A Europa é um jardim. Nós construímos um
jardim. Tudo funciona (…). O resto do mundo é uma selva e a selva pode invadir
o jardim. Os jardineiros devem cuidar dele, mas eles não poderão proteger o
jardim construindo muros. Um pequeno e simpático jardim rodeado de grandes
muros para prevenir que a selva entre não é uma solução. Porque a selva tem uma
grande capacidade de crescimento e um muro nunca será grande o suficiente para
proteger o jardim.
— Josep Borrell
A metáfora
em epigrafe — que motivou já uma petição acusando Josep Borrell de racismo e colonialismo
— tem pelo menos a virtude de ser honesta. É assim que a Europa constrói a
imagem de si (o «jardim»); é assim que a Europa constrói a imagem do resto
do mundo (a «selva»).
Mas
foi essa «selva» que a Europa, ao longo dos últimos séculos, não se coibiu de
colonizar, explorar e destruir, para financiar a construção do seu pacato e
mimado «jardim» onde «tudo funciona», como diz Borrell. Mas a «selva» só existe
aí onde um outro «jardim» foi destruído. E foi isso que a Europa fez ao longo
de séculos de pilhagem e roubo, colonização e globalização.
Não
foi o Jardim, mas a Selva aquilo que os europeus construíram. Jardim
e Selva olham-se mutuamente e aterrorizados; reflectem-se, ainda que
de forma invertida. O Jardim onde se cultivam os mais altos ideais da Razão
Ocidental — Liberdade, Razão, Progresso — foi
construído sobre o sangue, a exploração e a miséria da Selva. Enquanto
que a Selva, onde foi (e é) cultivada a exploração, o extrativismo e a
miséria, foi construída pelos valores da Liberdade, da Razão e do Progresso do Jardim.
Borrell diz que a Europa é um Jardim e o resto do mundo é uma Selva.
Mas a Selva é uma construção dos europeus. Pelo contrário, o Jardim é
uma construção de todos aqueles povos que foram explorados e dizimados pelos europeus.
Mas
o Jardim não é apenas a imagem de um modo de se instalar no mundo, mas é
a imagem de um modo de pensar, de uma dialéctica infernal, que funda a Metafísica
Ocidental Moderna e que converte a exploração em progresso, a destruição em
civilização, o sangue em flores.
O
Jardim é a forma plena do Idealismo ocidental burguês na convicção que nada
mais faz e nada mais pode fazer do que um mundo melhor. A Selva é
a materialidade histórica deste idealismo: o vasto campo de despojos, ruínas e
corpos, que ficaram da construção ininterrupta desse mundo melhor.
Jardim
e
Selva: as duas figuras de um pensamento ocidental. As duas figuras de uma
catástrofe.
Na
história como na economia do Capital: Jardim e Selva pressupõem-se. O Jardim
precisa da Selva, tal como as empresas europeias precisam do gás
liquefeito que vem de África ou da Ásia. A condição da Selva é,
portanto, não deixar-de-ser-Selva ou, antes, ser-sempre-Selva-para-o-Jardim.
O Jardim
precisa de crescer com os seus altos valores e ideais — falamos agora obviamente do PIB — mas para
isso precisa de carvão, petróleo e gás, a preços baixos, porque essa é a forma
que tem de se tornar civilização e de promover os seus valores por esse resto
do mundo que, simultaneamente, não cessa de destruir e pilhar.
Com
os EUA inventou-se uma outra forma de gerir a Selva. Não se falava de
colonização: agora era apenas business as usual. Para isso enviaram-se
armas, mobilizaram-se guerrilhas e conflitos internos, instalaram-se e
depuseram-se governos, capazes de segurar esses «interesses no estrangeiro»,
como se diz eufemisticamente. Com a entrada da China no Grande Mercado Global,
com o domínio militar geoestratégico do Ocidente posto em causa (depois das
guerras na Síria e no Iraque, a saída do Afeganistão e agora com a Guerra na
Ucrânia): o tabuleiro da globalização treme. Mas é apenas uma outra forma de
procurar e encontrar a Selva, de a gerir e a manter no seu-estado-Selva.
Mas,
de certa maneira, podemos reescrever tudo o que dissemos até agora e dizer: o
Jardim foi um paradigma político-filosófico, ou ainda, foi o grande
paradigma político da civilização europeia. Não é por acaso que o Jardim
(e a ideia de jardim) — tanto o francês como o inglês — e a
colonização encontrem a mesma fortuna a partir do século XVI: ele nasce (na sua
forma moderna), inclusivamente, na medida em que se importaram espécies raras e
exóticas da Selva, para aí serem recolhidas e exibidas, como um mundo em
miniatura. Ora, precisamente, o sonho europeu: O Mundo como Jardim. A domesticação
da natureza (selvagem); a domesticação do homem (selvagem). A prosperidade
infinita. A Idade de Ouro.
Mas quem
sonhava o sonho europeu da Razão (Universal) era o Capital (Planetário). E o
seu sonho sempre foi: O Mundo como Selva.
E é
essa a secreta angústia do Jardim. Ele sabe que o seu destino não pode
ser outro senão o devir-selva.
Bem
vindos ao Livro da Selva e do Jardim.
•
Pedro Levi Bismarck
Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Athanasius Kircher, Topographia
Paradisi Terrestris juxta mentem et conjecturas authoris, 1675.
Ficha Técnica
O livro da Selva e do Jardim • Pedro Levi Bismarck
Data de publicação: 20.10. 2022
Edição #36 • Outono 2022 •