O ocupante e o ocupado • Ghassan Salhab

 

 

A «questão palestiniana» não é uma questão da actualidade, é o quotidiano, constantemente remetido para fora do radar. Algo que se gosta de manter aí, para não ouvir falar disso.

— Anónimo durante uma manifestação em Haifa, Maio de 2021

 

Ainda que a natureza do conflito israelo-palestiniano (e, de modo geral, o conflito israelo-árabe) seja supostamente tão complicada, somos hoje obrigados a levantar, uma e outra vez, com urgência, as mesmas questões, básicas e elementares. Os territórios da Cisjordânia, de que Jerusalém Oriental faz parte, os Montes Golã e as Quintas de Sheb’a estão ou não ocupados? As colónias e outras instalações na Cisjordânia e nos Montes Golã são ilegais ou não? As anexações de Jerusalém Oriental e dos Golã são ilegais ou não? A decisão de proclamar Jerusalém como a capital de Israel é ou não é ilegal? O desvio de água, o racionamento diário, o cerco dos territórios, as punições colectivas, a incessante expropriação de terras e casas palestinianas pelos famosos motivos de segurança ou em nome de supostos textos antigos, são totalmente ilegais ou não? Os «assassinatos selectivos», a prisão de milhares de palestinianos, os raptos de vários dos seus líderes são ou não totalmente ilegais? Isto tudo sem mencionar o bloqueio interminável e impiedoso da Faixa de Gaza. O número de resoluções das Nações Unidas que os vários governos israelitas ignoraram é, no mínimo, impressionante; um recorde na história desse organismo. Igualmente impressionante é o número de vezes que os Estados Unidos utilizaram o seu poder de veto no Conselho de Segurança, sempre que esteve em causa uma resolução, ainda que ligeiramente, desvantajosa para Israel. Recordemos que estes territórios estão ocupados desde Junho de 1967 e que a tragédia dos palestinianos remonta ainda mais longe até à catástrofe de 1948, que assistiu à expulsão e deslocação forçada de uma grande parte da sua população, bem como à destruição de centenas de cidades e aldeias, impedindo assim qualquer possível regresso – factos que muitos continuam a negar descaradamente, apesar das inúmeras provas fornecidas, entre outros, por vários historiadores israelitas. A verdade é que o mundo inteiro sabe perfeitamente quem é o ocupante e quem é o ocupado.

Os despejos de famílias palestinianas no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, não são o resultado de uma disputa imobiliária, mas de uma estratégia clara para expulsar da cidade o que resta de casas de propriedade palestiniana. E, claro está, colocar no seu lugar famílias colonizadoras israelitas o mais rapidamente possível. Quer sejam de extrema-direita ou simplesmente de direita, nada muda numa realidade irreversível e irrevogável. Daí o recurso, no mínimo desonesto, por parte do sistema judicial israelita, a leis de restituição de bens que se aplicam apenas aos «judeus despojados». Para ser preciso: durante o ano de 2020, 140 famílias palestinianas perderam as suas casas em Jerusalém Oriental. Uma doutrina de Estado. Estas últimas expulsões vêm juntar-se à recusa de Israel em permitir aos palestinianos de Jerusalém Oriental votarem nas eleições que está a tentar organizar o dúbio binómio Fatah-Hamas, cujos líderes despóticos, incompetentes e corruptos, são cada vez mais censurados pelos manifestantes. De cidade em cidade e, desta vez, particularmente em Israel, de Haifa a Jerusalém, passando por Jaffa, Nazaré, Lod, Acre, e muitas outras cidades e aldeias, a raiva espalhou-se, quebrando o muro do silêncio. E se estas manifestações parecem assemelhar-se a tantas outras manifestações em todo o mundo, com os manifestantes de um lado e do outro as forças de repressão, se olharmos com atenção, podemos ver soldados das FDI a entrar em apartamentos, levando cidadãos à força, e colonos patrulhando as ruas de armas nas mãos, durante a noite.

As expulsões planeadas de 300 residentes do bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém, foram a última gota de água num copo já a transbordar. Desde que chegou ao poder, em 2009, Benjamin Netanyahu e as suas várias coligações continuaram a expandir a colonização na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, acelerando-a a um ritmo infernal durante os últimos anos. E desde que Jerusalém foi declarada a capital de Israel, sob o silêncio compremetedor da comunidade internacional incluindo países árabes, a população palestiniana tem ficado, mais do que nunca, sozinha. O gatilho não foi o aviso de despejo ou a proibição repetida de acesso à Mesquita de Al-Aqsa. A revolta estava a fermentar.

O melhor é voltarmos atrás no tempo, porque estando no ponto em que estamos não era difícil, para quem se preocupasse em olhar com atenção, perceber que aqui estaríamos novamente e que tudo não poderia senão piorar. Logo no início do século XIX, os sionistas – por complexo que seja este movimento – não vieram para a Palestina, como ainda se chamava nessa altura, para conhecer um país (ou seja, uma entidade geográfica e humana) e os seus habitantes, para conhecer o seu semelhante, se quiserem, no desejo de encontrar finalmente uma terra de acolhimento para judeus perseguidos, um refúgio de paz, para a partilhar. Não, eles chegaram com a firme intenção de uma reapropriação, em nome da dita terra prometida, do dito direito de retorno do «povo de Israel», e isto mais de dois mil anos depois, como se a humanidade fosse uma coisa imutável, como se, entenda-se, fossem de facto os puros descendentes directos das famosas doze tribos, como se devêssemos tomar por garantidas estas fabulosas histórias de patriarcas, profetas, messias e outras eleições divinas, e ao mesmo tempo varrer para o lado as muitas outras tribos da região, as suas lendas e a sua História, para não mencionar as numerosas conversões ao judaísmo. Eles, os sionistas, vieram (em primeira instância) da Europa Oriental e Ocidental com o objectivo de criar e estabelecer um Estado judeu, um Estado que reunisse os judeus espalhados por todo o mundo. O renascimento da língua hebraica, para o qual deram um importante contributo, só poderia contribuir para o estabelecimento deste Estado-nação, dando-lhe uma unidade linguística e, sobretudo, pensavam eles, uma inegável coesão simbólica. Para pôr um fim a este mundo judeu «fragmentado»! Tal era a sua ambição, e pouco importava às custas de quem. Assim sendo, tiveram de confiscar tanta terra quanto possível por todos os meios possíveis, uma terra de preferência expurgada, limpa, esvaziada dos seus nativos – lembremo-nos do sinistro slogan «um povo sem terra para uma terra sem povo». Aqui está então uma entidade (longe de estar em maioria entre as várias comunidades judaicas, recordemos) que se apropria gradualmente de um território, ignorando o mais possível a maior parte da sua população (tanto quanto sei, à excepção de alguns casos isolados, os sionistas nunca tentaram realmente falar com os nativos, preferindo negociar com os seus «mestres», os otomanos e depois os britânicos); uma entidade que finge que a outra não existe, mas que afirma (e não deixará de afirmar) alto e bom som que a outra não a quer, que a quer afugentar, que a quer empurrar para o mar. O outro que não existe, que só pode existir como culpado, como carrasco. Sim, está tudo lá, neste formidável trabalho de inversão da História. O agressor desempenhará o papel do agredido e nunca falhará neste papel. O agressor não só rouba ao agredido a terra onde nasceu e cresceu, negando-lhe qualquer passado e qualquer especificidade ao assimilá-lo a um grupo, «os árabes», mas priva-o também do seu próprio estatuto de vítima e dá-lhe a roupa conveniente de terrorista em caso de rebelião, a fim de o isolar ainda mais da comunidade de homens, tal como fizeram os inúmeros torturadores que marcaram a longa e trágica história dos judeus – uma  história trágica da qual o sionismo certamente surgiu, mas que agora pôs ao seu serviço. Como sabemos, durante séculos e hoje ainda, em certas partes do mundo, o judeu foi a vítima designada, o bode expiatório. Mas é preciso acreditar que ser vítima de barbárie, abjecção, obscurantismo, hipocrisia e outras abominações humanas não nos absolve, não nos ilumina de forma alguma. Devemos acreditar que qualquer que seja a sua história, e quaisquer que sejam as excepções, um ser humano continua a ser um ser humano, ou seja, continua a ser capaz do pior. E o pior exige o pior, sempre foi assim.

Sim, mas o Estado de Israel agora existe, é uma realidade, dir-me-ão. É claro que Israel existe, mas que Israel? Quais são os seus limites? Quais são as suas fronteiras ou, pelo menos, quais as fronteiras que estabelece para si próprio? Os limites da repartição de 1947 (que concedia 56,5% do território ao Estado judeu, enquanto a comunidade judaica, apesar da imigração forçada dos últimos vinte anos, representava apenas um terço da população total e possuía apenas 10% da terra; uma repartição que os sionistas, muito mais hábeis do que os árabes, foram capazes de aceitar estrategicamente e que os «Aliados» vitoriosos da Segunda Guerra Mundial impuseram por razões que todos conhecemos)? Os limites que antecederam a derrota árabe de Junho de 1967? As fronteiras que lhe sucederam? No seu diário, Ben Gurion, em 18 de Maio de 1948, escreveu: «Tomemos o exemplo da declaração de independência dos Estados Unidos da América. Não menciona as fronteiras terrestres. Também nós não somos obrigados a delimitar as nossas.»

E o que é feito hoje em dia desses povos indígenas a quem chamamos palestinianos? O que é feito desta população que teimosamente se recusa a dissolver e a desaparecer no limbo da história, como tantos outros povos e outras espécies vivas antes dela? O que é feito desses povos nestes tempos em que todo o tipo de retórica lamentável é usado e abusado, em que causa e efeito, ocupante e ocupado, são ainda confundidos; em que o próprio significado e essência de uma palavra como Colónia é esquecido, em que um reclama do outro precisamente aquilo que lhe nega: o reconhecimento da sua existência? Os sionistas sabiam muito bem que esta terra não era de modo algum «árida, desolada e vazia», sabiam muito bem que estavam a pôr os pés numa região que ainda se curvava e expirava sob o longo jugo dos otomanos, que em breve seriam sucedidos pelos britânicos (que juntamente com os franceses sabiam perfeitamente como manobrar os líderes árabes para se livrarem da Sublime Porta). Suponho que eles tenham pensado que ser dominado era uma segunda natureza para estas pessoas, e por isso se deixariam mansamente «deslocar». É preciso dizer-se que o contexto da época se prestava bem a isso, que não havia nada de incongruente no facto de certas populações estarem subordinadas a outras, serem despojadas, deslocadas, bem pelo contrário. Em qualquer princípio de conquista, o outro conta tão pouco que não passa de um obstáculo mais ou menos incómodo. Pois é disso que se trata, conquistar. Os sionistas chegaram a esta terra com a mentalidade dos conquistadores europeus, dos ocidentais – basta ler o que muitos líderes sionistas, desde Theodore Herzl a Benjamin Netanyahu, Vladimir Jabotinsky, David Ben Gurian, Yitzhlak Rabin e Ariel Sharon, sempre disseram e escreveram. Este Ocidente, que mais do que uma vez os humilhou, os perseguiu, que por pouco não se tornou a sua última morada; este Ocidente que durante muito tempo subjugou vastas áreas do mundo, que conquistou definitivamente três continentes (as duas Américas e a Oceânia) e onde, no entanto, os sionistas encontram praticamente todos os seus únicos aliados – mas não há nada de verdadeiramente paradoxal nisto, o sionismo, repitamos, nasceu e foi forjado no Ocidente, o berço do estado-nação moderno. E não vale a pena sublinhar aqui o desesperante despotismo que caracteriza a maioria dos regimes árabes (para não dizer todos), ou recordar a degenerescência e usurpação de mais do que uma intifada de líderes palestinianos. Não é essa a questão. Isso não absolve os sionistas da sua imensurável responsabilidade neste trágico conflito. Nada pode esconder a falha original que é o Sionismo. É uma dupla falha, evidentemente para com os palestinianos, mas também para com os judeus e o próprio judaísmo.

Cabe agora aos israelitas fazer o luto definitivo do «Grande Israel», tal como a maioria dos palestinianos teve de lamentar a perda da «Palestina histórica». Cabe ao ocupante dar o passo decisivo. Sim, cabe a Israel deixar todos os territórios ocupados, deixá-los sem a mínima excepção e sem a mínima condição (como não ver que Gaza, certamente «evacuada», não é mais do que uma enorme prisão ao ar livre, uma vez que o mar, o céu, assim como a terra – excepção feita a um miserável ponto fronteiriço com o Egipto – são controlados e fechados pelas Tsahal [as Forças de Defesa de Israel]). Então, e só então, poderão os palestinianos e os israelitas colocar um rosto humano, um para o outro, e pensar em como viver com o outro. Não me atrevo aqui a falar de um país binacional, no entanto fundamentalmente inevitável.

 

 

Ghassan Salhab

Cineasta libanês nascido em Dakar, no Senegal, em 1958. Para além de diversos ensaios videográficos, realizou os filmes Beyrouth Fantôme, Terra incognita, The Last Man, 1958 e The Mountain and the Valley, tendo publicado uma recolha de ensaios e artigos sob o título Fragments du Livre du naufrage.

 

Imagem

Refugiados palestinianos na Segunda Nakba, depois da Ocupação israelita de 1967. Sobre a Nakba, ler aqui.

 

Nota de edição

O texto de Ghassan Salhab foi originalmente publicado em francês na plataforma digital lundi matin, #287, a 17 de Maio de 2021. A tradução para português foi feita pelo Jornal Punkto.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 17.05.2021

Edição #31 • Primavera 2021 •