Diário da psico-deflacção IV: Uma estranha calma antes da tempestade • Franco "Bifo" Berardi





4 de Abril
Lucia encontrou uma fotografia a preto e branco, que me enviou para o telefone. Na fotografia, vê-se uma mulher, bonita e jovem, vestida como nos anos trinta se vestiam as raparigas nos dias de festa. Com ela, há uma outra rapariga.
Por detrás delas, um edifício que não tardo a reconhecer. A mulher e a rapariga caminham pela via Ugo Bassi, atrás vê-se o frontão triangular que separa Pratello de San Felice. A mulher olha em frente, com ar ligeiramente ausente, enquanto a miúda quase que se pendura na sua mão, num pedido claro de atenção: mas a mulher não olha para ela, olha em frente, olha para longe.
A mulher é a minha mãe, e a rapariga é a sua prima Maria.
Perguntei-me imediatamente quem poderia ter tirado aquela fotografia, quem estava por detrás da câmara. Tenho a certeza de que é Marcelo, o seu noivo. O meu avô Ernesto deixava Dora sair com ele aos fins-de-semana, mas com a condição que fosse acompanhada, seja por um irmão ou outra rapariga. Dora parece incomodada, não esconde um certo desdém, irritada talvez com a presença indesejada da sua prima. Não se vira na direcção dela, olha para ele, o fotógrafo que capturou aquele instante. Olha ainda mais para a frente, na direcção do futuro que imagina naquele dia de celebração da primavera no final dos anos 30 – quando a minha mãe tinha vinte e dois anos acabados de fazer, e a tragédia parecia distante. Depois veio a guerra e a devastação, para perturbar a vida e o futuro que longamente antecipara.  

6 de Abril
A grim calculus. O título do The Economist desta semana diz tudo. “Grim” significa desolador, sombrio e feroz. Tristes contas, que acabaremos por ter de fazer. É fácil de adivinhar aquilo a que a revista que representou a economia liberal por mais de um século pretendia aludir com este título. Antes de tudo, o quanto nos custará – em termos económicos – a pandemia do coronavírus; mas também o tipo de dilemas em que nos vemos enredados, como o de ter de escolher entre decidir fechar tudo e bloquear quase completamente a produção, a distribuição – em suma, toda a máquina económica – ou aceitar a possibilidade do massacre.
Leio na revista Londrina. “O governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, declarou: Não vamos pôr um preço na vida humana. Devia soar como um grito de alerta, vindo de um homem corajoso num momento em que o estado que governa se encontra sobrecarregado até à exaustão. No entanto, pondo de parte todo e qualquer compromisso, Cuomo está a fazer uma escolha – e uma que não mede as consequências que recairão sobre a comunidade inteira. Pode parecer insensível, mas atribuir um preço à vida – ou seja o que for que permita um pensamento sistemático – é, precisamente, aquilo que os líderes vão ter de fazer para lidar com a incerteza dos próximos meses. Como nas unidades de cuidados intensivos, os compromissos são inevitáveis.
Tornam-se mais complexos, à medida que cresce o número de países atingidos pelo covid-19. Na semana anterior a 1 de Abril, o total de casos confirmados duplicou: aproxima-se, agora, de um milhão. Os Estados Unidos da América registaram um número que já ultrapassa em muito os 200.000 casos e tiveram 55% mais mortes do que a China. A 30 de Março, o Presidente Donald Trump alertava para três semanas como nunca vimos. A pressão sobre o sistema de saúde Americano pode levar ainda algumas semanas até atingir o pico. As previsões da Casa Branca são de que a pandemia pode custar pelo menos 100.000 a 240.000 vidas Americanas.
Até agora, o esforço para combater o vírus parece consumir todas as nossas energias. […] Mas numa guerra como numa pandemia, os líderes não podem escapar ao facto de que qualquer que seja o rumo que escolham dar às suas acções, ele vai sempre impor vastos custos sociais e económicos. Para agir responsavelmente, nestas condições, torna-se necessário pesar bem uma coisa contra a outra, considerar cada caso […]. Pela altura do verão, as economias terão sofrido quedas de dois dígitos no PIB quadrimestral. As pessoas terão suportado meses de confinamento, com consequências negativas para a coesão social, assim como para a saúde mental. Confinamentos com a duração de um ano custariam à América e à Zona Euro cerca de um terço do PIB. Os mercados entrariam em colapso e os investimentos seriam sucessivamente adiados. A economia perderia vitalidade, com a inovação parada e os conhecimentos técnicos a definharem. Eventualmente, e mesmo que estejam a morrer muitas pessoas, o custo do distanciamento social pode vir a ultrapassar os seus benefícios. E este é um lado neste equilíbrio dos compromissos que ninguém parece ainda disposto a admitir.”
Tudo certo. O The Economist confronta-nos com uma maneira de pensar que, apesar da sua aparente brutalidade, é simplesmente realista. Um outro título, a receber destaque na mesma revista, diz: Hard-headed is not hard-harted [1]. Quem o pode negar? Devido à decisão de parar o fluxo de toda a actividade social ou económica, os líderes políticos salvaram certamente milhões de vidas, nos próximos três, seis, doze meses. Mas – observa o The Economist, de modo consistente e inflexível – isto vai-nos custar, no futuro, um número muito mais elevado de vidas. Estamos a evitar os custos do massacre que o vírus provocaria, mas que cenários estarão – neste momento – a ser preparados para os próximos anos, a uma escala global, em termos de desemprego, de desmantelamento da produção e de cadeias produtivas, em termos de dívida e bancarrotas, empobrecimento e desespero?
Só um segundo.
O editorial do The Economist é razoável, coerente, irrefutável até – mas apenas dentro de um contexto de critérios e prioridades, que corresponde à forma económica a que chamamos capitalismo. Uma forma económica que faz depender a mobilização de recursos, a distribuição de bens, da participação na acumulação de capital. Por outras palavras, condiciona a possibilidade concreta de aceder a bens úteis à posse de garantias monetárias abstractas.
Este modelo, que foi capaz de mover recursos gigantescos para a construção da sociedade moderna, tornou-se hoje uma armadilha lógica e prática da qual não conseguíamos encontrar uma saída. Mas, agora, a saída impôs-se por si mesma – infelizmente, com violência. Não a violência da convulsão política, mas a violência de um vírus. Não através da decisão consciente de forças dotadas de vontade humana, mas pela introdução de um corpúsculo heterogéneo – como seria a vespa, para a orquídea – um corpúsculo que começou a proliferar até que o organismo colectivo se viu desprovido de entendimento e vontade, incapaz de produzir, incapaz de continuar.
Foi isto que fez parar a reprodução, sugando enormes somas de dinheiro que acabam por ser de pouco ou nenhum uso. Parámos de consumir e de produzir, e aqui estamos, olhando o céu azul através da janela enquanto nos perguntamos como é que tudo isto vai acabar – mal, muito mal, diz o The Economist, para quem a interrupção do ciclo de crescimento e acumulação surge como um acontecimento catastrófico que conduzirá à fome, à miséria e à violência.
Permito-me discordar do tom catastrófico do The Economist, porque tenho em mente um outro sentido da palavra “catástrofe” – que, na sua etimologia, pode também significar “um ponto de viragem, para lá do qual se nos abre um outro panorama”. Kata pode ser traduzido por “para lá” e strofein significa movimento, mudança. Assim, deslocamo-nos finalmente para lá de território conhecido: demos enfim o passo que cinquenta anos de lutas conscientes, determinadas e loquazes não souberam ou não puderam dar. Tudo – ou quase tudo parou, agora é uma questão de reiniciar o processo, de recomeçar – definir objectivos concretos em vez de nos entregarmos à acumulação abstracta, promover a igualdade e a frugalidade para todos em vez da competição e da desigualdade.
Conseguiremos desenvolver este princípio e reiniciar a máquina – não a mesma máquina de antes, que trabalhava sem parar, mas uma mais elástica, uma máquina talvez um bocadinho mais instável, certamente mais frugal, mas uma máquina amigável?
Seremos capazes? Não sei, e sobretudo não sei sequer quem seria este “nós”. Quem será capaz do quê?
De política, da arte de governar? A política é incapaz de governar o que quer que seja e é, sobretudo, incapaz de compreender o que quer que seja. Os pobres dos políticos parecem nervosos, agitados e ansiosos. O novo jogo da proliferação rizomática de corpúsculos ingovernáveis apela ao conhecimento – não à vontade.
Portanto, não mais a política mas o conhecimento. Mas que tipo de conhecimento?
Não o conhecimento do The Economist, que não vai além da casa de espelhos da valorização – que restringe o acesso aos seus produtos fazendo-os aparecer em termos abstractos, de cálculo monetário, e aumenta sempre o volume da destruição de modo a aumentar o valor abstracto. Refiro-me a saberes concretos, a um conhecimento que não traduz o lucro em valor, mas a experiência em prazer e riqueza.
Precisamos mesmo de caças F-35? Não [2]. Para além de ajudarem a formar fúteis alianças militares, eles são inúteis. Os trabalhadores implicados no seu desenvolvimento e manutenção estariam melhor a produzir latas de atum. Além disso, sabem quantas unidades de cuidados intensivos seriam construídas a partir de um único caça F-35? Duzentas.
Bem sei que isto são palavras da boca para fora, pouco exactas, que não levam em conta todas as complexas interdependências e implicações do objecto sobre o qual se pronunciam, etc. Calo-me já, não há nenhum problema. Escutemos antes, então, o discurso realista daqueles que insistem em entoar o mesmo, velho mantra: se queremos manter o emprego e o desempenho económico nos mesmos níveis, temos que produzir armas, não temos? Dizem os realistas do The Economist, à direita como à esquerda.
Assim, continuaremos a produzir armas, para que todas estas pessoas possam trabalhar oito ou nove horas por dia. Decorrido um mês ou um ano da epidemia, espera-nos a miséria em massa, depois a guerra. E depois a extinção, de que ainda agora tivemos um gostinho, e que correrá ao nosso encontro para nos saudar, montada no seu belo cavalo branco – tal como representado no Triunfo da Morte, no Palazzo Abatellis, em Palermo.
E se, em vez disso, decidirmos fazer as pessoas trabalhar apenas o tempo que for necessário para produzir alguma coisa útil? E se assegurássemos a toda a gente um rendimento, sem olhar ao tempo – útil, agora, num outro sentido – que passaram a trabalhar? E se deixássemos de pagar as desastradas avionetas que eles já compraram? E se sabotássemos os compromissos internacionais que nos obrigam a desembolsar somas gigantescas para suportar os custos da guerra?
A questão é que estas sugestões deixaram de ser exclusivas do discurso radical e tornam-se, hoje, o único realismo possível. There is no alternative :)
A minha amiga Penny envia-me algumas notas, de Londres: “Sento-me e escrevo, é tudo o que faço – esta estranha vida acabou por se tornar familiar, tranquila. Mas será, talvez, a calma que precede a tempestade.” Faz-se sempre um estranho silêncio, antes da tempestade rebentar. Como para dizer que o melhor ainda está para vir, quando o vírus se retirar, cansado. Chegado esse momento, os imprudentes vão-se ocupar em regressar à normalidade – os outros preparam-se para a tempestade maior, que está aí mesmo ao virar da esquina.

7 de Abril
Depois de dois meses em que andou relativamente discreta, a asma voltou e para passar o dia inteiro comigo. Deitado na cama, debati-me com a falta de oxigénio, sem forças para fazer nada.
A seguir ao jantar, saio para pôr o lixo: orgânico, vidro, indiferenciado. Caminho, lentamente, pela praceta em baixo de casa. O San Donato Best Western Hotel está fechado, com trancas na porta e estores corridos. Caminho um pouco na via Zamboni, para ver as torres. Não encontro ninguém, numa rua onde, desde o século XII, todas as primaveras os estudantes se congregam e têm encontros românticos. 

8 de Abril
Bebo o meu café e observo a praça, iluminada pela luz do sol. Até hoje, surge de debaixo da arcada aquela rapariga, talvez viva sozinha num estúdio da via del Carro. Chega já equipada, em preto e amarelo, faz o seu exercício diário sem largar da mão o telefone. A sua ginástica é um pouco estranha – levanta a perna direita, mantendo-a elevada por alguns segundos, mas o telefone absorve-lhe a atenção, depois levanta a perna esquerda, isto sempre sem tirar os olhos do telefone, vira-se e apoia os braços contra a parede, girando a cabeça para trás e para a frente. O meu telefone toca, volto para dentro. Perguntam-me, de Milão, se ainda tenciono enviar, até ao final do dia, uma gravação para a Radio Virus. Volto à janela, a rapariga desapareceu.
Se o Seu representante na terra não nos tivesse proibido de considerar esta doença um castigo de Deus, diria que o Senhor nas Alturas deve ser um velho com um diabólico sentido de humor. Começou por enviar Johnson para os cuidados intensivos, agora chegou a vez de Litzman, o Ministro Israelita homofóbico.
Infelizmente, é a única notícia interessante que nos chega desse país racista. Quanto ao resto, a crónica política de Israel oferece-nos o interminável relato da briga entre o torturador Ganz, o corrupto Netaniahu e aquele Nazi, Lieberman. Avançarão, provavelmente, para a quarta eleição no espaço de um ano: enquanto à volta deles o mundo se desmorona, estão demasiado embrenhados em discussões fúteis para darem por isso.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho em Genebra (OIT), a pandemia pode vir a lançar cerca de 25 milhões para o desemprego até ao final do ano. Nos Estados Unidos, verificaram-se mais de dez milhões de layoffs ao fim de duas semanas e espera-se que este número venha a aumentar nos próximos dias. Para empregar uma das expressões mais populares dos tempos que correm, estes são números sem precedentes.
As políticas económicas tradicionais não chegarão para lidar com este fenómeno. Ou recorremos à marginalização violenta de parte significativa de uma população miserável que se move ruidosamente pela periferia dos centros urbanos, ou então deveríamos abandonar – de uma vez por todas – o discurso esgotado da “economia moderna”, a velha utopia do “pleno emprego”, o preconceito do “trabalho assalariado” e recomeçar, literalmente, do zero. Fica-nos o conhecimento científico acumulado e, acima de tudo, o poder vital do trabalho cognitivo, a inventividade técnica e a palavra poética.
Mas quanto ao critério económico que, até aqui, regulava as relações e as suas prioridades, enlouqueceu definitivamente – encontra-se fora de serviço, para todo o sempre.
Se nos propusermos restaurar a velha relação entre aqueles que possuem a riqueza e aqueles que são obrigados a trabalhar para ganhar a vida, então a miséria irá gerar rios de violência e o desemprego acabará a alimentar exércitos desesperados, capazes de tudo.
Precisamos de avançar para a requisição de espaços e estruturas de produção. A questão passará por regular o acesso aos recursos disponíveis sob condições de igualdade.
Não devemos desperdiçar o nosso tempo com a ilusão de um retorno a uma “normalidade” perdida – é esta ilusão que se presta a arrastar aquilo que ficou para uma espiral de devastação sem retorno. O mundo a que se habituaram os consumidores dos últimos 50 anos já não existe, e também não precisa de regressar. O próprio sistema de expectativas exige ser radicalmente modificado.
Se tivesse que escolher um acontecimento, uma data e um lugar como a origem do apocalipse, escolheria a Cimeira da Terra no Rio de Janeiro, em 1992. Pela primeira vez, as grandes nações encontraram-se para avaliar a necessidade de lidar com os perigos que o crescimento económico começava, então, a revelar. O Presidente dos Estados Unidos, George Bush sénior, declarou nessa ocasião que “o nível de vida do povo Americano não pode ser negociado”.
Agora estamos todos a pagar pela sua arrogância, que talvez seja inerente à própria existência de uma nação nascida do genocídio, cuja riqueza assenta na deportação, na escravatura, na guerra e na expropriação de recursos e trabalho de outros povos. Uma nação que cairá, em breve, numa devastadora guerra interna da qual, merecidamente, não sairá viva.

9 de Abril
Depois de um mês de isolamento e de incerteza relativamente às implicações desta situação, detecto um certo nervosismo na voz de amigos que me telefonam, mas igualmente em qualquer análise, em tudo o que se escreve e se publica e que vou lendo diariamente. Não leio tudo, é certo, mas leio bastante.
De uma mailing list chamada Neurogreen, recebo um artigo escrito por Laurie Penny e publicado na revista Californiana WIRED, que esteve por muitos anos na linha da frente da promoção de uma visão e de um imaginário futurista-digital e, no limite, ultra-liberal.
Não deixa de ser estranho, encontrar tal artigo numa revista que se expressa habitualmente num tom tão ultra-optimista. O artigo relata o que aparenta ser uma experiência pessoal vivida como dramática. Laurie Penny encontra-se algures, longe de casa, surpreendida pela tempestade viral. “O capitalismo não consegue imaginar um outro futuro, para além dele mesmo, a não ser na forma da mais pura e simples carnificina. […] A social-democracia está a ser restaurada à pressa, porque – para parafrasear a Senhora Thatcher – não existe mesmo alternativa.”
150 membros da família real Saudita apanharam o vírus. Bernie Sanders retira-se da corrida presidencial, Biden perderá as eleições, (ou talvez não) se eleições chegarem sequer a realizar-se. Oito médicos morreram no Reino Unido, enquanto tratavam pacientes com o vírus. Todos eles eram estrangeiros: Paquistaneses, Indianos, do Egipto, Índia, Nigéria, Sri Lanka e Sudão. O céu de Delhi está limpo, como não se encontrava há muitos anos. À noite, conseguem-se ver as estrelas.
Enquanto isso, a Cofindustria não pode esperar para retomar a produção, mesmo se as notícias que nos chegam da China não são de todo tranquilizadoras: ainda que Wuhan reabra, Heilongjiang acaba de ser encerrada. A batalha contra o coronavírus faz pensar na história do cobertor: tapa de um lado, destapa do outro.
Talvez devêssemos simplesmente abdicar de lutar, uma vez que a guerra está perdida à partida. Minimizar os nossos movimentos, aceitar que todos os poderosos excitantes sob o efeito dos quais nos mantivemos numa corrida desenfreada, durante todo o decurso da era moderna, não se encontram mais disponíveis, esgotaram.
Os que pagam o preço mais elevado são aqueles que mais acreditaram, e continuam a acreditar no poder ilimitado da vontade humana.
Neste momento, atropelam-se – lutam para se voltarem a apoderar do ceptro com as suas próprias mãos, para voltarem a deter o controlo sobre o futuro como um dia, num passado glorioso, sonharam ter. Mas como nos ensina o vírus, esse poder ilimitado era um conto de fadas e um que chega, agora, ao fim.

10 de Abril
A ANPI (Associação dos Partiggiani Italianos) propõe fazer no dia 25 de Abril (Dia da Libertação – celebrando o fim do fascismo em Itália, em 1945) um encontro pela democracia. Respondo ao apelo e ponho-me à disposição com o pouco que puder contribuir. Cantarei também o hino nacional de Mameli, no início das celebrações? Espero pelo dia 25 de Abril como esperei pela Missa Pascal do Papa Francisco. Apesar do meu ateísmo, fez-me bem seguir o discurso de Francisco na outra noite, na praça deserta. No mesmo espírito exactamente, participarei no evento virtual do 25 de Abril. A divindade à qual prestam culto os democratas é tão ilusória como o deus de Francisco, mas vai-me fazer bem sentir-me próximo de um milhão de pessoas.

11 de Abril
Na via Castiglione, nas colinas de Bolonha, a dois quilómetros do centro da cidade, alguém filmou um javali seguido por seis pequenas crias.
Em Bruxelas, os Holandeses reiteram que aqueles que precisam de dinheiro devem assinar uma nota promissória garantindo que pagarão o montante de volta. Em 2015, quando se tratava de impor a lei do credor na Grécia, a Itália concordou com os Holandeses. Hoje, compreensivelmente, a Itália gostaria de evitar receber o mesmo tratamento. Mas as noções de dívida e de crédito parecem cair, hoje, numa espécie de delírio, no qual a insolvência deve servir para validar o sistema de mercado. Também aqui, não há alternativa.
Por falar em Grécia, Stella e Dimitri contam connosco na ilha de veraneio, em Julho. Há mais de dez anos que temos vindo a alugar uma pequena casa, no meio das oliveiras. O que vai acontecer ao verão, às viagens, ao mar? Billi e eu evitamos, habilmente, tocar no assunto. O mais provável é não haver viagens este verão.

12 de Abril
Depois da mal disfarçada agressividade de Rutte e Hoekstra, a Senhora Ursula esforça-se por dourar a pílula para os Italianos, que estão extremamente incomodados com a avareza – ligeiramente ofensiva – dos Holandeses. Libertarão, finalmente, os fundos do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES) sem condicionalismos? E porque é que já ninguém menciona os Coronabonds?
Há uma coisa, no entanto, em que todos estão de acordo: não haverá renegociação da dívida, não se fará tábua rasa sobre o passado, ouço sempre os negociadores Europeus dizer. Mas será assim tão mau como todos parecem pensar, fazer tábua rasa? Se calhar, era o melhor que podíamos fazer, desistir. “Chi ha avuto ha avuto ha avuto chi ha dato ha dato ha dato scurdammoce ‘o passato simm’e Napule paisà” (quem teve teve, quem deu deu, esqueçamos o passado, somos de Nápoles meu amigo). Infelizmente, a profunda sabedoria destes versos Napolitanos não parece estar ao alcance dos economistas.

14 de Abril
Numa entrevista publicada no Il Manifesto, o velho socialista Rino Formica observa que não deveríamos acreditar que sobreviver, neste momento, é mais importante do que pensar – como sugere o lema em Latim, primum vivere deinde filosofari (primeiro viver, depois filosofar). Se não filosofamos, nota subtilmente Formica, arriscamo-nos a não saber fazer as escolhas que nos permitem viver.
Marco Bascetta, pelo seu lado, e ainda no Il Manifesto, publica uma (confusa, mas interessante) reflexão sobre o mesmo velho lema Latino, ainda que ligeiramente modificado: primum vivere deinde laborare (primeiro viver, depois trabalhar). Bascetta observa, correctamente, que não pode existir mercado se não existir vida.
Agamben escreveu as mais variadas vezes que, em nome da vida nua, estamos dispostos a desistir da vida – e uma outra divisa Latina vem-me à memória, uma que sempre preferi àquela que Formica menciona, navigare necesse est, vivere non est necesse [navegar é preciso, viver não é preciso]. Para que vivemos ainda, quando já abdicámos de navegar?
Pela segunda vez, o Presidente dos Estados Unidos ameaça suspender o financiamento da Organização Mundial de Saúde: porque, diz ele, foram lentos a reagir e cometeram erros na abordagem da pandemia, e talvez também porque tomaram uma posição pró-Chinesa. Ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, ameaça vir a despedir a maior autoridade em virologia em todo o sistema de saúde Americano, Anthony Fauci.
Nos últimos dias, chegaram-nos imagens do país de Trump que mostram sacos contendo cadáveres, atirados para valas comuns, escavadas para aqueles que não possuem sequer os meios de pagar um funeral ou um enterro, tudo isto mesmo à porta da metrópole cosmopolita que é Nova Iorque. Muitos ficaram chocados, perante o que entenderam ser uma consequência do maldito vírus – que estaria a forçar os Americanos a renunciar a um funeral e à homenagem devida aos defuntos.
Erro.
Estas fotos não são novidade, e não têm necessariamente relação com a epidemia. Neste país, de facto, aqueles que nada possuem e morrem como cães são, habitualmente, enterrados desta maneira: detidos nalguma prisão, acabam numa vala comum ou no subúrbio fétido de uma cidade extremamente rica. É esta a normalidade a que muitos desejam retornar.

15 de Abril
Algumas notícias animadoras: na Califórnia, grupos de sem-abrigo ocupam apartamentos e moradias, mantidas vazias por especuladores que contavam fazer lucro com elas, o que agora será bem mais difícil. Algumas notícias perturbadoras: em Lagos, cidadãos de certos bairros pegam em armas para defender as suas propriedades de hordas de ladrões que, aproveitando-se do recolher obrigatório, roubam o que podem durante a noite.
Mas não será talvez a mesma questão, não se resumirá isto ao facto de que em tempos como estes, ou como os que estão para vir, a propriedade privada se tende a tornar uma coisa lábil, fraca, frágil? Como se perdesse a direcção, oblíqua.
Leio no Facebook: “Tudo isto serviu para criar um clima tão desagradável. Saímos de máscara e luvas, para ir ao supermercado ou comprar jornais; quando prestamos atenção, toda a gente olha com desconfiança para toda a gente e se alguém se aproxima demasiado, instala-se uma atmosfera que não anda longe do pânico e do terror. Se nos livrarmos do vírus, vamo-nos libertar também deste tipo de comportamento? Já não sei. Iremos nos habituar a olharmo-nos de lado, daqui em diante, talvez para sempre?”



Notas de rodapé
1.  “Pragmático não significa insensível”. Uma outra tradução possível seria: “Pensar com a cabeça, e não com o coração”. [Nota do tradutor]
2. O caça F-35 (ou Lockheed Martin F-35 Lightning II, ou F-35 Joint Strike Fighter), desenvolvido pela Força Aérea Americana, foi “declarado pronto para o combate” em 2015. Trata-se do avião mais caro da história da aviação, e da arma mais cara da história do armamento militar: calcula-se que o custo total do seu desenvolvimento, ao longo de 15 anos, ultrapassa os 400 biliões de dólares. Recentemente, encontra-se a fazer voos de demonstração sobrevoando hospitais Americanos, para apoiar aqueles que trabalham “na linha da frente” do combate contra o coronavírus. “Of course after those jets flew by, was back to work, back to reality”, dizia o jornalista que cobria o acontecimento no Utah. [Nota do tradutor]

Franco “Bifo” Berardi
Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de destaque do operaísmo italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação com os media e a produção cultural. Fundou a Rádio Alice, primeira rádio livre em Itália (1976-1978), e a revista A/traverso (1976-1981), que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária. Exilado em Paris, trabalhou com Felix Guatari em esquizoanálise. Desde os anos 1990 que o seu trabalho tem incidido sobre a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e capitalismo.

Nota da edição
O Diário da psico-deflacção resulta de uma parceria Punkto/Teatro do Bairro Alto, com tradução de Nuno Leão. Franco “Bifo” Berardi esteve em Lisboa em Outubro passado para a abertura deste teatro. A sua conferência está disponível em podcast no site do TBA, assim como um glossário experimental gravado aquando da sua passagem pela cidade. A primeira, segunda e terceira parte do Diário estão disponíveis na íntegra no site do Punkto.


Imagem
O Triunfo da Morte, fresco na Galeria Regional do Palazzo Abatellis, em Palermo, sul da Itália.

Ficha Técnica
Data de publicação: 20.05.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos