Diário da psico-deflacção III: Como Se Fosse Ontem • Franco "Bifo" Berardi




26 de Março
Neve – acordo por volta das 10:00 e olho pela janela, o telhado está branco, a neve é espessa. O mundo não pára de nos surpreender.
Um artigo da autoria de Fahrad Manjoo (How the US ran out of masks) aborda um tema perturbador, quase incompreensível: os trabalhadores dos cuidados de saúde americanos, assim como os italianos, estão desesperados com a falta de material sanitário (máscaras e ventiladores).
Como é que isso é possível? Como é que é possível – Manjoo escreve, habitualmente, sobre tecnologia – que um país ultra-moderno, o país mais poderoso do mundo, que produz aviões invisíveis que voam a velocidades supersónicas, capazes de disparar sem serem detectados pela protecção anti-aérea do inimigo, como é que é possível que esse mesmo país não seja capaz de fornecer equipamento protector a todos os médicos e serviços de urgência envolvidos nesta acção de saúde em grande escala, permitindo-lhes salvar da morte o maior número que estiver ao seu alcance?
A resposta de Manjoo é simples e crua: “O motivo pelo qual não dispomos de equipamento protector em quantidade suficiente prende-se com um conjunto de patologias capitalistas bem Americano – a atracção irresistível pela produção a baixo custo em países remotos, e a ausência de um pensamento estratégico, tanto ao nível político (nacional) como na indústria dos cuidados de saúde, capaz de considerar com a necessária seriedade as sucessivas vulnerabilidades derivadas dos incentivos para reduzir custos.”
Assim, 80% das máscaras vêm da China. Nenhum dos países que professam a teologia do mercado e da competição produz máscaras. Porque haveriam de o fazer, quando têm a oportunidade de investir em produtos que geram elevados lucros? Os objectos de baixo custo acabam, então, a ser produzidos em países onde os custos do trabalho são igualmente muito baixos.
Manjoo escreve que existe um stock de apenas 40 milhões de máscaras disponíveis nos Estados Unidos, enquanto se espera que os médicos venham a precisar de 3.5 biliões de máscaras para fazer face aos próximos meses da epidemia. Logo, a maior potência militar do mundo possui apenas 1% das máscaras de que necessita. Companhias que podiam começar a produzir este objecto, tão simples e tão raro, dizem que levariam alguns meses para se prepararem para a produção em massa. O suficiente para o vírus fazer de qualquer grande cidade Americana um lazaretto.
Circula uma teoria na web segundo a qual o vírus foi produzido artificialmente por soldados americanos, com o objectivo de atingir a China. Se isso fosse verdade, teríamos de admitir que os rapazes do exército Americano são bastante imprevidentes. A cada dia que passa, cresce o sentimento de que os Estados Unidos da América vão ser o país onde a epidemia vai provocar maiores estragos.

27 de Março
Deviam ser 11:00, quando me pus a caminho na direcção da farmácia. Passavam duas semanas desde a última vez que saíra de casa.
Chuviscava, mas eu usava um capuz preto a cobrir-me a cabeça. Segui a pé, pela via del Carro, depois atravessei a piazza San Martino, e não pude deixar de reparar na fila em frente do supermercado na via Oberdan. Continuei pela via Giotto e deparei-me com o cenário, incrível, da via Indipendenza totalmente abandonada. Enfiei pela via Manzoni até, finalmente, apanhar a via Parigi e alcançar a farmácia Regina, onde tinha encomendado os medicamentos para a asma e para a hipertensão que me começam a faltar. Poucas pessoas nas ruas: em frente à farmácia, uma fila de não mais que cinco pessoas. Todas com máscaras, umas verdes, outras pretas e outras brancas. Uma espécie de dança silenciosa, respeitando sempre a distância de segurança de dois metros.
A União Europeia exala um fedor a putrefacção. Cheira a avareza, mesquinhez e desumanidade. Desde aquele verão de 2015, em que todos testemunhámos a arrogância e o cinismo no espectáculo da humilhação a que o Eurogrupo submeteu Alexis Tsipras e o povo Grego (e a sua vontade democraticamente expressa), e que resultou na imposição de medidas devastadoras para a vida do país. Desde aí que dou a União como morta, e penso nos seus líderes como gente ignorante e rude – incapaz de qualquer tipo de pensamento ou sentimento.
A violência desencadeada contra os migrantes desde esse mesmo ano, juntamente com o encerramento de fronteiras, a criação de campos de concentração, a entrega dos refugiados ao Sultão Turco e aos torturadores Líbios, convenceram-me não apenas de que a União Europeia é um projecto falhado, mas de que a população Europeia, na sua esmagadora maioria, é incapaz de assumir a sua responsabilidade pelo colonialismo e, consequentemente, está pronta para aceitar políticas que passam pela instalação de campos de concentração, com vista a proteger a sua miserável prosperidade.
Mas neste encontro, em que todos os representantes dos países Europeus deveriam discutir a proposta Italiana de partilhar o impacto económico da crise sanitária – parece-me que foram ultrapassados todos os limites da decência.
Quando confrontados com a proposta da emissão dos chamados coronabonds ou, em todo o caso, com a possibilidade do recurso sem limitações a medidas de intervenção que não se transformem em dívida para os países mais fracos, os representantes da Holanda, Finlândia, Áustria e Alemanha responderam de forma desprezível. O que eles acabaram por dizer, em resumo, foi – adiamos tudo por catorze dias. Vamos esperar até quando a epidemia tiver atacado nos países Nórdicos de modo tão violento como em Itália e Espanha. Voltamos a falar nessa altura. Se não for assim, esqueçam.
Não serão as palavras exactas pronunciadas por Mr. Rutte, o Holandês, e os seus comparsas. Mas é esta a razão que explica a procrastinação.
Boris Johnson testou positivo – apanhou o vírus. O seu ministro da saúde também. Como não gosto de me rir das desgraças dos outros, prefiro não comentar. Basta recordar o que o próprio Johnson dizia, há cerca de dez dias atrás – “infelizmente, muitos dos nossos entes queridos morrerão”, dando assim início à teoria segundo a qual meio milhão de pessoas teria de morrer para permitir que o nosso sistema imunitário criasse resistência ao vírus. Uma selecção natural, filosofia herdada do Nazismo Hitleriano através do neoliberalismo Tatcheriano, e que tem governado o mundo ao longo dos últimos quarenta anos.
E que, por vezes, não funciona assim tão bem.

28 de Março
Na escuridão em tons de azul de uma imensa e vazia Praça de São Pedro, reconhecemos a figura branca de Francisco, de pé sob uma grande tenda iluminada. Fala a um povo que não se encontra presente, mas que recebe as suas palavras à distância. Abre os braços na direcção das colunas que envolvem Roma e o mundo. O seu discurso é impressionante, de um ponto de vista teológico, filosófico e político.
Diz-nos que este flagelo não é um castigo de Deus. Deus não castiga as suas crianças. Francisco fez da misericórdia a marca do seu papado, desde a sua primeira intervenção pública, depois de ascender ao trono de São Pedro, numa entrevista publicada em La Civiltà Cattolica.
Se isto não é uma punição divina, então o que é? Francisco responde – é um pecado social que nós próprios cometemos. Pecámos contra os nossos semelhantes, pecámos contra nós próprios, contra os nossos entes queridos, contra as nossas famílias, contra os migrantes, os refugiados, os pobres e os trabalhadores precários.
E depois, acrescenta, cometemos o erro de acreditar que podíamos ser saudáveis numa sociedade doente.
Às 11:00, telefonou-me o meu primo Tonino, que também é médico (estará o mundo cheio de médicos e eu nunca tinha reparado?), para me perguntar como é que eu estou, no seu tom habitual, ofegante e ansioso, e contou-me de novo uma daquelas anedotas pelas quais é famoso na família – “qui gatta ci covid” (gatta ci cova é uma expressão Italiana para “andar a tramar alguma”).

29 de Março
Peo é um amigo, um companheiro; é também um médico e foi o meu médico por muitos anos. Tratou repetidas vezes a minha saúde, e as suas frequentes crises. Quando eu visitava a sua clínica, encontrava sempre uma fila que se estendia por um quilómetro, constituída por pacientes de todas as cores e feitios, esperando horas para ser atendido – até que ele me examinava, emitindo diagnósticos profundos como poemas, precisos como bisturis, e sugerindo os mais variados tratamentos alternativos.
Quando se retirou, há cerca de seis meses, partiu para o Brasil: onde vivem a sua companheira e dois filhos mais velhos, e onde se encontrava a trabalhar na viragem do século. Há poucas semanas, regressou de repente a Itália, onde vive o seu filho mais novo Jonas, que se preparava para terminar o curso (e acabou por fazê-lo, mas através do Skype).
Peo planeara viajar imediatamente a seguir mas acabou por ficar retido, como toda a gente. Agora vive sozinho, num pequeno apartamento na via del Broglio, e esta manhã passou à minha janela e chamou-me. Vim até à varanda e conversámos durante alguns minutos. Em seguida, afastou-se num passo apressado.
O primeiro-ministro Português, António Costa, convocou uma conferência de imprensa para responder ao ministro das finanças Holandês, Wopke Hoekstra, que sugeriu – durante o Conselho Europeu da bancarrota, de quinta-feira – que uma Comissão lançasse uma investigação sobre as razões (obscuras?) que levariam certos países a dizer que não possuem margem orçamental para lidar com a emergência do coronavírus, apesar de a Zona Euro estar a crescer há sete anos consecutivos. Hoekstra não mencionou nomes, mas a referência a Itália e Espanha era evidente: na qualidade de países da União mais afectados até ao momento, e enquanto líderes do “grupo dos nove” que defendem a solução dos Eurobonds. Assim, o que Hoekstra quer é basicamente um julgamento contra aqueles países onde a pandemia atacou com mais força.
“Esse discurso é repugnante no quadro de uma União Europeia” – afirmou o líder socialista, referindo-se às palavras de Hoekstra. “E digo repugnante porque nós não estávamos preparados, ninguém estava preparado para fazer face a uma crise económica como a que tivemos em 2008, 2009, 2010 e nos anos que se seguiram. O vírus, infelizmente, atingiu-nos a todos por igual. E se nós não nos respeitamos todos uns aos outros, e se nós não compreendemos que perante um desafio comum temos também de ter a capacidade de responder em comum, então ninguém percebeu nada do que é a União Europeia. […] Esse tipo de resposta é absolutamente irresponsável, é uma absoluta mesquinhez que mina completamente aquilo que é o espírito da União Europeia. É uma ameaça ao futuro da União Europeia. E se a União Europeia quer sobreviver”, concluiu Costa, “é inaceitável que um responsável político, seja de que país for, possa dar uma resposta dessa natureza”.
Recebi uma carta pelo correio. No seu interior, continha um postal e dentro do postal, não assinado, encontrei um pequeno pedaço de haxixe. Talvez seja de alguém que leu o meu primeiro diário da psico-deflacção, onde eu dizia que estava prestes a esgotar o meu escasso “material”. Do fundo do coração, obrigado.
Nos stands de jornais, a foto do presidente da Albânia, Edi Rama.
Num gesto de enorme nobreza, enviou trinta médicos do seu pequeno país para Itália. Acompanhou-os ao aeroporto onde, rodeado de uns tipos grandes envergando macacões brancos, proferiu um discurso em Italiano. Disse que mais do que manter os seus médicos na Albânia como reservas, preferia que eles viessem até aqui, onde a ajuda é mais necessária. Encontrou ainda maneira de mencionar que os albaneses estão gratos aos italianos (está a ser demasiado generoso) por os terem recebido e acolhido durante os seus anos mais difíceis, e por isso têm todo o prazer em vir ao nosso auxílio – ao contrário de outros que, bem mais ricos do que nós, viraram as costas.
Bravo, Edi: bom, velho amigo.
Conhecemo-nos em Paris, em 1994, estava ele a viver em casa dos meus amigos.
Disse-me, então, que tinha estudado na Academia de Belas Artes em Tirana e recordou um episódio bastante cómico. Como estudante, no tempo da autarquia absoluta de Enver Hoxha, tinha o desejo de ver as obras desse famoso Picasso de que tanto ouvira falar. Um dia, o director da academia levou-o ao seu gabinete, fechou a porta à chave e tirou um livro de uma prateleira: abriu-o nas páginas dedicadas a Picasso e, segurando o livro entre as mãos, mostrou ao jovem as obras extremamente secretas que este queria ver.
Em Paris – Edi Rama era pintor – descia ao metro durante a noite, arrancava cartazes publicitários e pintava sobre eles. Tenho comigo um dos seus trabalhos, no qual um pé esverdeado esmaga um microfone multicolorido. Surrealismo post-tech.
Depois, em 1995, veio a Itália, quando eu estava a trabalhar no consórcio do campus Universitário. Convidei-o, então, para dar uma conferência na Aula Magna de Santa Lucia. A sala encheu-se de Albaneses e estava instalada a confusão, com toda a gente a falar ao mesmo tempo, mas no momento em que Edi entrou fez-se silêncio.
Logo depois, Edi regressou à Albânia, a tempo da insurreição de 1996, que aconteceu no seguimento do colapso financeiro originado pelo esquema de Pirâmide – e foi por esta altura que o retornado do exílio se tornou ministro da cultura.
Convidou-me a ir visitá-lo. Cheguei a Tirana num avião Russo. O aeroporto não era diferente de estar no mercado, velhas vestidas de negro que recebiam os seus filhos e maridos com gestos exuberantes, animais, gritos – uma louca comoção. No exterior, encontrava-se à minha espera um carro preto com vidros fumados.
Atravessámos a cidade, à época toda cinzenta, quase parecia assombrada. Anos depois, quando Edi se veio a tornar presidente da câmara, eles pintaram todas as paredes de diferentes cores.
O carro preto com os vidros fumados conduziu-me ao ministério da cultura, onde me devia reunir a Edi.
O ministério, por dentro, era o mais completo vazio. Nada, nem sequer cadeiras havia para sentar, apenas pó e corredores pintados numa tinta amarela descascada. Edi esperava por mim num quarto vazio, vestido como um explorador Inglês em África: calções brancos de linho, pela altura do joelho, e casaco de bolsos largos e verdes.
Abraçámo-nos, e ele pediu desculpas pelo ambiente relativamente despido – sabes qual é o meu orçamento? Zero, vírgula, zero zero. Os Albaneses eram extraordinariamente pobres, mas entre eles encontrava-se uma quantidade de gente cultivada, cosmopolita e criativa. Entretanto, disse-me Edi, Veltroni prometeu-me que me enviaria algum dinheiro – espero que envie mesmo.
Albergou-me numa casa proletária de um amigo dele, onde fumavam erva o dia inteiro. Passei uma semana maravilhosa em Tirana, conheci um grupo da Toscânia que trabalhava para uma organização voluntária. Depois, apanhei o autocarro e deixei Tirana para visitar a cidade de Berat, a cidade com as quinhentas janelas. Durante a viagem, um tipo convidou-me para sua casa e mostrou-me as duas ou três kalashnikovs que guardava debaixo da cama.
Gostaria de voltar a Berat mas pergunto-me, por vezes, se me vai ser permitido viajar no futuro que temos à nossa frente. Confesso que é a questão que, durante estes dias silenciosos, mais me atormenta.
Chegam-nos imagens alarmantes, vindas da índia, na sequência do confinamento decretado pelo governo. Longas filas em frente dos bancos, colunas massivas de pessoas que abandonam as cidades para retornarem à sua aldeia. Aqueles, em especial, que viviam de trabalhos ocasionais encontram-se agora em condições de miséria total. A ditadura neoliberal dos últimos trinta anos criou, por todo o lado, as condições para a precariedade social e para a fragilidade física e mental.
Um julgamento de Nuremberga será necessário, mais cedo ou mais tarde, para gente como Tony Blair, Matteo Renzi e Norendra Modi. O neoliberalismo que inocularam nas nossas células causou destruição em profundidade, atacou a própria raiz da sociedade – o genoma linguístico e psíquico da sociedade.

30 de Março
Micah Zenko escreve, no Guardian, que a propagação do vírus é o maior falhanço de segurança em toda a história Americana. As notícias que nos chegam de Nova Iorque são, cada dia, mais dramáticas. O Governador Cuomo toma decisões que contradizem, explicitamente, qualquer uma das alegações de Trump.
O corte entre a Presidência e os centros de poder metropolitanos aprofunda-se todos os dias.
Um editorial do New York Times chamou-me a atenção: The silent spring, de Roger Cohen. À primeira vista, uma peça de literatura civil em tom algo lírico. Mas funciona, acima de tudo, como um grito de alerta para o futuro político (e sanitário) dos Estados Unidos:
“Esta é a primavera silenciosa. O silêncio abateu-se sobre o planeta, ao ponto de quase o ouvirmos a girar em torno do sol: damo-nos conta da sua insignificância e, por uma vez, experimentamos a solidão e a impermanência de estar vivo.
Esta é a primavera dos medos. Uma garganta que arranha, um nariz que funga, e a mente dispara. Vejo uma ratazana solitária movendo-se lentamente ao crepúsculo na Front Street, em Brooklyn, um saco do lixo esventrado por um cão, e sou visitado por visões apocalípticas de vermes e sujidade.
Transeuntes de máscara, espalhados por ruas vazias, fazem pensar nos sobreviventes de uma bomba de neutrões. Um agente patogénico com um milésimo da amplitude de um cabelo humano, o novo coronavírus coroado de espinhos, submeteu a civilização e pôs a imaginação em movimento.
Da minha janela, olhando para lá do East River, vejo passar um carro de vez em quando na FDR Drive. O volume de trânsito recorda-me a Malecón, a marginal em Havana, há doze anos atrás, onde também não via passar mais do que um ou dois carros por minuto. Mas isso era Cuba e os carros eram beldades dos anos 50!
É um tempo que nos exige reprogramar toda a nossa existência partir do zero. Em França, existe um website para indicar a quem deseja fazer exercício até onde se estende o raio de um quilómetro desde casa, no interior do qual lhes é permitido deslocarem-se. Não deixa de ser uma maneira de medirmos o quanto encolheram os nossos mundos.”
Depois de alguns bons momentos de inspirado lirismo, Cohen vai ao cerne da questão. E a sua análise é interessante, se pensarmos que Cohen não é um Bolchevique mas um pensador liberal esclarecido, distante de qualquer socialismo à Sanders.
A tecnologia que foi aperfeiçoada para permitir aos ricos globalizarem os seus privilégios criou igualmente o mecanismo perfeito para globalizar o pânico que lança a finança em queda livre.
Façam as coisas de maneira diferente depois de terminado o flagelo, uma voz mística parece murmurar, de maneira mais igual, mais ecológica, com mais respeito pelo ambiente, ou cairão perante novas investidas. Para a próxima, a Internet colapsará. A passagem do mundo real ao mundo virtual a mundo nenhum – será, então, completa.”
Mas Cohen vai mais longe:
“Em ano de eleição, é impossível testemunhar a mistura de total incompetência, egotismo devorador e sinistra desumanidade com a qual o presidente Trump tem respondido à pandemia do Covid-19 e não recear alguma forma de corona-golpe. O pânico e a desorientação são precisamente os elementos nos quais o aspirante a ditador se banqueteia. A ameaça de uma derrapagem autocrática Americana em 2020 é tão real como o próprio vírus.
É este, agora, o mundo de Trump: disperso, incoerente, não científico, nacionalista. Incapaz de uma palavra de compaixão para com o fustigado aliado Italiano (enquanto isso, a Força Aérea Americana larga discretamente em Memphis um carregamento de zaragatoas nasais, vindo de Itália). Sem uma palavra para o Conselho de Segurança das Nações Unidas, em falta de liderança Americana. Sem uma palavra sequer da mais simples decência, da qualidade que Camus prezava. Em vez disso: lamúria, mesquinhez e fanfarronice. O único índex que Trump compreende é o Dow.”  
No mesmo jornal, porém, leio que o consenso em torno de Trump nunca foi tão alto: a maioria dos americanos, e em especial o país da segunda emenda, aqueles que guardam armas nas suas casas, estão do seu lado, sentem-se reconfortados pela sua arrogância.
Maus augúrios pairam sobre o futuro da América.

1 de Abril
No site do Institute of Network Cultures – o centro de investigação, com sede em Amsterdão, fundado por Geert Lovink – leio um artigo assinado por Tsukino T. Usagi, The Cloud Sailor Diary: Shanghai Life in the Time of Coronavirus. Consiste num relato do último mês em Shanghai, contado por um jovem precário num tom introspectivo e singular. Transcrevo um excerto:
“Fui numa excursão às instalações do porto no dia que se seguiu ao anúncio oficial a confirmar a pandemia. A vista sobre o rio Huangpu estava enevoada, devido à forte poluição no ar. Belo. Tóxico. Uma visão apocalíptica, sem dúvida.
Ao cair da noite, comecei-me a sentir mal disposto. Uma constipação ou uma gripe, pensei. No dia seguinte, fui trabalhar como habitualmente. Piorei. Os sintomas incluíam febre, garganta irritada e dificuldade em respirar. Exactamente aquilo que aparecia descrito nas notícias sobre a infecção por coronavírus. ‘Será assim que vou morrer?’ Tinha todo o género de medos. Não entrei em pânico, no entanto. Pus-me a reconstruir cenários na minha cabeça, procurando identificar o que poderia ter dado origem aos sintomas: encontrava-me numa carruagem do metro, repleta de passageiros desconhecidos. Alguns deles poderiam ter-me transmitido o vírus. Uma colega minha tossia pelo escritório há três semanas consecutivas. Toda a gente tinha sido exposta aos germes que ela expelia pelo ar. A convivência faria o resto. O ar estava tão poluído. Era terrível. Ouvia-se sempre alguém a tossir. O maldito vento não parou de soprar, o dia inteiro. Os meus pulmões pareciam que iam explodir, sentado no barco, enquanto atravessava o rio. Antes do Coronavírus, a poluição no ar e o vento poderiam ter-me matado com igual facilidade. Porque é que, neste momento, a única ameaça no ar – literalmente – parece vir do Corona? Terão as demais ameaças, simplesmente, desaparecido?
O Covid-19 influenciou a nossa percepção do ar que nos circunda. Uma vez que durante a estação mais poluída do ano quase todos nos encontrávamos a fazer quarentena em nossas casas, a poluição do ar e os outros problemas ambientais pareceram deslocar-se para longe da vista do público. Longe da vista, no entanto, todos estes problemas persistem. Com custos que ainda estão para ser avaliados e com os quais ainda teremos de aprender a lidar. O trauma pós-quarentena precisa de ser tratado, mas não desaparecerá rapidamente da paisagem mental do indivíduo.
[…] A civilização humana assenta sobre uma máquina de movimento perpétuo constituída por canais de reprodução fortuitos. A fábrica de reprodução global não tem quartel-general. É a infra-estrutura mais descentralizada, mais despropositada e mais controlada. A Índia é conhecida globalmente como uma fábrica de reprodução de trabalho em tecnologia (IT) barato, cuja contribuição para Silicon Valley e outras regiões tech foi subestimada. Por estes dias, os cientistas andam a investigar novas formas de ultrapassar a angústia perante a morte. Chegará o tempo em que o mundo vai preferir bebés mecânicos a bebés humanos. Toda a gente começará a transferir consciência para a nuvem omnipresente. Não impedirá a extinção da humanidade de acontecer.”

2 de Abril
São Francisco de Paula. O dia do meu nome.
“A voz é a cunha que rompe o silêncio, no mundo lá fora e no interior do deserto digital”, escreve-me o meu amigo Alex, no fim de uma reflexão bastante densa e enigmática.
Ainda numa outra mensagem, Alex fala-me da Radio Virus, emitindo a partir dos laboratórios desterritorializados do [Centro Social] Macao, em Milão. “É pena que esteja tão pouco tempo no ar”, diz Alex. Que possa transmitir mais. Podem ouvi-la aqui: https://radiovirus.org/  
Entretanto, rebentou a controvérsia entre a região da Lombardia e o governo central, acerca de quem deve ser responsabilizado pelo quê. Sem surpresa, mestres do cinismo como Renzi e Salvini continuam a fazer aquilo que tão bem sabem fazer, nomeadamente, especular sobre a miséria alheia com o objectivo de obter visibilidade. Mas é uma discussão que dispensávamos, neste momento. Não apenas porque no pico da pandemia, faríamos obviamente melhor em nos focarmos no que precisa de ser feito, antes de descarregarmos naqueles que não fizeram o seu trabalho como deviam. Acima de tudo, porque os verdadeiros responsáveis não são aqueles que, durante estes meses, tentam fazer o seu trabalho no meio de uma situação objectivamente difícil.
A responsabilidade recai sobre quem, ao longo dos últimos dez anos, ou até dos últimos trinta, desde Maastricht, impôs privatizações e cortes nos custos do trabalho.
Graças a estas políticas, o sistema de saúde público viu-se progressivamente debilitado, as unidades de cuidados intensivos tornaram-se insuficientes, reduziu-se o número das instalações de saúde territoriais [o equivalente aos centros de saúde, em Portugal] cortando-se-lhes o financiamento, e os pequenos hospitais foram forçados a fechar.
No fim desta história, tentaremos culpar um qualquer responsável oficial ou gestor. A esquerda acusará a direita e vice-versa. Não vamos cair na armadilha. É preciso ser radical de outra maneira. A direita e a esquerda são igualmente responsáveis pela devastação provocada pelo dogma neoliberal, que partilham entre si.
Acima de tudo, vai ser necessário mobilizar recursos para a saúde pública e para a investigação. Vai ser necessário identificar onde se encontram, neste momento, esses recursos; cortar dramaticamente na despesa militar, redireccionando esse dinheiro para a sociedade; expropriar sem qualquer tipo de compensação aqueles que se apropriaram de bens públicos como auto-estradas, caminhos-de-ferro e fornecimento de água; redistribuir rendimentos através de impostos sobre a propriedade.
Este programa deve ser consolidado, estendido e expandido de modo a envolver associações, pessoas, instituições.

3 de Abril
Iniciei a leitura do monumental A History of the American People, de Paul Johnson, um historiador de direita extremamente nacionalista, que faz a apologia da missão Americana.
Procuro reconstituir os filamentos nos quais se teceu a história Americana, no momento em que esse quadro se desmorona a grande velocidade – ou dá essa impressão, pelo menos.
Começou depois do 11 de Setembro, 2001, quando o génio estratégico de Bin Laden e a inépcia táctica de Dick Cheney e George Bush empurraram o maior gigante militar de todos os tempos para uma guerra contra si mesmo, a única da qual podia sair derrotado. Perdeu-a e continua a perdê-la, a tal ponto que esta guerra interna (social, cultural, política, económica) vai acabar por destruir o monstro por dentro. Desde 2016, os Estados Unidos encontram-se à beira de uma guerra civil.
Entretanto, parece que Trump se prepara para ganhar as eleições. Metade do povo Americano está com ele, mais coisa menos coisa. A mesma metade que tem corrido, recentemente, a comprar armas – como se não possuíssem já as suficientes.
Enquanto isso, a outra metade (desde o FBI, parte do exército, o estado da Califórnia, o estado de Nova Iorque, a vários outros estados e, especialmente, as grandes cidades) está aterrorizada, ofendida com o comportamento errático e agressivo do presidente e sente-se, presentemente, abandonada à fúria do vírus, que ataca em força nas grandes concentrações metropolitanas e talvez menos nas pequenas cidades do Midwest.
Trump disse que não será generoso com aqueles governadores que não foram simpáticos com ele. A Califórnia, é um facto, não recebe nenhum tipo de auxílio médico da parte do poder em Washington. Pergunto-me se a Califórnia não deveria, neste momento, recusar-se a contribuir para o orçamento do estado federal.
Num país em que o mercado de trabalho é uma selva impiedosa e desregulada, dez milhões de trabalhadores foram atirados para o desemprego no espaço de três semanas. Dez milhões – e isto é só o início.
É claro que não posso saber como as coisas vão evoluir, mas acredito que depois de uma pandemia que terá efeitos devastadores na América mais do que noutro lado qualquer, graças a uma cultura individualista e de iniciativa privada (um convite para a festa, na óptica do vírus) – acredito que alguma coisa, em grande, se vai passar.
O país da segunda emenda contra as grandes cidades, e vice-versa. Uma guerra de secessão não-homogénea?
Estava a ler o La Repubblica esta manhã, na casa de banho, quando dei com a fotografia dele num cabeçalho da página 3, por entre uma lista de 68 médicos que morreram durante o exercício das suas funções na luta contra a epidemia.
Valter Tarantini era o mais belo exemplar da secção D, no liceu Minghetti. Certamente o mais bonito, não havia competição: louro, alto, olhar inteligente, sempre a sorrir, irónico, alegre e sem uma única preocupação, gostava de mim apesar do meu ar de poucos amigos e do facto de andar a ler o Capital de Marx, ou talvez fosse por isso que gostava de mim. Fomos colegas de turma no segundo e no terceiro ano. Eu e ele, Pesavento e Terlizzesi sentávamo-nos na fila de trás, um quarteto anarcóide – éramos todos muito diferentes mas éramos amigos.
Valter vivia numa boa casa da burguesia, no quinto andar da via Rizzoli 1, mesmo em frente da torre Garisenda. Eu aparecia muitas vezes, durante a tarde, para lhe explicar uns pedaços avulsos de filosofia, porque ele não queria ler o livro de Ludovico Geymonat, tinha coisas mais importantes em que pensar do que Kant e Hegel – gostava bastante de raparigas e dizia que queria ser ginecologista, e tornou-se mesmo ginecologista – imaginem. Era médico em Forli, e é um dos sessenta e oito médicos que morreram enquanto faziam o seu trabalho na epidemia.
Enquanto olhava para a minúscula fotografia, não pude deixar de sentir um nó na garganta. O doutor Tarantini tinha setenta e um anos de idade mas dava para ver, pela fotografia, que era ainda bonito, com o seu sorriso afável e ligeiramente insolente. Desde o nosso exame final, no verão de 1967, nunca mais o vi. Agora sinto-me mal e tenho vontade de chorar, porque há dez anos atrás não fui ao encontro dos ex-alunos do liceu, e sei que ele perguntou por mim. Nunca mais o vi, mas lembro-me dele como se fosse ontem – a coisa mais idiota que me podia ocorrer neste momento. “Como se fosse ontem”… mas quando penso nisso, a última vez que estivemos juntos foi há cinquenta e dois anos atrás e nunca mais pensei nele até esta manhã, na minha casa de banho, quando encontrei a minúscula fotografia na terceira página do La Repubblica.


Franco “Bifo” Berardi
Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de destaque do operaísmo italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação com os media e a produção cultural. Fundou a Rádio Alice, primeira rádio livre em Itália (1976-1978), e a revista A/traverso (1976-1981), que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária. Exilado em Paris, trabalhou com Felix Guatari em esquizoanálise. Desde os anos 1990 que o seu trabalho tem incidido sobre a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e capitalismo.

Nota da edição
O Diário da psico-deflacção resulta de uma parceria Punkto/Teatro do Bairro Alto, com tradução de Nuno Leão. Franco “Bifo” Berardi esteve em Lisboa em Outubro passado para a abertura deste teatro. A sua conferência está disponível em podcast no site do TBA, assim como um glossário experimental gravado aquando da sua passagem pela cidade. A primeira e segunda parte do Diário estão disponíveis na íntegra no site do Punkto.

Imagem
Piazza della Scala em Milão (Via New York Times)

Ficha Técnica
Data de publicação: 04.05.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos