A classe trabalhadora em cada país vive a sua própria vida, realiza as suas
próprias experiências, procurando sempre criar novas formas e alcançar novos
valores que têm origem directa na sua oposição orgânica à sociedade oficial.
CLR James, Grace Lee Boggs, e Cornelius Castoriadis,
“Facing Reality”
1. A
Rebelião George Floyd foi uma rebelião multi-racial, liderada pelo movimento
negro. Sociologicamente, esta rebelião não pode ser classificada como uma
rebelião exclusivamente negra. Rebeldes de todos os grupos racializados lutaram
contra a polícia, saquearam e queimaram propriedades. Isto incluiu pessoas
indígenas, pessoas latinxs, pessoas asiáticas e pessoas brancas.
2.
Esta insurreição não foi causada por agitadores externos. Os dados sobre as
detenções iniciais mostram que a maioria dos detidos habitava as áreas
imediatamente próximas das rebeliões. Se havia pessoas a chegar de carro dos
"subúrbios", isso apenas revela a geografia dispersa da metrópole
americana.
3.
Embora muitos activistas e organizadores tenham participado, a realidade é que
esta rebelião não foi organizada pela minoria de esquerda revolucionária, nem
pelas ONGs ditas progressistas. A rebelião foi informal e orgânica, tendo
origem directa nas frustrações da população negra, de classe trabalhadora, com
a sociedade burguesa, particularmente com a polícia.
4.
Não só o estado-policial foi apanhado desprevenido pelo alcance e pela
intensidade da rebelião, como a sociedade civil hesitou e vacilou também face a
esta revolta popular, que se espalhou rapidamente por todos os cantos do país e
deixou a polícia com receio e em desordem.
5. A
polícia expôs muitas debilidades durante a rebelião. Contra poucas centenas de
manifestantes, os departamentos foram facilmente sobrecarregados e forçados a
concentrar as suas forças em pontos críticos. Cada vez que a polícia chegava a
uma área de conflito, as pessoas retiravam-se e deslocavam-se para outro local
para provocar mais estragos. A estratégia militar convencional, com a sua
ênfase na superioridade do armamento e da tecnologia, falhou em combater uma
série de manobras flexíveis, descentralizadas e rápidas, focadas na destruição
de propriedade.
6. A
fase militante da rebelião aconteceu entre 26 de Maio e 1 de Junho. Após 1 de
Junho, a rebelião não só foi reprimida com força militar, como também
politicamente. Além da repressão policial, militar e do reforço na vigilância,
a insurreição foi politicamente reprimida por elementos da esquerda, que
reagiram às rebeliões culpando agitadores externos. Nalguns lugares, “bons
manifestantes” chegaram ao ponto de deter “maus manifestantes” e de os entregar
à polícia.
7.
ONGs ligadas ao movimento negro, incluindo a Fundação Black Lives Matter, não
mantiveram nenhuma relação com a fase militante da rebelião. Na verdade, tais
organizações tenderam a desempenhar um papel reaccionário, frequentemente
prevenindo a propagação de rebeliões, pilhagens, ou ataques à polícia. ONGs
ligadas ao movimento negro foram a ponta de lança das forças que dividiram o
movimento entre bons e maus manifestantes. A base social dessas ONGs não é o
proletariado negro, mas a classe média negra e, mais importante, um segmento da
classe média branca em processo de radicalização.
8.
Esta rebelião foi sobre a violência policial racista e a desigualdade racial,
mas foi também sobre a desigualdade económica, o capitalismo, a COVID-19,
Trump, entre outros.
9.
Esta rebelião abre uma nova fase na história de Turtle Island. Uma nova geração
experienciou um movimento poderoso e, face às desigualdades e às crises em
curso, é improvável que estas pessoas se acomodem e as aceitem. A rebelião
produziu uma nova subjectividade política — o rebelde George Floyd — iniciando
uma série de processos com muitos desdobramentos possíveis que virão a ser determinados
pelas lutas de classes no presente. O proletariado americano emergiu finalmente
e entrou na história.
10.
Esta rebelião é a ponta de lança na luta contra a pandemia. A rebelião mostra
ao mundo que a luta revolucionária pode acontecer até durante uma pandemia. A
pandemia virá apenas piorar as condições de vida dos povos em todo o mundo e,
como resultado, podemos esperar mais rebeliões em torno do planeta.
11.
A Rebelião George Floyd foi adiada por enquanto. Muitas ONGs e pessoas de
classe média farão algum dinheiro graças aos esforços corajosos dos rebeldes
que lutaram durante a semana. Mas estas rebeliões voltarão. Elas são parte das
lutas de classes em curso, que têm acontecido nos Estados Unidos e a nível
global desde a última recessão global (2008-2013). Agora, a economia mundial
está, uma vez mais, em recessão.
12.
Os protestos diurnos em curso são um produto contraditório da rebelião,
atraindo multidões, mais pessoas de classe média e mais brancos. Esta
composição certamente ajuda a criar uma atmosfera do tipo não-violento e de
“bons manifestantes”, mas isso é inseparável dos líderes negros que defendem
este tipo de políticas. Ao mesmo tempo, a expansão dos protestos diurnos
permite uma maior participação, o que é importante.
13.
As rebeliões nocturnas têm um limite, no sentido em que não atraem sectores
maiores da sociedade para a sua actividade. Motins, pilhagens e ataques à
polícia são a actividade de pessoas jovens e pobres. Muitas pessoas da classe
trabalhadora simpatizaram com isto, mas ficaram em casa. Isto demonstra que os
motins, por si só, não são o suficiente.
14.
Muitas lutas importantes emergiram com este movimento, incluindo trabalhadores
dos transportes recusando-se a colaborar com a polícia. Ainda assim, não é
claro como esta rebelião se articula com as lutas latentes nos locais de
trabalho, as lutas contra o sistema prisional, ou as lutas pela habitação, que
se estão a desenrolar no contexto da pandemia. Parece que há ligações
históricas e futuras a serem feitas. Até que ponto os envolvidos nas lutas
precedentes nos locais de trabalho estarão também envolvidos nas rebeliões? Até
que ponto os rebeldes voltarão ao trabalho e continuarão a luta no trabalho?
15.
Os sindicatos olham frequentemente para os polícias e os guardas prisionais
como trabalhadores que precisam de protecção, em vez de os verem como os
brutamontes armados da burguesia que eles são. Apesar da longa história de
polícias assumindo o papel de fura-greves, ainda há muito trabalho por fazer na
frente trabalhadora no que diz respeito à abolição da polícia e da prisão. Sem
os trabalhadores de transporte, trabalhadores logísticos, trabalhadores
sanitários, trabalhadores médicos e outros, a luta abolicionista está condenada
ao fracasso.
16.
Considerando as baixas taxas de sindicalização, muitas lutas nos locais de
trabalho serão caóticas, explosivas e não-mediadas pelos sindicatos ou por
qualquer outro tipo de organização oficial. Os sindicatos entrarão em cena numa
tentativa de as controlar e cooptar. Podem as lutas nos locais de trabalho
contribuir para as lutas nas ruas? Se puderem, entraremos numa nova fase de
luta.
17.
Com o objectivo de re-consolidar o seu poder e prevenir a revolução, a
burguesia apressa-se a garantir reformas e concessões. Alguns polícias são
despedidos e acusados; os orçamentos de alguns departamentos policiais são
reduzidos; algumas estátuas racistas são removidas; Trump assina uma ordem
executiva fornecendo mais recursos para os processos de responsabilização da
polícia; o Conselho da Cidade de Minneapolis vota a favor do desmantelamento do
seu departamento policial. Esta sequência segue um padrão comum na história do
capitalismo — a classe dominante responde à crise revolucionária
reorganizando-se e reestruturando-se de uma maneira que lhe permita permanecer
no poder.
18.
Aquilo que deve ser feito através da actividade autodirigida do proletariado,
estão outros elementos da sociedade a tentar fazer através de petições, votos,
legislação e alteração de políticas. As reformas são uma meta notável num
sistema de capitalismo racial que prioriza claramente o policiamento sobre a
vida. No entanto, devemos ter em mente que a sociedade burguesa pretende manter
esta rebelião tão limitada quanto possível: reduzindo-a ao problema de George
Floyd, dos cortes no orçamento policial e da redistribuição do orçamento por outras
áreas da sociedade. Mas esta rebelião é sobre algo muito maior. É sobre a
injustiça profunda sentida por um povo que nenhuma soma de reformas pode
extinguir.
19.
A abolição envolve a destruição material do conjunto das infra-estruturas
policiais construídas durante a era do capitalismo racial. A abolição ocorreu
de 28 de Maio a 1 de Junho. Como resultado das rebeliões generalizadas, os
acontecimentos que duraram uma semana desacreditaram e limitaram mais o poder
policial do que muitas décadas de activismo. Aqui vemos o potencial da abolição
no sentido mais amplo, abrindo um breve momento de solidariedade entre as
diferentes fracções racializadas do proletariado, causando uma crise nacional e
abrindo as portas a um novo mundo por um breve momento.
20.
Nem tudo o que teve lugar durante a insurreição foi empoderador e libertador.
Os mesmos problemas que existiam antes continuaram a existir durante a rebelião
— racismo, transfobia, homofobia, competição pelos recursos escassos. Nada
disto desaparece subitamente numa rebelião. O trabalho crucial de construir um
novo mundo está ainda por fazer.
21.
Temos ainda de explicar o significado aprofundado desta rebelião. O conteúdo do
movimento Black Lives Matter tem a ver somente com aqueles que são racializados
como negros, ou poderá a luta negra assumir um conteúdo maior?
22.
As comparações entre esta rebelião e o que aconteceu em 1968 estão equivocadas.
Esta rebelião é diferente em muitos níveis. São presidentes de câmara negros e
comissários de polícia negros que governam em muitas cidades. Foi um
proletariado multirracial que se rebelou.
23.
Pode o proletariado negro liderar outras fracções proletárias racializadas nos
próximos anos? Esta é uma questão que remonta um século com Du Bois, Haywood,
James, Jones e Hampton, sendo que todos tentaram criar várias coligações com
outras fracções deste país e além-fronteiras, na tentativa de derrotar o
capitalismo e o império racial. Todos eles sabiam que o proletariado negro
podia despertar uma ampla rebelião, mas não conseguia derrotar sozinho os seus
inimigos.
24.
A unificação do proletariado numa luta comum para eliminar o capitalismo é a
única esperança que a humanidade tem de se salvar a si e ao planeta. Este contrapoder
funda-se na união entre todas as pessoas para lutar contra o racismo, o
patriarcado e tudo o que o capitalismo envolve.
25.
O desejo pela solidariedade multirracial é sempre inquietante, como as
histórias do racismo demonstraram. O desenvolvimento da solidariedade será
tenso, difícil, e dependerá das circunstâncias objectivas e das escolhas
estratégicas. De maior preocupação é que a solidariedade possa vir a
comprometer a libertação negra. Para prevenir isto, devem ser feitos esforços
para respeitar e apoiar a autonomia da luta revolucionária negra.
•
Nota
de edição
Este
artigo foi publicado a 24 de Junho de 2020, na Ill Will Editions, uma publicação
online independente e gerida por voluntários, sendo a sua autoria atribuída à
dupla Shemon e Arturo. A tradução para português foi feita por Paulo Ávila e
João Paupério.
Imagem
1. Polícias do corpo de
intervenção avançado sobre protestantes em Minneapolis, 30 de Maio de 2020 (John
Minchillo—AP)
Ficha Técnica
Data de publicação: 09.07.2020
Edição #28• Verão 2020 •