O Evento Paulo • Carlos Vidal





Sem hesitar: Alain Badiou, também dramaturgo e romancista, é o mais necessário e inoportuno filósofo em actividade (desde há largas décadas). Falar deste «não-ex-maoista» (a melhor forma de o definir, de definir o pensamento badiano; e se é «badiano», como veremos, não é marxista nem maoista, embora ele os veja como «acontecimentos» decisivos), falar deste autor a partir da sua mais profunda e única incursão teológica, é um acto obrigatório (como Badiou é obrigatório). Ora, que outro autor ateu-pauliano reúne tão sabiamente estes quatro «M» – Mallarmé, Matemática, Mao Tse-Tung e Matrix (e, já agora, não esqueçamos Fernando Pessoa)?
Slavoj Žižek, noutros tempos (bem melhores para o seu trabalho), recorrendo a um conceito central de Badiou dirá que a sua obra é «o» acontecimento da filosofia contemporânea: «Atacando como um trovão o pântano pós-moderno, Badiou proporciona um regresso a uma filosofia plena. O seu trabalho atinge todos os intelectuais radicais politicamente correctos, minando os alicerces do seu modo de vida». Concretamente, minando lugares-comuns como as actuais ingerências humanitárias em nome da democracia e a própria democracia. Leia-se um excerto esclarecedor de Circonstances 1: «se existe uma potência imperial única e permanentemente convencida de que os seus interesses mais brutais coincidem com o Bem; se é verdade que os Estados Unidos despendem todos os anos, em orçamento militar, mais do que a Rússia, China, França, Inglaterra e Alemanha juntas; se esse Estado dedicado à desmesura militar não tem outro ídolo que não a riqueza, não tem outros aliados que não sejam seus servos, e não vê nos outros povos senão mercados, indiferente e cinicamente; então a liberdade elementar dos Estados, dos povos e dos indivíduos, é a de tudo fazerem e de tudo pensarem para se subtraírem, sempre, às ordens, às intervenções e ingerências dessa potência militar» (p. 65).

O que é um acontecimento?
A obra de Badiou é a filosofia de um «futuro» ligado ao «passado»: segundo o próprio, a sua filosofia é clássica por natureza, retrabalhando a metafísica do Ser, do trans-Ser (o acontecimento, como veremos) e da Razão. Em «Dialectiques de la fable», sobre Matrix, a trilogia cinematográfica das Wachowski, Badiou faz uma eloquente defesa de Platão (analisando sob o signo do filósofo da República a força de Matrix). Que fazem as Wachowski? Propõem a libertação da simulação negando a indecisão e a dissolução real-virtual; por seu lado, também Badiou reclama uma prova do real perante a aparência: é preciso mostrar a aparência visível dentro da aparência, ou seja, confirmar que as sombras não são mais do que sombras. Através da aparência (vendo-a como não mais do que isto: decepção da visão) chega-se à realidade. Por isso, o conceito central de Badiou é a verdade contra a opinião ligada ontologicamente ao acontecimento. Contudo, verdade, acontecimento, ser, razão são aqui termos clássicos por natureza, têm uma definição/redefinição imperiosa nas mãos do autor, constituem um edifício totalmente refundado.
Comecemos pelo acontecimento. Dele se define não apenas o ser, mas uma distância radical: o acontecimento, ao mesmo tempo, pertence e não pertence ao ser. Comecemos pela sua não-pertença – como berço da verdade, ele é o indiscernível (outro conceito nuclear) que escapa ao conhecimento. Há, como se depreende do monumental L’Être et L’Événement (E.E.), uma distinção entre ser e acontecimento, ligando-se o ser à situação (isto é, a qualquer situação a que o conhecimento tem acesso), e o acontecimento à verdade que, imprevisivelmente, transforma a situação, aquilo que é, e escapa ao entendimento; o acontecimento tem origem na zona «branca» (no vazio de um site événemential) do ser. Na sua análise (por vezes, discussão) destes tópicos, diz-nos Slavoj Žižek que o acontecimento pertence ao não-ser (ou trans-ser), enquanto o trajecto do «múltiplo puro» (uma pré-situação, a origem) à situação, ao que é, estrutura o ser (The Ticklish Subject  [T.S.], pp. 127-170).
Tentarei de seguida tornar estes pressupostos exemplares. Qualquer um de nós pode confirmar esta síntese: há em todas as situações (um momento da história, um período de governação, um governo, uma cidade, um movimento artístico, etc) um potencial de inovação. O acontecimento é o momento de efectivação desse corte necessariamente efémero – inovação – na situação; surge quando determinadas formas dominantes de conhecimento deixam de ter qualquer valia. Do vazio gerado por essa perda (ganho, no fundo) surgem o acontecimento indecidível e incontrolado e a verdade.
Esta sequência pode ser esclarecida de outro modo. Proponho a seguinte explicação. No início do que denominei esfera do ser, há uma pré-situação, digamos, preenchida por um múltiplo puro: é o dado sem simbolização (o real?) que ainda não constitui uma unidade. A situação é-lhe imediatamente posterior: é o conjunto de «unidades» concebível ele próprio como uma alargada unidade (a «sociedade portuguesa», a «arte moderna», etc). Para tal agrupar e para se sustentar, uma situação tem de existir sempre em excesso. Nesse excesso a situação promove uma «armadura» inaceitavelmente forte (a «pertença» - repressiva e/ou corrupta, por um lado, inconsistente, por outro lado) para manter as suas unidades solidificadas numa unidade maior (a situação é uma unidade de várias unidades).
Num dos momentos essenciais de Qu’est-ce que la Philosophie?, Deleuze-Guattari definem a filosofia como uma criação de conceitos. Por isso, o sistema de Badiou intessar-lhes-á. No capítulo 6 desse livro, aparece esta interpretação: os corpos e os objectos (ou outras «unidades» de uma situação) estão do lado das funções, enquanto o acontecimento é um conceito (obviamente). Para que as unidades sejam uma unidade (para termos a sociedade a funcionar com os seus sub-conjuntos: polícia, parlamento, hospitais...) é necessário criar uma estrutura (meta-estrutura) que duplica, representa e agrega solidamente a diversidade. É o estado da situação, um excesso permanente e inevitável. Este excesso é (também) o do Estado e da representação forçando as partes ao desempenho de determinados papéis. Obtém-se a «unidade» através de uma predeterminação excessiva; o Estado é, portanto, sinónimo de excesso. O pensamento é o oposto: «não é outra coisa senão um desejo de acabar com o excesso exorbitante do estado. (...) O pensamento existe para que termine, mesmo que essa cessação não seja de facto obtida, o desancoramento quantitativo do ser. (...) O pensamento é propriamente aquilo que a des-medida (...) [do Estado] não pode satisfazer» (E.E., p. 312).
Quando este excesso se esvazia, quando uma forma de autoridade deixa de ter qualquer eficácia, algo irrompe alheio ao conhecimento e à previsão: o acontecimento. Ou melhor, este é, no fundo, uma imprevisibilidade previsível, porque o corte que efectua está inscrito no potencial da situação. Deste modo, se bem o entendo, o acontecimento não é nem casuístico nem arbitrário, ele está inscrito na situação e num seu ponto, embora indiscernível. O acontecimento é uma inevitabilidade auto-reflexiva, porque não se sujeita à prova nem à explicação que esclarece os factos. É, ao mesmo tempo, novidade e parte da situação. Transformando a novidade em verdade. Vejamos como.

Metafísica revolucionária
A Revolução Francesa é a verdade do Antigo Regime, porque é a consequência directa da transformação do poder do Antigo Regime, ou da forma como ele era exercido, num excesso vazio. A revolução irrompe quando um poder excessivo se esvazia e por isso permite que a realidade se mostre. Nestes termos, a corrupção e a repressão agenciadas pela aristocracia tornaram-se ineficazes e claramente inconsistentes para suster a verdade revolucionária. O sujeito da verdade – Saint-Just, Robespierre ou Lenine – é aquele que se mantém fiel às consequências do acontecimento. Ligando a verdade ao evento, Badiou opõe-se à indeterminação desconstrutivista. Diremos que partilhará temas com Derrida (a consideração de que só o múltiplo é pós-teológico, nomeadamente), mas nunca a localização da verdade (que é impossível em Derrida).
Desta ênfase na verdade deriva a oposição à opinião deste modo apresentada: verdade versus opinião, política como pensamento versus filosofia política, pois Badiou não aceita que se retire o pensamento à política para o confiar somente à filosofia, ou, se quisermos, Lenine e «paixão do real» versus Hannah Arendt e primado do «juízo», que não é mais do que uma paralisia no seio das opiniões (ou primado da «comunicação»). Esquematicamente, teremos: múltiplo puro > situação  > estado da situação/excesso da situação > conversão do excesso em vazio/vazio da situação sítio do acontecimento > acontecimento > verdade > sujeito da verdade/fidelidade às consequências do acontecimento.
Tal como o entendo, o acontecimento proveniente do vazio da situação é o nó principal do pensamento de Badiou: explica transformações sociais profundas (a Revolução Francesa e a Revolução de Outubro), e é o critério central da emancipação. Noutra formulação: apenas do vazio provém a «criação de mundos», porque o vazio é a destruição da insustentabilidade vigente. A fidelidade ao acontecimento conduz a outro conceito central: a «paixão do real». Badiou considera-a (em Le Siècle) como a melhor imagem do século XX, começando por um conhecido case study: Lenine contra Kautsky.
Trata-se também aqui da oposição entre democracia parlamentar (refém dos consensos, de que o maior é a resignação à economia) e política singular. A política singular é subjectiva. Como tal, é uma prescrição. Prescreve a igualdade, a verdade e a justiça. Igualdade, verdade e justiça (incalculável e indesconstrutível em Derrida) são prescrições, porque não podem depender de programas políticos. São constituintes do «nós», e nós não somos programáveis. Por exemplo, a igualdade não significa nada de objectivo ou em construção. Logo, não pode ser um programa político. A igualdade não é objectiva; pela sua subjectividade, dizemos: a igualdade «é», como dizemos nós «somos», e nesse «somos» surge a igualdade não sujeita a qualquer programa. Este «é», ou «somos», não se define como, nem pertence à esfera da opinião.
Regressemos a Lenine contra Kautsky, considerando o importantíssimo capítulo 5 («Raisonnement hautement spéculatif sur le concept de démocratie») de Abrégé de Métapolitique (C.M.) e a uma conferência que Alain Badiou proferiu no Collège International de Pihilosophie em 1999 (cap. 6 de Le Siècle – primeiro difundida on line em inglês): «One divides into two» (D.T.). Karl Kautsky publicou, em 1918, o livro A Ditadura do Proletariado em defesa da democracia parlamentar e representativa e o direito de voto «universal», opondo-se à política bolchevique. Badiou interessa-se pela resposta de Lenine: se Kautsky defendesse o direito «universal» de voto na Rússia, estaria a teorizar uma questão russa, mas tal não sucedeu – Kautsky concentrou-se antes no problema do regime, na «ditadura do proletariado», negando o processo histórico naquele momento e lugar.
Lenine dirá que Kautsky utiliza uma táctica para desacreditar as premissas essenciais do «real» num determinado momento e lugar. Badiou: «Um teórico é aquele que coloca questões – a democracia, por exemplo – considerando o momento. O renegado é aquele que ignora o momento, e transporta o seu ressentimento para um mero episódio». A resposta de Lenine intitulou-se, como se sabe, A Revolução Proletária e Kautsky o Renegado. Mostrou que Kautsky não considerou o momento histórico no seu todo, antes valorizou um episódio (o voto) não colocado pelo acontecimento imprevisto e imprevisível de transformação social generalizada.
Žižek chama a este tipo de comportamento (o de Kautsky) «traição à Verdade-Acontecimento»: permanecer imóvel a pensar no voto desvalorizando o acontecimento, como se nada ocorresse e a história fosse um distúrbio menor (T.S., p. 131).
Partindo da «paixão do real», Badiou chega ao «niilismo activo» ou ao «terror bom» (adversário do «niilismo passivo» da pós-modernidade). A «paixão do real» responde por uma fidelidade ao acontecimento que pode culminar na destruição de toda a realidade – «toda», porque num acontecimento tudo está por fazer e construir, nomeadamente uma invenção participativa radicalmente nova substituta do voto. Daí a interrogação de Badiou (aos seus opositores da «filosofia política»): «Qual é a tua crítica do mundo existente? O que nos podes oferecer de novo? O que é que criaste?» (D.T.).

Infinito autoconsistente
Vimos que o vazio é inerente à situação, porquanto espelha a sua imanente autodestrutividade. Resulta do seu excesso e é, ao mesmo tempo, a sua verdade, pois é do vazio que irrompe, embora de forma efémera, o retrato real da situação. O vazio alicerça a teoria, a acção política e a ontologia transitória de Badiou, e resulta na/da irrupção do acontecimento como niilismo activo – o «bom terror», se quisermos retomar a expressão de há pouco quando se defendeu a auto-reflexividade destrutiva do acontecimento-novidade. Conjugados com a teoria dos conjuntos, três outros tópicos estão aqui implicados: uma laicização do infinito; uma singularidade genérica e uma singularidade sem especificidade.
A matemática serve para nos libertar das armadilhas que a religião tece ao infinito e este, em Badiou, é o horizonte da arte, do niilismo activo da política, do amor e da ciência. Quando separamos os nossos actos de uma finalidade e objectivos lógicos imediatos, assumimos o infinito por dimensão. Georg Cantor veio mostrar-nos, pela primeira vez desde a recusa de Aristóteles, que o infinito pode ser representado porque não é apenas o indefinido a crescer sem parar. Mais do que representável, ou porque representável, o infinito é uma construção e não uma natureza.
A Teoria dos Conjuntos é a base. Esta admite que se formem conjuntos com múltiplos elementos, desde objectos a axiomas. As modalidades técnicas e teóricas («ferramentas») empregues na formação de um conjunto são, elas mesmas, um conjunto. Registe-se a similitude entre conjunto e teoria: ambos são construções. A existência de vários conjuntos depende, obviamente, de podermos criar 1 conjunto (existem vários porque pode existir 1). Para tal, como na aritmética (0, 1, 2, 3, 4, 5 ....), teremos de começar por um conjunto vazio  ] temos a sequência: conjunto vazio; conjunto com 1 elemento; conjunto com 2 elementos; conjunto com 3 elementos, etc. O conjunto vazio equivale ao zero e permite-nos construir o sistema dos números ordinais:  = 0. O conjunto que integra o conjunto vazio é igual a Um: {   } = 1 (o segundo número ordinal). E sucessivamente: {  , {}} = 2

Noutra notação:
O conjunto {}está integrado em , {} }
Logo:
Ao determinarmos o limite mais elevado, diremos estar num sistema finito de ordinais. O último ordinal contável – ordinal limite – de uma escala é, portanto, maior que o anterior, sem que «anterior» deva aqui pressupor, note-se, qualquer «sucessão». Veja-se a definição de ordinal limite em L’Être et L’Événement: «Um ordinal limite é um ordinal diferente de  e que não é um ordinal sucessor. Um ordinal limite é, em conclusão, inacessível através da operação de sucessão». A chave do entendimento deste carácter não sucessório do ordinal limite, enunciou-a Badiou em Le Nombre et les Nombres: «não é de maneira nenhuma a mesma coisa passar de n a n + 1 (seu sucessor), e passar de “todos” os números naturais ao seu mais distante que é o ordinal infinito w. No segundo caso, há manifestamente um salto, a marcação de uma “passagem ao limite”» (p. 95). Por outras palavras, uma coisa é a experiência da sucessão, outra é o «salto para o infinito»
Surge entretanto a hipótese de Cantor: se pudermos determinar a existência desse ordinal limite (ordinal infinito) w, logo é possível conceber o ordinal seguinte w  + 1. Que será o primeiro número infinito ou cardinal. Para Badiou será w0 .Portanto, w0 é o último ordinal contável + 1. É o primeiro número infinito; iremos considerá-lo o infinito mais pequeno, mais imediato, ou o infinito mais próximo.
     Seguem-se várias sequências de números infinitos ou transfinitos:
w 0 , w1 , w2 , w3  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

À0, À1, À2, À3,  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

O que poderemos retirar daqui? Que o infinito se constrói. É a resposta de Cantor – o problema da natureza do infinito não tem solução senão através de uma construção autoconsistente.
Esta autolegitimidade do número (ou laicização do infinito em direcção à singularidade sem especificidade, retomando tópicos sugeridos), faz-nos recuperar o tema do múltiplo versus uno. Peter Hallward fá-lo abrir o capítulo 4, «Badiou’s Ontology», do seu longo estudo, Badiou: A Subject to Truth (S.T.): «Para Badiou, a única ontologia possível do Um é a teologia» (p. 81). Com Deleuze e Lyotard, Derrida (disseminação, desconstrução) e Lacan (no entendimento da «dispersão pontilhista da realidade»), Badiou vem reiterar que, em filosofia, a originalidade surge do múltiplo. Mas qual é a sua especificidade? O que distingue Badiou da complexidade infinita e do diferimento derrideano? Em primeiro lugar, o múltiplo tem de ser vazio, puro e simples. Mas atenção, Badiou não pulveriza a existência em infinitas essências e identidades como o desconstrutivismo. Badiou procura a universalidade da multiplicidade. Como depende da cadeia dos acontecimentos, a universalidade não tem fim.
Mostrar-se pois, neste nosso Saint Paul (S.P.) nomeadamente, que a multiplicidade sem universalidade é uma falsa desterritorialização:
É necessária a aparência de uma não-equivalência para que a equivalência seja ele própria um processo. Que futuro inesgotável para os investimentos mercantis com o surgimento, em forma de comunidade reivindicativa e de pretensa singularidade cultural, das mulheres, dos homossexuais, dos deficientes, dos árabes! E as combinações infinitas de traços predicativos, que bênção! Os homossexuais negros, os sérvios deficientes, os católicos pedófilos, os islamistas moderados, os padres casados, os jovens quadros ecologistas, os desempregados submissos, os jovens já velhos! De cada vez, uma imagem social autoriza produtos novos, revistas especializadas, centros comerciais adequados, rádios «livres», grelhas publicitárias específicas e, enfim, «debates de sociedade» inebriantes à hora de grande audiência. Deleuze dizia-o exactamente: a desterritorialização capitalista precisa de uma constante reterritorialização. O capital exige, para que o seu princípio de movimento crie homogeneização no seu espaço de exercício, a insurreição permanente de identidades subjectivas e territoriais, as quais de resto só reclamam o direito de ser expostas, da mesma forma que os outros, às prerrogativas uniformes do mercado. Lógica capitalista do equivalente geral e lógica identitária e cultural das comunidades, onde as minorias formam um conjunto articulado (pp. 21-22).
Para Badiou a identidade tem de ser ao mesmo tempo uma não-identidade, e esta é um «valor» universal que termina no vazio puro e simples, sem limite e não fundado. Não fundado, porque liberto do Uno teológico. Esta infinitude da singularidade sem especificidade é privilegiadamente transmitida pela matemática e pelos conjuntos: tudo é múltiplo, porque tudo é conjunto. Nada é heterogéneo ao múltiplo, logo: 1 conjunto finito de países, 1 conjunto de moléculas ou 1 conjunto de galáxias são conjuntos de coisas idênticas, porque a unidade, ou a característica individual de cada coisa, não é um atributo intrínseco. A característica individual de uma (qualquer) coisa advém da sua pertença a um específico conjuntoa esse e não a outro. Diremos que uma galáxia é diferente de uma estrela porque pertencem a conjuntos diferentes. Cada coisa existe na sua pertença a um determinado conjunto, nada pertence só a si mesmo. Badiou dirá que o pertencer [e] é a relação fundadora. E junto ao equivaler [=] são as duas acções ontológicas.
Não se ignora a singularidade de cada indivíduo ou objecto, simplesmente parte-se de outro ponto: por exemplo, o conjunto dos «franceses contribuintes» nada tem a ver com as características pessoais de cada «contribuinte» (bom, mau, alto, baixo....). Esta teoria, com seus princípios consistentes, complexifica-se noutros conceitos operativos: distinguindo posteriormente «membro» e «parte» de um conjunto; distinguindo conjunto de sub-conjunto.
Depois da singularidade genérica e infinito, ou singularidade sem especificidade, regressamos ao tema da verdade. No último capítulo de Manifeste pour la Philosophie (M.Ph.), o autor caracteriza-nos a genericidade da verdade. Destaquemos esta «genericidade».
Descrevi, como alicerce-base do ser, a existência de um múltiplo puro. Que o ser é múltiplo, já todos o sabemos, reafirmará Badiou, junto aos sofistas e também frente a Heraclito, Wittgenstein e Deleuze. Mas Badiou opõe-se, como se sabe, ao fluxismo e sensismo destes (sobretudo a Deleuze). Caracterizando a sua filosofia como clássica por natureza, irá posicionar-se do lado de Platão e Descartes contra Wittgenstein e Heidegger, destacando em Platão a temática dos «direitos do Uno» (M.Ph., p. 81). Daí propõe Badiou o conceito de «platonismo do múltiplo». Que é a conciliação da verdade e dos «direitos do Uno» com a multiplicidade.
Começa-se pela interrogação: «Se o ser é múltiplo, como salvar a categoria da verdade, centro de gravidade do gesto platónico?» (M.Ph., p. 82). E responde-se: pelo indiscernível. Assim: «uma verdade não pode ser senão a produção singular de um múltiplo. O problema reside totalmente no facto de que este múltiplo deve ser subtraído à autoridade da língua. Será indiscernível» (idem, p. 82). A subtracção à nomeação faz da verdade um múltiplo de procedimento singular. Uma multiplicidade genérica. Esta multiplicidade genérica gera quatro condições filosóficas da verdade: arte, ciência, política e amor. Nestas quatro condições observaremos e diremos não cessar a produção de verdade e acontecimento, pois a inconsistência do ser e da situação é permanente.


Teologia materialista do acontecimento
A figura de S. Paulo (analisada neste S.P. lido por um ateu) é determinante para a compreensão dos critérios da verdade. S. Paulo, sabemo-lo, funda o cristianismo a partir não da vida de Cristo, de seus feitos ou milagres, mas antes da sua ressurreição. Ou seja, da nomeação de uma faculdade transcendente. No sistema verdade-acontecimento, a ressurreição de Cristo é o acontecimento do cristianismo, e o sujeito desse acontecimento é a comunidade dos crentes. Primeira criterização: o sujeito do acontecimento e a verdade não pré-existem ao acontecimento; segunda: a verdade é inteiramente subjectiva; terceira: é um processo (construção, conceptualização, nomeação) e não uma iluminação; quarta: a verdade é independente da situação – nestes termos, a declaração de S. Paulo sobre a «ressurreição» nada tem a ver com o governo do estado romano ou outro qualquer, nem com nenhuma condição política concreta existente.
S. Paulo declara a ressurreição de Cristo, o acto evenemental (acontecimento) que funda a Igreja. O acto é declarativo, vem da fidelidade (materialista e não teologal) do sujeito (ou tal exige do sujeito). Portanto, são vários os termos que definem o acontecimento e sua «proveniência». Intuição e invenção na base do nada e subjectividade pura. Paulo de Tarso, o Apóstolo dos Gentios, labora o acontecimento. A figura de S. Paulo vai aqui testar – através da sua vida e pensamento interligados, por nele se incrustar uma estreita relação entre verdade e decisão – a ligação da invenção à subjectividade pura. Depois de definida a intuição pura, abre-se uma sequência.
Como se sabe, é a Paulo de Tarso que cabe a fundação da Igreja como comunidade de cristãos e colectivo organizado de sujeitos. O seu gesto de fundador tem a seguinte particularidade, como disse: alicerça-se na «decisão», mas numa decisão infundada, em primeiro lugar, e desde logo porque Paulo, diferentemente dos doze apóstolos, não conheceu Cristo em vida. Logo, o seu gesto e discurso, que analisaremos, são mais profundamente fundadores que quaisquer outros, por estarem além do testemunho e da experiência verificável. Paulo alicerça a sua conversão numa visão. Essa visão gera uma decisão-revelação. E ambas concorrem numa prescrição (a pregação evangelizadora). Comecemos pela visão que lhe coube:
(...) primeiramente vos entreguei o que também recebi, que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras:
4. E que foi sepultado, e que ao terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras:
5. E que foi visto de Cefas, depois dos doze.
(...)
7. Depois foi visto por Tiago, depois de todos os Apóstolos.
8. E por derradeiro de todos, como de um abortivo, também de mim foi visto.
9. Porque eu o menor dos Apóstolos sou, que não sou digno de Apóstolo chamado ser, porquanto à Igreja de Deus persegui. (Primeira Epístola do Apóstolo S. Paulo aos Coríntios [doravante I Cor.] 15:3-9)
     Seguidamente, da visão à prescrição na superação da lei dos homens:
10. Por que prego eu agora a homens, ou a Deus? Ou procuro comprazer a homens?
11. Mas faço-vos saber, irmãos, que o Evangelho que por mim foi anunciado, não é segundo os homens.
12. Porque o não recebi, nem aprendi de homem algum, senão por revelação de Cristo (Epístola do Apóstolo S. Paulo aos Gálatas I, 1:10-12).
Não conhecendo Cristo, Paulo nada aprendeu directamente com os seus actos, ensinamentos e milagres. Apesar disso, Paulo impõe-se a si mesmo uma missão e uma mensagem, estando ambas além do contacto que não teve. Qual foi a missão de Paulo? Em primeiro lugar, Paulo estabelece a comunidade cristã a partir de um conceito de ressurreição ainda, de certo modo, desconhecido quer de gregos – que se limitavam a descrever uma migração de almas , quer de judeus, atentos apenas à exaltação dos corpos existentes no céu, categoria onde, de qualquer modo, não cabe o Cristo que caminha, de corpo e alma, vindo da sepultura. Comportando igualmente uma visão nova do corpo:
40. E corpos celestiais, e corpos terrestres há: mas uma é a glória dos celestiais, e outra a dos terreais.
41. Outra é a glória do Sol, e outra a glória da Lua, e outra a glória das Estrelas: porque [uma] estrela difere em glória [de outra] estrela.
42. Assim também há-de ser a ressurreição dos mortos. Semeia-se [o corpo] em corrupção, ressuscitará em incorrupção.
43. Semeia-se em desonra, ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscitará em força.
44. Semeia-se corpo animal, ressuscitará corpo espiritual. Corpo animal há, e há corpo espiritual (I Cor. 15:40-44).
Por isso se disse que a mensagem de Paulo se funda numa decisão – a de que o corpo e a alma de uma entidade, redivivos, podem caminhar como nós, revelação que só é uma prescrição, como venho defendendo, quando junta a uma decisão subjectiva. E Paulo radicaliza esta sua mensagem, ou melhor, clarifica-a nas suas consequências, quando afirma que tal ressurreição é uma nossa faculdade. Temos de segui-lo novamente:
12. Ora, se se prega que Cristo dos mortos ressuscitou, como dizem alguns de entre vosoutros, que ressurreição dos mortos não há ?
13. E se ressurreição dos mortos não há, também Cristo não ressuscitou.
14. E se Cristo não ressuscitou, vã é logo nossa pregação, e vã é também vossa fé.
15. E assim somos também achados falsas testemunhas de Deus: pois de Deus testificamos, que a Cristo ressuscitou, ao qual [porém] não ressuscitou, se na verdade os mortos não ressuscitam.
(…)
20. Mas agora [já] Cristo dos mortos ressuscitou, [e] as primícias dos que dormiram foi feito.
21. Pois porquanto a morte [veio] por um homem, também por um homem a ressurreição dos mortos [veio].
22. Porque assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos vivificados serão. (I Cor. 15:12-15, 20-22)

Decisão, prescrição
Os pares decisão/visão e revelação/prescrição são, no universo pauliano e cristão, fundamentais para o entendimento da verdade como intuição, subjectividade e invenção puras. Este triângulo conceptual supera o limiar do conhecimento (S. Paulo, I Cor. I, 19: «A sapiência dos sábios destruirei, e a inteligência dos entendidos aniquilarei»). Mas, atente-se que tudo isto assim se processa, como nos demonstra Slavoj Žižek a partir de Lacan, no plano da mais estrita materialidade. Para Žižek, de entre as existentes, o cristianismo é a única «religião materialista», porque é a religião da imperfeição e da carne.
Retomando a diferença entre «fé» e gnosticismo em Harold Bloom (G.A.), Žižek (B.) vai reivindicar um Deus que, neste mundo, convive com os campos de morte, com a esquizofrenia e a sida, porque é precisamente um Deus deste mundo e não de um outro mundo idealizado além do que imediatamente nos cerca.
S. Paulo, Lenine e Lacan são, assim, três hereges maiores: S. Paulo reinterpretou Cristo a seu modo e sem o ter conhecido (alicerçou a importância de Cristo na «ressurreição», não se interessou, não conheceu os seus milagres e biografia, apartou o cristianismo de qualquer sintagma identitário, judaico ou grego, e refundou-o como religião cosmopolita), Lenine aplicou Marx fora do contexto preconizado por este (a Rússia da Revolução de Outubro era um país predominantemente rural e não industrial, não nos esqueçamos) e Lacan reinterpretou e reinventou Freud. Para Freud, o inconsciente é indizível, é o reprimido sem gramática, porque falar do inconsciente é torná-lo, obviamente, consciente. Lacan segue uma via diferenciada, aparentemente oposta, traiçoeira em relação ao mestre: para Lacan, o inconsciente fala através de nós; daí, a sua formulação fundamental: o inconsciente é linguagem. Não é aquilo que dizemos, mas ele diz-se através de nós (sem consciência de que ele através de nós fala). Logo, o paradigma passa do corpo para a linguagem. Traição? Mas Lacan lê Freud à letra! Quem conhece a A Interpretação dos Sonhos sabe das razões de Lacan. Em The Puppet and the Dwarf: The Perverse Core of Christianity, Žižek radicaliza a sua própria postura, antes esboçada: não se trata de dizer que até um materialista pode chegar ao núcleo do cristianismo, mas de sublinhar inequivocamente que apenas um materialista pode compreender o núcleo desta religião. E é através desta experiência, e apenas através dela, que se pode formar um verdadeiro materialista dialéctico.
A figura de S. Paulo ocupa neste livro, a par de Lacan, o lugar central. De certo modo, Žižek segue – como reconhece explicitamente desde trabalhos como The Fragile Absolute: Or, Why is the Christian Legacy Worth Fighting For? (ou antes, desde The Ticklish Subject: The Absent Centre of Political Ontology) – Alain Badiou, para quem S. Paulo funda uma comunidade universal tendo por base um acontecimento-declaração puramente subjectivo e inverificável: Cristo ressuscitou. É a sinonímia entre, por um lado, subjectividade, invenção e intuição, e, por outro lado, decisão, visão, revelação e prescrição (a que poderíamos acrescentar declaração e proclamação) que nos leva à seguinte definição de acontecimento (Badiou):
1 - O sujeito cristão não pré-existe ao acontecimento que declara (a Ressurreição de Cristo). Polemizar-se-á, portanto, contra as condições extrínsecas da sua existência ou da sua identidade. Não deve ser exigido nem que ele seja judeu (ou circuncidado) nem que seja grego ou sábio.
2 - A verdade é inteiramente subjectiva (ela é da ordem de uma declaração que atesta uma convicção quanto ao acontecimento). Polemizar-se-á contra toda a subsunção da sua transformação numa lei. Deve passar-se simultaneamente por uma crítica radical da Lei judaica, tornada obsoleta e nociva, e da lei grega, ou subordinação do destino à ordem cósmica, que nunca foi senão uma ignorância «sábia» dos caminhos da salvação.
3 - A fidelidade à declaração é crucial, pois a verdade é um processo, e não uma iluminação (…).
4 - Uma verdade é em si mesma indiferente ao estado da situação, por exemplo, ao Estado Romano. O que quer dizer que ela é subtraída da organização dos subconjuntos que prescreve esse estado. A subjectividade que corresponde a essa subtracção é uma distância necessária do Estado, e do que lhe corresponde nas mentalidades: o aparelho das opiniões (…). (pp. 27-28)
Esquematicamente:

Amor e incompletude
Retomemos a ligação entre S. Paulo e Lacan. Comecemos agora por um tema comum a ambos, o da dependência ou conflitualidade entre Lei e Amor (The Puppet and the Dwarf …, capítulo «From law to love...and back»). Vejamos uma interrogação comum: é a oposição entre Lei e Amor interna à Lei (ou seja, define-se esta oposição como a conflitualidade entre a «lei positiva» e a «lei para além de todas as medidas» -- sendo este o paradoxo da não-totalidade interior à Lei), ou tal oposição marca um começo dentro da Lei e um posterior afastamento, isto é, a necessidade do Amor sair da Lei para ser sempre «Amor fora da Lei»? Problema pauliano com que se debate Lacan: está o amor dentro ou fora da lei? Existe amor fora da lei? A resposta é complexa.
Vejamos a hipótese seguinte. Mesmo que consigamos possuir todo o conhecimento possível (sermos «completos» de conhecimento), não podemos apagar a presença do amor no mundo. O amor estará sempre presente e, por isso, além de tudo (infinitamente para lá do conhecimento total, portanto – alcançar o amor será alcançar o mais vasto do mais vasto).
Por outro lado, não paramos de necessitar de amor porque somos sempre incompletos. Trata-se, em S. Paulo, do paradoxo da completude, como referi: se só o ser incompleto pode amar, então este «homem incompleto» vai mais longe do que o «completo». O incompleto é superior ao completo, porque só o incompleto pode amar, ou seja, chegar aonde não chega o possuidor do conhecimento «total».
Também em Lacan o amor é lido segundo este paradoxo, porque não pertence à lei, não pertence ao «todo» e à lei universal (por isso esta dialéctica da lei e sua transgressão, tanto quanto o posso supor, é masculina enquanto o amor é «feminino»). Aqui encontrará Žižek o núcleo do cristianismo: o conhecimento é «finito» enquanto o amor é «infinito». Mas ao infinito do amor só o ser imperfeito pode chegar. Ao contrário do paganismo, no cristianismo só a imperfeição e a incompletude é que são perfeitas: só a imperfeição pode alcançar o divino e o amor. A fragilidade absoluta. Ou melhor, a fragilidade é um absoluto. E somente o é a fragilidade.
Aqui chegados, cabe-nos passar a uma sucessão de pontos em que a superação pauliana da verdade (frágil enquanto indiscernível e indiscernível porque na realidade tudo aparentemente se mantém se não houver uma «decisão/proclamação» que tudo transfigure, proclamação que é forte porque apesar de partir de quase nada é superadora do conhecimento) se cruza com a definição de verdade elaborada por Alain Badiou, ainda com a prática da verdade em Mao Tse-Tung e Søren Kierkegaard. S. Paulo, Kierkegaard, Mao e Badiou, que há de comum entre eles? Uma ligação do triângulo conceptual, ou de apenas um ou dois dos seus vértices, constituído por intuição-invenção-subjectividade, a uma prescrição chamada «verdade» (no que consideraremos a equivalência entre verdade e subjectividade em Kierkegaard, a «destruição da sapiência» [I Cor. I, 19-20] em S. Paulo, a verdade como criação em Mao, e, por fim, a verdade como o indiscernível inominável de Badiou).

Função do real
Para entendermos o lugar de Mao Tse-Tung neste processo, proponho uma digressão pelo opus central do pensamento de Alain Badiou (que cederá os instrumentos de análise), constituído pelos dois tomos de L’Être et l’Événement (o primeiro apenas com esse título, de 1988), o segundo (de 2006) e intitulado Logiques des Mondes: L’Être et l’Événement 2. É Badiou quem nos introduz Mao nos temas do procedimento e da prescrição. Vejamos. Em 1988, para Badiou, tratava-se de mostrar e clarificar a separação entre o ser e o conhecimento, por um lado, e a verdade e o acontecimento por outro. Sendo que os primeiros não acediam à verdade suplementar aberta intempestiva e imprevistamente pelo segundo par.
Ser e conhecimento, enquanto ordem positiva e acessível, simplesmente estruturada na repetição, formam a situação. A verdade, como ruptura efémera na situação é aqui da ordem do não-ser, indecidível, genérica, nova, indiscernível (no seu começo integrado na situação e com ela confundido) e inominável. LM, cerca de dezoito anos depois, começa, por seu lado, por uma caracterização da verdade como excepção aos corpos e às linguagens (sempre firmes na sua presença definidora da situação), para, no essencial, se ocupar do aparecimento das verdades e dos seus modos e mundos no mundo.
Nesta contextualização, proponho duas vias para a integração da política maoista na tematização da verdade como intuição pura, subjectividade e invenção:
1) A proposta maoista configura o aparecimento de uma nova política que goza da mesma estrutura do aparecimento de um corpo de verdade; trata-se do paralelismo entre a política (que ou nela vê irromperem movimentações inéditas -- «longa marcha», «guerra prolongada» -- ou não poderá ostentar o nome «política») e os conceitos antes destacados como prescrições inadiáveis.
2) A política maoista afirma que a realidade se destina a ser permanentemente transformada, iniciando-se essa transformação por uma exacta percepção desta mesma realidade.

O tópico 1) segue Alain Badiou em LM; o tópico 2) parte de uma minha leitura do texto de Mao, «De onde vêm as ideias correctas?» (1963). No Escólio do Livro VII («Qu’est-ce qu’un corps») de LM, Badiou analisa a «constituição de um corpo-sujeito» produzindo o sistema de condições para a sua existência, o que passa por responder à questão-base: «porque pode um corpo existir neste mundo?».
Seguidamente, para a caracterização da política maoista como invenção, a questão do corpo no mundo transforma-se noutra questão: «porque é que o poder vermelho pode existir na China?» (questionava Mao já em 1928). A resposta desdobra-se em sete partes (e mencionaremos, delas, uma breve síntese) a que Badiou dá o nome de «indução subjectiva», começando por um movimento razoavelmente óbvio. Badiou cita Mao: «A existência prolongada, num país, de uma ou de várias pequenas regiões onde o poder vermelho se consolidou, zonas rodeadas pelo poder dos brancos, constitui um facto absolutamente novo na história da humanidade». Sinaliza-se isto mesmo: se podem existir pequenas freguesias ou comarcas ou outra forma de demarcação governadas pelos comunistas, se podem existir pequenas zonas comunistas, repito, esse ineditismo, este facto absolutamente novo, concorre para o estabelecimento da relação invenção e seu alargamento à verdade. Mao, repita-se, está aqui a dizer-nos que uma verdade (e Badiou subscreve-o) corresponde a uma experiência ou criação de algo antes não conhecido. Um procedimento humano inédito, pensando em termos sociais e históricos.
Depois parte Badiou para a singularidade da situação, e para a análise do que chama as «características transcendentes» do mundo, favoráveis ou desfavoráveis à aparição do novo corpo e do novo presente. Noutro momento, a indução subjectiva, na sua indecidibilidade, considerará a heterogeneidade imanente a esse novo corpo: o exemplo é a própria composição do Exército Vermelho, constituído por camponeses oriundos das mais variadas zonas da China, corpo fragmentado quase ao infinito, mas susceptível de um trabalho de compatibilização e organização específico. Entrosamento que se gerou através do que Mao chamou «instrução política» (Mao citado em L.M., p. 519) multiplicando-se para tal o número de reuniões de esclarecimento pelo número necessário.
No tópico 2) considero o texto, e recito o seu título, «De onde vêm as ideias correctas?». «Ideia correcta» é uma «ideia verdadeira», a verdade é correcta, porque, circularmente, uma ideia incorrecta não pode ser verdadeira. Mas já sairemos do círculo. O ponto de partida é este, muito curioso e directo: a finalidade do mundo é a sua transformação. Mas o mundo não pode ser transformado sem que seja conhecido com toda a exactidão. Esta premissa aproxima-se da intuição pura e invenção permanente. Conhecer minuciosamente uma coisa tem por objectivo destituí-la – a realidade é para ser mudada, claramente. Como? O primeiro passo do conhecimento da realidade é a sua assimilação perceptiva. A percepção conduz-nos ao conhecimento conceptual, mas o conhecimento, como a verdade em Badiou, não é a meta. A meta é a transformação da realidade, não nos esqueçamos. Por isso o conceito é reenviado para a realidade para a mudar transformando-se num processo cíclico que instabiliza e supera o conhecimento, cruzando uma vez mais a verdade-realidade com a intuição, subjectividade (reveladas em diversos momentos que apelam a escolhas claras) e invenção (no fundo, o que resta deste processo só muito esforçadamente ainda se chamará «realidade» ou «sociedade»).
Numa rápida conclusão, S. Paulo aproxima-se de Kierkegaard e da sinonímia verdade-subjectividade, enquanto Badiou se aproxima de Mao Tse-Tung, onde a verdade é mais da ordem do acontecimento (permanente) ou de uma irrupção de algo desconhecido que suplanta a situação e ao qual o conhecimento estabelecido não acede. Se quisermos um paralelo, diremos que se a verdade é uma revelação e uma graça em S. Paulo, em Badiou ela é a graça secularizada, embora o paralelo seja, de certo modo, incorrecto. Porque a verdade é de natureza totalmente prática e materialista. A verdade não existe antes do acontecimento esperando que este a revele. A verdade é pós-evenemental, logo tudo a separa da revelação e da graça mesmo que secularizadas. E muito se aprende, como vimos, com Paulo.
S. Paulo.


Carlos Vidal
Artista (protagonizou a exposição “Imagens para os Anos 90” em Serralves, onde se encontra representado) e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde lecciona Pintura, Composição , Temas da Arte Contemporânea, e orienta teses de mestrado e doutoramento. Tem três livros recentes, “Invisualidade da Pintura”, “A Sombra Total: Arte, Amor, Ciência e Política em Alain Badiou” e “Deus e Caravaggio” publicados em Espanha na editora Brumaria (com edição inglesa de “Deus e Caravaggio” no prelo). Tem-se dedicado a temas como o “Siglo de Oro” (colaborou com textos nos eventos dos 400 anos do nascimento de Murillo, Sevilha), o barroco italiano (Caravaggio), a videoarte (“Invisualidade da Pintura”) e o pós-colonialismo (“Globalization or Endless Fragmentation?”, em “Over Here” ed. G. Mosquera e J. Fisher, The MIT Press, 2004).

Nota de edição
Este texto corresponde ao posfácio do livro de Alain Badiou, «S. Paulo : A Fundação do Universalismo», publicado este ano pela VS e traduzido por Sandra Andrade.

Imagem
1.Rembrandt. S. Paulo em Meditação. Desenho. 1629 (Louvre, Paris)
2. Piero della Francesca. Ressurreição. Fresco. 1460 (Museu Civico, Sansepolcro)

Ficha Técnica
Data de publicação: 26.06.2020
Edição #27 • Verão 2020 •

Breve apontamento bibliográfico
Alain BADIOU
-- L’Être et l’Événement, Paris, Seuil, 1988.
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