Diário da psico-deflacção I • Franco "Bifo" Berardi




You are the crown of creation
And you’ve got no place to go
Jefferson Airplane

A palavra é agora um vírus. O vírus da gripe pode ter sido, em tempos, uma célula saudável dos pulmões. Agora, é um organismo parasita que ataca e causa danos no sistema nervoso central. O homem moderno perdeu a opção do silêncio. Experimente-se suspender o discurso sub-vocal [1], atingir dez segundos que seja de silêncio interior. Deparamos com um organismo que nos resiste, forçando-nos a falar. Esse organismo é a palavra.
William Burroughs, The ticket that exploded

21 de Fevereiro
Regressando de Lisboa, no aeroporto de Bologna, uma cena inesperada: duas pessoas, de fato-macaco branco e capacete amarelo, interpelam os passageiros recém-chegados apontando-lhes uma pistola branca à testa, para lhes tirar a temperatura. Um pressentimento: preparamo-nos para ultrapassar um novo limiar no processo de mutação tecno-psicótica?

28 de Fevereiro
A cidade barulhenta está silenciosa, as escolas estão fechadas, os teatros encerrados. Não se vêem estudantes, nem turistas. As agências de viagem riscam regiões inteiras do mapa.
As recentes convulsões do corpo planetário provocaram um colapso que obriga o organismo a parar, a desacelerar, a desertar os lugares repletos e as frenéticas negociações do dia-a-dia.
Talvez este choque seja a saída que procurávamos e não conseguíamos encontrar: uma psico-epidemia, um vírus linguístico que se desenvolve a partir de um vírus físico, associando-se a ele.
O colapso do corpo planetário é a consequência de um vírus biológico que provoca uma afecção (relativamente) letal mas é também, ou sobretudo, o efeito de um agente viral cuja acção é desconhecida: nem o sistema imunitário nem a ciência médica conhecem minimamente o agente. O desconhecido pára a máquina, o agente biológico torna-se um info-vírus, e o info-vírus desencadeia uma reacção psicótica.
Um vírus semiótico na psicoesfera bloqueou o funcionamento abstracto do sistema, retirando os corpos de circulação…
Quem diria?

2 de Março
Burroughs emprega a figura do vírus como uma força que paira a meio caminho entre o ser que se desenvolve e o mero replicante [2].É desta forma que Burroughs desafia as definições convencionais que separam o vivo do não-vivo. O bio-vírus é um organismo vivo que emana entidades não vivas (info-vírus) que, por sua vez, vão agir na psicoesfera.
Um vírus semiótico na psicoesfera está a bloquear o funcionamento abstracto da máquina à medida que os corpos começam a mover-se mais lentamente e renunciam, enfim, à acção. Os humanos relaxam, então, a sua pretensão de governar o mundo, deixando-se flutuar no fluxo do tempo. A vacuidade engole uma coisa a seguir à outra e a ansiedade de manter o mundo inteiro, que era o que mantinha o mundo inteiro, relaxa.
Não há pânico, nem mesmo medo, apenas silêncio. Nos últimos vinte anos, as nossas rebeliões não tiveram o alcance esperado, mobilizámos nervosamente as nossas energias sem sucesso. Chegou o momento de parar.
Quanto tempo durará, esta fixação psicótica que chamamos coronavírus? Os especialistas dizem que a primavera matará o vírus, mas tanto quanto sabemos pode até ajudá-lo. Se não sabemos nada sobre o vírus, como podemos saber a temperatura que prefere?
A questão não é até que ponto o vírus é letal. O efeito do vírus não se resume ao número de pessoas que mata.
O efeito (último) do vírus está na paralisia relacional que ajuda a espalhar.
Há anos que a economia mundial tem vindo a estagnar, mas não fomos capazes – até agora – de o reconhecer, de o aceitar, de lidar positivamente com a estagnação secular.
Agora o vírus semiótico, com o ‘‘reset’’ psíquico que ajuda a instalar, está a ajudar-nos na transição para a imobilidade.
Parece quase difícil de acreditar.

3 de Março
Como reage o organismo depois de três décadas de hiper-estimulação, tensão incessante, guerra pela sobrevivência e selecção natural, como reage o corpo social incapaz de se ver livre da adição que transforma a vida em stress permanente? Como reage o corpo planetário, como reage a mente interconectada?
Na segunda parte de 2019, o corpo planetário entrou numa espécie de espasmo. Uma convulsão de Hong Kong a Barcelona, Santiago, Quito, Beirute, motins por todo o lado. A rebelião não tinha objectivos que pudessem ser unificados, e as diferentes sublevações não convergiram para formar uma frente comum. A mente não parecia capaz de dirigir os diversos apetites e a febre crescia, até ao final do ano.
Então Trump, para júbilo daqueles que o seguem, matou Suleimani.
Milhões de Iranianos desesperados encheram as ruas, gritando, uivando de dor e prometendo uma vingança ruidosa. Nada se passou. O exército Iraniano lançou uma bomba no quintal e a artilharia, em pânico, abateu um avião civil. Trump ganhou tudo e Deus encontra-se, evidentemente, do seu lado: os Americanos excitam-se com a visão do sangue, e os assassinos são os seus heróis.
Trumpismo nazi e uma crescente estimulação nervosa para todos. Fim da história?
Seguiu-se a surpresa, o ‘‘twist’’ imprevisível: a implosão. Depois da convulsão, o organismo sobre-excitado da humanidade foi finalmente atingido por um colapso: uma espécie de gerontomaquia que mata sobretudo octogenários veio bloquear a frenética máquina global da economia de acumulação.
O capitalismo é uma axiomática, baseia-se numa hipótese indemonstrável: que o crescimento ilimitado é possível e necessário. Esta pressuposição é o que torna a acumulação possível e a extracção de valor (ou mais valia) mandatória. Todas as concatenações lógicas e económicas são consistentes com este axioma, e nada pode ser concebido fora dele. Não existe saída política da axiomática do capital, nenhuma linguagem pode dizer o que se encontra no exterior da linguagem, e não há possibilidade de destruir o sistema, uma vez que todos os processos linguísticos ocorrem no interior de uma axiomática que torna impraticáveis todas as enunciações extra-sistémicas.
A única saída é a morte, como intuiu Baudrillard. Só a vida depois da morte será de novo possível. Depois da morte do sistema, será permitido aos organismos extra-sistémicos começarem uma vida nova – isto é, se sobreviverem, o que está longe de ser certo.
A recessão que vem pode matar-nos, pode provocar conflitos violentos, epidemias de racismo e guerra. Convém ter presente isto. Não estamos preparados para pensar a estagnação como uma condição duradoura, não estamos preparados para pensar a frugalidade, a partilha, não estamos preparados para dissociar o prazer do consumo.

4 de Março
Durante décadas, fomos incapazes de encontrar uma saída do cadáver do capitalismo, mas o choque que se seguiu à convulsão abre caminho a uma deflacção psicológica. Para contrariar a estagnação e relançar a economia (o lucro), o capitalismo impôs-nos uma competição constante, enquanto nos explorava até à medula em troca de salários que decresciam sempre. Neste momento, o vírus está a esvaziar a bolha da aceleração, e talvez o facto de enfrentarmos um inimigo (invisível) comum possa gerar nostalgia por um pouco de solidariedade social.
Tornou-se claro na última década que a estagnação é o futuro da economia mundial, mas o capital insistia em fazer-nos correr sempre mais depressa, a bem do absoluto dogma do Crescimento. A revolução permanecia longe do nosso pensamento, enquanto a subjectividade continuava confusa, deprimida, e o cérebro político não sabia o que fazer da complexidade caótica da realidade social na era das redes.
O vírus está a mostrar-nos o caminho para uma revolução sem sujeito, uma revolução puramente implosiva baseada em passividade e renúncia. Rendemo-nos. De repente, este slogan ganha uma sonoridade subversiva: parar com a excitação, parar com a ansiedade inútil que deteriora a qualidade das nossas vidas.
Literalmente: não há nada a fazer. Por isso, vamos não fazer nada.
Dificilmente o organismo social recuperará deste vírus semiopsicótico: e a economia capitalista parece condenada.

5 de Março
Primeiros sinais de alarme do sistema financeiro, os economistas dizem-nos que – ao contrário do que aconteceu em 2008 – o Banco Central e outras instituições financeiras não dispõem das ferramentas capazes de relançar o sistema.
Pela primeira vez, o colapso não veio de factores estritamente económicos ou financeiros: a crise tem origem no colapso do corpo. A mente decidiu abrandar o ritmo e a desmobilização geral é um sintoma de abstinência. Um efeito e ao mesmo tempo uma causa.
A própria função biológica entrou em modo passivo, por razões que nada têm a ver com vontade consciente ou um projecto político. Cansada de processar neuro-estímulos cada vez mais complexos, humilhada por um sentimento de impotência frente ao omnipotente autómato tecno-financeiro, a mente baixou a tensão. Psico-deflacção.

6 de Março
Sei que é possível defender o contrário do que tenho vindo a dizer: colocado perante a fúria etno-nacionalista, o neoliberalismo precisa de aperfeiçoar o processo de total abstracção da vida. O vírus obriga toda a gente a ficar em casa, mas a mercadoria continua a circular. O controle biopolítico das populações e as restrições à mobilidade auxiliam o tecno-capitalismo a superar qualquer resistência por parte da sociedade.
De acordo com Srecko Horvat:
“É este o perigo político do coronavírus: uma crise de saúde global que se adequa à agenda etno-nacionalista de fronteiras fortificadas e exclusividade racial, ao mesmo tempo que serve o objectivo de acabar com o livre movimento dos povos (especialmente daqueles que provêm de nações ‘‘em desenvolvimento’’), tudo isto enquanto assegura que o fluxo de bens e de capital segue inalterado. No presente momento, a crescente pandemia de medo é mais perigosa do que o próprio vírus. A imagética apocalíptica emanada pelos media esconde o aprofundamento da relação entre a extrema-direita e a economia capitalista. E da mesma maneira que um vírus precisa de uma célula viva para se replicar, assim o capitalismo se adaptará à nova biopolítica do século XXI. A economia global sofreu já o impacto do Coronavírus, mas daqui não resultará o fim da interminável circulação e acumulação de capital. Quando muito, espera-nos uma mais sombria, ainda mais perigosa forma de capitalismo, assente no controle mais severo e na purificação das populações’’. (Srecko Horvat, New Statesman, 19 fevereiro, 2020)
Diria, no entanto, que esta hipótese realista não é ainda suficientemente realista. Horvat não considera o lado subjectivo do colapso e os efeitos duradouros da psico-deflacção em termos de estagnação económica.
O capitalismo sobreviveu ao colapso financeiro de 2008 porque as condições do colapso se encontravam, todas elas, no interior da relação abstracta entre linguagem, finança e a economia. Mas pode não sobreviver ao colapso provocado pela epidemia, uma vez que aqui um factor extra-sistémico entra na contenda.

7 de Março
O meu amigo Alex escreve-me de Toronto: ‘‘Todos os centros de computação do mundo estão a trabalhar para encontrar o antídoto para o coronavírus. [Esta noite] sonhei com a batalha final entre bio-vírus naturais e info-vírus artificiais. Em qualquer dos casos, o humano está fora do jogo. Aparentemente.’’
O bio-vírus prolifera no corpo stressado da humanidade: os pulmões são, ao que parece, o ponto fraco. As afecções respiratórias espalharam-se um pouco por todo o lado, durante os últimos anos, graças ao ar irrespirável.
Entrando no sistema mediático e conectando-se com a rede semiótica, o vírus transferiu o seu poder debilitante para o sistema nervoso, para o cérebro colectivo.
O sistema de saúde encontra-se enfraquecido devido aos cortes na despesa pública, impostos pelo sistema financeiro. O número de médicos para atender ao público decresceu, pelo menos em Itália. Daí o problema, neste momento, da falta de unidades de cuidados intensivos.
É a vez do autómato, e a máquina de computação global corre atrás da fórmula: lançar o info-vírus contra o bio-vírus.
Enquanto isso, a energia retira-se do corpo social e a política expõe a sua impotência: a vontade não tem qualquer controlo sobre o info-vírus replicante.

8 de Março
Hoje, fui obrigado a cancelar um jantar que tinha marcado com o meu irmão e as minhas irmãs. Os mais velhos, como nós, encontram-se em perigo: em Itália, a média de idade das mortes pelo vírus é 81 anos.
Tenho a impressão de viver dentro duma espécie de dupla-tenaz. Se não cancelo o jantar, arrisco-me a ser o portador do vírus (físico) que pode matar o meu irmão, que sofre de diabetes. Cancelando o jantar, torno-me um agente do psico-vírus, o vírus do medo e do isolamento.
Pergunto-me, pela primeira vez: e se este pesadelo dura muito mais tempo?

11 de Março
O mercado bolsista entra em queda acentuada, um pouco por todo o lado. Em Milão, desceu 17 pontos, a maior queda de sempre.

12 de Março
Toda a Itália em quarentena. O vírus corre mais veloz do que as medidas de contenção. Coloco a máscara sanitária, pego na bicicleta e saio para comprar jornais. Os quiosques estão abertos, e as farmácias, e os mercados de comida. A tabacaria está aberta. Compro mortalhas para fumar durante a noite: mas o haxe começa a escassear na minha pequena caixa. Não levará muito até que fique totalmente vazia, e os jovens passadores de droga desapareceram das ruas.
Trump usou a expressão: ‘‘vírus estrangeiro’’.
Todos os vírus são estrangeiros, mas o presidente não leu William Burroughs.

13 de Março
Os trabalhadores estão em greve porque, apesar da quarentena generalizada, são obrigados a ir para as fábricas e a trabalhar na linha de montagem, sem máscaras sanitárias e sem a distância de segurança.
Ninguém é capaz dizer o que vai acontecer a seguir, dentro de um mês, ou seis meses.
Talvez um estado tecno-totalitário seja o nosso futuro. Em Black Earth, Timothy Snyder explica como não há condição melhor para a emergência de regimes totalitários do que situações de perigo extremo, nas quais sobreviver se torna a preocupação de todos e cada um.
A SIDA preparou a virtualização, espalhando o medo do contacto dos corpos. Agora, poderíamos passar a uma condição de isolamento permanente: a nova geração pode vir a internalizar o terror do corpo do outro.
Terror é o que sentimos quando o Imaginário prevalece totalmente sobre a imaginação.
Mas, aqui, encontramos a possível fractura. Poderíamos arrancar-nos do pesadelo pela imaginação de uma possibilidade que ontem era impensável: frugalidade, redução do tempo de trabalho, igualdade, abandono do paradigma do crescimento, investimento dos recursos sociais na investigação, na educação, na saúde e no prazer.
Não sabemos como sairemos desta pandemia, cujas condições foram preparadas pelo corte neoliberal na saúde pública, pela poluição do ar e pela exploração das energias nervosas.
Poderemos despertar, um dia, para uma condição de extrema solidão e agressividade. Como poderemos também sair desta situação com o desejo de abraçar, tocar e um novo apetite para a preguiça.
O vírus reúne as condições para um salto mental que nenhuma pregação política seria capaz de produzir. A igualdade está de volta, e ocupa o centro da cena.
Vamos imaginar que é este o ponto de partida para o tempo que vem.



Notas de rodapé
1. O discurso sub-vocal consiste, segundo a ciência, na articulação silenciosa das palavras durante a leitura, manifestando-se através de minúsculos movimentos da laringe. Foi estudada a sua ligação à produção de alucinações auditivas nos esquizofrénicos. [Nota do tradutor]
2. Do inglês: ‘‘a force hovering between evolving being and mere replicant’’. O termo ‘‘replicant’’, que conhecemos bem do filme de Ridley Scott (Blade Runner, de 1982), tem efectivamente a sua origem nos domínios da microbiologia e da bioquímica. ‘‘Replicating’’, neste contexto, remeteria assim ao ‘‘processo biológico através do qual uma célula produz uma cópia de si mesma’’.

Franco “Bifo” Berardi
Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de destaque do operaísmo italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação com os media e a produção cultural. Fundou a Rádio Alice, primeira rádio livre em Itália (1976-1978), e a revista A/traverso (1976-1981), que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária. Exilado em Paris, trabalhou com Felix Guatari em esquizoanálise. Desde os anos 1990 que o seu trabalho tem incidido sobre a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e capitalismo.

Nota da edição
Diário da psico-deflacção foi publicado numa parceria Punkto/Teatro do Bairro Alto, com tradução de Nuno Leão. Franco “Bifo” Berardi esteve em Lisboa em Outubro passado para a abertura deste teatro. A sua conferência está disponível em podcast no site do TBA, assim como um glossário experimental gravado aquando da sua passagem pela cidade.

Ficha Técnica
Data de publicação: o1.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos