, para financiar a construção do seu pacato e mimado «jardim» onde «tudo funciona», como diz Borrell. Mas a «selva» só existe aí onde um outro «jardim» foi destruído. E foi isso que a Europa fez ao longo de séculos de pilhagem e roubo, colonização e globalização.

Não foi o Jardim, mas a Selva aquilo que os europeus construíram. Jardim e Selva olham-se mutuamente e aterrorizados; reflectem-se, ainda que de forma invertida. O Jardim onde se cultivam os mais altos ideais da Razão Ocidental    Liberdade, Razão, Progresso   foi construído sobre o sangue, a exploração e a miséria da Selva. Enquanto que a Selva, onde foi (e é) cultivada a exploração, o extrativismo e a miséria, foi construída pelos valores da Liberdade, da Razão e do Progresso do Jardim. Borrell diz que a Europa é um Jardim e o resto do mundo é uma Selva. Mas a Selva é uma construção dos europeus. Pelo contrário, o Jardim é uma construção de todos aqueles povos que foram explorados e dizimados pelos europeus.

Mas o Jardim não é apenas a imagem de um modo de se instalar no mundo, mas é a imagem de um modo de pensar, de uma dialéctica infernal, que funda a Metafísica Ocidental Moderna e que converte a exploração em progresso, a destruição em civilização, o sangue em flores.

O Jardim é a forma plena do Idealismo ocidental burguês na convicção que nada mais faz e nada mais pode fazer do que um mundo melhor. A Selva é a materialidade histórica deste idealismo: o vasto campo de despojos, ruínas e corpos, que ficaram da construção ininterrupta desse mundo melhor.

Jardim e Selva: as duas figuras de um pensamento ocidental. As duas figuras de uma catástrofe.

Na história como na economia do Capital: Jardim e Selva pressupõem-se. O Jardim precisa da Selva, tal como as empresas europeias precisam do gás liquefeito que vem de África ou da Ásia. A condição da Selva é, portanto, não deixar-de-ser-Selva ou, antes, ser-sempre-Selva-para-o-Jardim.

O Jardim precisa de crescer com os seus altos valores e ideais  — falamos agora obviamente do PIB   mas para isso precisa de carvão, petróleo e gás, a preços baixos, porque essa é a forma que tem de se tornar civilização e de promover os seus valores por esse resto do mundo que, simultaneamente, não cessa de destruir e pilhar.

Com os EUA inventou-se uma outra forma de gerir a Selva. Não se falava de colonização: agora era apenas business as usual. Para isso enviaram-se armas, mobilizaram-se guerrilhas e conflitos internos, instalaram-se e depuseram-se governos, capazes de segurar esses «interesses no estrangeiro», como se diz eufemisticamente. Com a entrada da China no Grande Mercado Global, com o domínio militar geoestratégico do Ocidente posto em causa (depois das guerras na Síria e no Iraque, a saída do Afeganistão e agora com a Guerra na Ucrânia): o tabuleiro da globalização treme. Mas é apenas uma outra forma de procurar e encontrar a Selva, de a gerir e a manter no seu-estado-Selva.

Mas, de certa maneira, podemos reescrever tudo o que dissemos até agora e dizer: o Jardim foi um paradigma político-filosófico, ou ainda, foi o grande paradigma político da civilização europeia. Não é por acaso que o Jardim (e a ideia de jardim) — tanto o francês como o inglês   e a colonização encontrem a mesma fortuna a partir do século XVI: ele nasce (na sua forma moderna), inclusivamente, na medida em que se importaram espécies raras e exóticas da Selva, para aí serem recolhidas e exibidas, como um mundo em miniatura. Ora, precisamente, o sonho europeu: O Mundo como Jardim. A domesticação da natureza (selvagem); a domesticação do homem (selvagem). A prosperidade infinita. A Idade de Ouro.

Mas quem sonhava o sonho europeu da Razão (Universal) era o Capital (Planetário). E o seu sonho sempre foi: O Mundo como Selva.

E é essa a secreta angústia do Jardim. Ele sabe que o seu destino não pode ser outro senão o devir-selva.

Bem vindos ao Livro da Selva e do Jardim.

 

 

 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Athanasius Kircher, Topographia Paradisi Terrestris juxta mentem et conjecturas authoris, 1675.

 

Ficha Técnica

O livro da Selva e do Jardim • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação: 20.10. 2022

Edição #36 • Outono 2022 •