Pouco
antes da primeira vitória presidencial de Trump em 2016, no seu livro American
Utopia, Fredric Jameson observou que «hoje, toda a política se resume ao desenvolvimento
imobiliário». Referindo explicitamente a Palestina, Jameson colocou a hipótese
de que a política pós-moderna «é essencialmente uma questão de apropriação de
terras, tanto numa escala local quanto global». Já bastante visível durante a
ascensão inicial do slumlord supremo [Trump], a hipótese de Jameson é
hoje confirmada na sua forma mais grotesca, naquilo a que o The New York
Times — branqueando diligentemente toda a indignidade imposta ao povo
palestiniano — se refere como o «plano de desenvolvimento de Gaza». Em
múltiplas ocasiões, e notoriamente durante a visita de Estado do
primeiro-ministro israelense, o criminoso de guerra procurado Benjamin
Netanyahu, Trump ensaiou a ideia de transferir toda a população da Faixa de
Gaza para outros países, nomeadamente a Jordânia e o Egipto, antes de limpar os
escombros do genocídio e transformar o território na «Riviera do Médio-Oriente».
O
alto funcionário do Hamas, Osama Hamdan, retorquiu que «as declarações de Trump
sobre Gaza revelam a natureza da mentalidade americana e a sua visão sobre os
territórios nacionais assente na lógica do desenvolvimento imobiliário… As
declarações de Trump alimentam o caos, e se ele quer expandir Israel, deveria
fazê-lo no seu próprio país». Até alguns aliados da NATO se opuseram: o
presidente francês Emmanuel Macron ressaltou que «a resposta certa não está
numa operação imobiliária», enquanto o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez
declarou que «nenhuma operação imobiliária vai encobrir a ignomínia, os crimes
contra a humanidade e muito menos a vergonha que se viveu em Gaza durante os
últimos anos».
Até
para quem já há muito se habituou às inanidades e obscenidades que fluem
incessantemente do Presidente dos EUA, o misto de crueldade e banalidade de
construir resorts sobre valas comuns tem um efeito desconcertante. Após
décadas de obstrução das reivindicações palestinianas por auto-determinação e
das disposições do direito internacional contra o apartheid, a anexação
de terras, a transferência forçada de populações e a limpeza étnica, a
cumplicidade dos EUA no genocídio de Israel sob a administração Biden-Harris
evoluiu agora para um descarte absoluto, não apenas dos resquícios de uma «ordem
internacional baseada em regras», mas da própria noção de soberania que agrega
os Estados, os territórios e as populações.
A
soberania e a propriedade têm surgido entrelaçadas no pensamento político
moderno, pelo menos, desde o século XVI. A natureza do poder soberano como imperium
(poder executivo supremo) em relação ao dominium (propriedade absoluta)
e a questão de até que ponto um soberano poderia interferir nos direitos de
propriedade dos seus súbditos informaram as principais teorias sobre o Estado;
a analogia do poder soberano (absoluto) e o poder do proprietário moldou os
imaginários políticos de filósofos políticos europeus de Hobbes a Locke, da
tradição espanhola à britânica, lançando as fundações da ordem colonial
moderna. A soberania como imperium tornou-se na base da aquisição
colonial de território indígena e da transformação das terras em propriedade (dominium).
A
propriedade, na sua forma de bem imobiliário financeirizado, veio dominar as
economias neoliberais. A ideologia do desenvolvimento imobiliário encontra
agora expressão geopolítica directa, na medida em que molda as formas de poder
exercidas por Trump e pela sua comitiva. Embora os Estados Unidos tenham sido,
desde os seus primórdios enquanto colónia de ocupação, aquilo a que o
historiador Allan Greer chama «monopsónio fundiário» [real estate monopsony],
levando à extensão lógica da tendência imperial britânica de agir «como um
senhorio reformador» [improving landlord] (nas palavras de Ranajit
Guha), a abordagem de Trump ao domínio sem hegemonia está mais estreitamente
enraizada na mentalidade básica do promotor imobiliário: adquirir propriedade
ou, mais precisamente, um «sítio» (desenraizado da sua história), desenvolvê-lo
e, então, alugá-lo, arrendá-lo ou vendê-lo com o único propósito de lucrar.
Historicamente,
o roubo de terras indígenas envolveu toda uma panóplia de instrumentos
jurídicos — lawfare, por outras palavras — incluindo levantamento,
mapeamento, registo de propriedades, nalguns casos, tratados (assinados de
má-fé colonial) e, noutros, contratos de venda. Tudo isto foi apresentado como
parte de uma missão civilizatória de «desenvolvimento». A ideologia do império
imobiliário — seja ele pessoal ou nacional — dispensa essa narrativa
legitimadora. Em vez disso, ela avança com um motivo lucrativo brutalmente cru
e explícito, como álibi para a violência da erradicação de assentamentos
informais, do declínio planeado, da gentrificação e da financeirização. E
embora a «guerra urbana», tal como a arquitecta e urbanista brasileira Raquel
Rolnik analisou, seja um fenómeno planetário, a maneira como ela descarta as
racionalidades habituais da política externa, da diplomacia e do direito
internacional marca um novo grau de degradação nos projectos neo-imperiais dos
EUA — embora amplamente ensaiado na pilhagem e na fragmentação do Iraque. Mas
enquanto a Autoridade Provisória da Coligação de Paul Bremer implementou a
doutrina do choque neoliberal, recorrendo a uma forma de privatização constitucionalizada,
aqui o saque é ainda menos mediado: apropriação, pura e simples.
Há
seis anos, o genro de Trump, Jared Kushner, lançou o seu plano «Paz para a
Prosperidade» para a Palestina. O plano foi descartado por analistas como nada
mais do que uma brochura imobiliária. Um ano depois, esse plano foi incorporado
no Plano de Paz de Trump, também conhecido como «O Negócio do Século» [The
Deal of the Century], que procurava consolidar o grosso das terras
apropriadas através de colonatos, por Israel, na Cisjordânia, estabelecendo em
paralelo um Bantustão palestiniano completamente subordinado, segmentado e «desmilitarizado»
— basicamente congelando o processo de Oslo no seu nadir e, simultaneamente,
neutralizando qualquer capacidade palestiniana de autonomia ou auto-defesa. Em
Fevereiro do ano passado, enquanto dezenas de civis eram diariamente visados e
mortos por Israel, Kushner, discursando em Harvard, lançou a ideia de deslocar
temporariamente civis de Gaza enquanto Israel «limpava» a Faixa, com vista a
desenvolver a sua «muito valiosa» «propriedade à beira-mar». (A proposta
associada de Kushner de transferir os habitantes de Gaza para um local no
deserto Negev foi debilmente concebida para angariar o apoio dos colonos
fascistas teocráticos no governo de Netanyahu).
As
declarações recentes de Trump ecoam as do seu genro, mas também assinalam uma
transição para um território onde o mínimo esforço para manter a aparência de
legalidade já excede o requerido. O presidente dos EUA convida-nos a abraçar
plenamente a sua visão do desenvolvimento imobiliário como um substituto do
direito internacional, algo a que podemos chamar a sua ontologia imobiliária.
Falando com jornalistas no Air Force One (onde também revelou o seu mapa do «Golfo
da América»), Trump disse sobre Gaza: «Pensem nisto como uma grande propriedade
imobiliária. Os Estados Unidos vão possuí-la e vamos, lentamente, muito
lentamente — não temos pressa —
desenvolvê-la e trazer estabilidade ao Médio Oriente». Alternadamente
falando de «tomar», «possuir» e «comprar» — sem nunca especificar a quem —
Trump também sugere que a reconstrução pode envolver algum tipo de concessão. («Podemos
entregá-la a outros Estados no Médio Oriente para construírem secções»).
Numa
entrevista subsequente à Fox News com Bret Baier, na qual confirmou que essa
aquisição de Gaza anularia qualquer direito de retorno para os habitantes
palestinianos de Gaza, Trump parece transferir a titularidade sobre o
território do governo dos EUA para si mesmo: «Vamos construir comunidades
seguras, um pouco afastadas de onde elas estão, de onde todo esse perigo está.
Entretanto, eu seria o proprietário. Pense nisso como um projecto imobiliário
para o futuro. Seria um belo pedaço de terra. Sem necessidade de grandes gastos».
A
incerteza sobre se Trump, como alguma macabra reencarnação do Rei Leopoldo II,
seria ou não, pessoalmente, o proprietário de Gaza, aponta para uma ruptura
radical com a noção de que o ocupante do cargo presidencial não deve ser
pessoalmente enriquecido ao ocupar esse cargo, fazendo com que as preocupações
com «conflitos de interesse» que atormentaram o seu primeiro mandato pareçam
agora, por comparação, de uma ingenuidade comovente. Esta versão da conquista
imperial do século XXI parece desprovida de qualquer pensamento político sobre
governança, legalidade, autoridade ou, de facto, sobre a «questão indígena» tal
como esta foi colocada na era imperial. Aqui, é suposto que os palestinianos
desapareçam da mesma maneira que os habitantes de um edifício que foi «desocupado»
como parte de um processo de declínio planeado.
Na
verdade, enquanto o governo israelense revela um entusiasmo extremo com a
transferência total da população sancionada pelos EUA, alinhada com fantasias
sionistas de longa data, é também evidente que, na mente de Trump, isto não
passa de uma operação de despejo a uma escala maior. O que é levado a um
extremo lógico, neste caso, não é a conquista por via da «guerra jurídica», mas
uma forma de reno-viction [1] genocida, avançada como se os Estados
Unidos não tivessem sido totalmente cúmplices nas dezenas de milhares de mortes
e na obliteração da maior parte do ambiente construído de Gaza, bem como da
própria infra-estrutura da vida colectiva, desde hospitais até ao saneamento
básico.
1. Nota do
tradutor: A expressão renoviction combina renovation (renovação)
e eviction (despejo), designando uma estratégia do negócio imobiliário
que consiste no despejo dos residentes de um edifício, usando como justificação
obras de renovação em grande escala.
Enquanto
Israel tem, desde há muito, utilizado leis de planeamento de uso do solo, bem
como ofensivas militares e prerrogativas militares, para despojar palestinianos
das suas terras, o plano de Trump vem marcar a transição da aquisição
territorial sob o imperativo de um Estado soberano para uma apropriação simples
e sem adornos de terras para fins lucrativos. Isto não significa negar que o
colonialismo tenha sido desde sempre uma questão de acumulação, extracção e
exploração, e que tenha envolvido repetidamente a actuação de agentes privados
e corporativos. Mas vale a pena registar uma mudança na prática e na
auto-imagem do poder soberano e imperial, bem como a disposição para dispensar
as concepções jurídicas sobre território, o Estado-Nação e as relações
internacionais que têm prevalecido — por mais diluídas ou hipócritas que fossem
— por um longo período de tempo.
Quando
falava ao lado do rei Abdullah da Jordânia na Casa Branca, Trump elevou a
fasquia, sugerindo que esse projecto não exigiria uma compra ou uma transacção
prévia: «Não teremos de comprar, nós possuiremos Gaza. Não temos de comprar.
Não há nada para comprar». A transformação da Faixa de Gaza numa terra
nullius — um dispositivo jurídico crucial no arsenal do colonizador —
superou também, aparentemente, os precedentes históricos pelo recurso à
tecnologia militar contemporânea. Israel infringiu uma destruição tão violenta
ao território e ao seu substrato — aquilo que a Forensic Architecture
chama de «terraformação» [terraformation] — que não alterou apenas a
paisagem, mas séculos de história humana e natural que jazem sobre ela.
A
escala da devastação foi intencionalmente concebida para tornar a Faixa de Gaza
inabitável. Mas vai além dos precedentes históricos habituais do colonialismo
de ocupação, nos quais a terra é transformada em «desperdício» através da
destruição da vida indígena, de modo a torná-la apropriável pelos colonos
(embora se aproxime daquilo a que John Llewallen chamou «ecologia da devastação»
na guerra dos EUA contra o Vietname). À parte das retóricas bíblicas de
vingança, o próprio exército israelense tem-se valido da lógica imobiliária de
produção de espaço; utilizou mapas originalmente criados nos anos 70 para
parcelar o território de Gaza em lotes para colonização judia. O seu novo
propósito é instruir os palestinianos sobre onde evacuar para as supostas «zonas
seguras» — que eram efectivamente locais de extermínio, como revela a Forensic
Architecture no seu relatório: Humanitarian
Violence: Israel’s Abuse of Preventive Measures.
Em
Dezembro de 2023, uma empresa imobiliária israelense criou um cartaz que
sobrepunha os diagramas de casas unifamiliares modernas a uma fotografia de
Gaza bombardeada, acompanhada pelo slogan: «Acorde, uma casa de praia não é um
sonho. Agora a preços de pré-venda». Em Janeiro de 2024, a organização
israelense de colonos, Nachala, liderada por Daniella Weiss, organizou
uma conferência sob o título «A Colonização Traz Segurança», promovendo
explicitamente a «transferência» da população palestiniana de Gaza e o
reassentamento judeu. Contando com a presença de quase um terço do gabinete de
Netanyahu, a conferência exibiu mapas onde se lia o convite aos participantes: «Venha
construir a sua casa em Gaza», dividindo a Faixa em novos assentamentos e
bairros, com nomes hebraicos. (Shuja'iyya, o bairro onde nasceu o poeta
assassinado Refaat Alareer, por exemplo, seria renomeado em homenagem aos
soldados das FDI que combateram em Gaza.) Enquanto isso, feiras imobiliárias
que vendem propriedades nos territórios ocupados têm sido realizadas nos
Estados Unidos e no Canadá, e serviram como um importante ponto de conflito
para o movimento de solidariedade com a Palestina.
A
ontologia imobiliária de Trump não é, portanto, inteiramente sui generis.
Pode-se argumentar que ela representa o extremo de um continuum da
limpeza étnica da Palestina e da fragmentação das terras palestinianas que
começou em 1948, mas se intensificou dramaticamente após a assinatura dos
Acordos de Oslo. A Cisjordânia foi fragmentada em Áreas A, B e C — supostamente
sob uma escala crescente de controlo israelense, de A a C, mas de facto sob
controle israelense total em todas as áreas (com a Autoridade Palestiniana
desprovida de qualquer coisa que se aproxime de uma soberania sobre terras
palestinianas descontínuas, enquanto Israel administra directamente 61% da
Cisjordânia). Esta divisão não impediu a política económica neoliberal nem, em
particular, os empreendimentos imobiliários, na área A, putativamente sob
controlo palestiniano, tal como é detalhado no livro Palestine is Throwing a
Party and the Whole World is Invited de Kareem Rabie.
Nos
colonatos ilegais, encontramos israelenses que não se encaixam necessariamente
na imagem estereotipada dos fanáticos religiosos nos postos avançados (a
chamada «Juventude das Colinas»), mas que são, em vez disso, famílias jovens
excluídas pelos preços altos do mercado imobiliário de Tel Aviv. De modo
semelhante, o preço acessível fez com que o entorno de Gaza voltasse a liderar
na compra de casas em Israel apenas alguns meses após o 7 de Outubro. Por todos
os territórios palestinianos ocupados, vemos prosperar um tipo particular de
empreendimento imobiliário na ausência de integridade territorial e de
autoridade política soberana. Isto tem como suporte, não apenas a violência
contínua implicada na produção de propriedade por meio de expulsão, despossessão
e demolições, mas também pela apropriação de recursos palestinianos:
nomeadamente, o aquífero. E, como muitos analistas observaram, o genocídio e o
ecocídio em Gaza não podem ser dissociados dos planos para os campos de gás ao
largo da costa de Gaza, que alguns analistas também consideram um desideratum
para Trump e para os EUA.
Entre
alguns dos adeptos de Trump, o «plano de desenvolvimento de Gaza» foi recebido
com entusiasmo. O blogger de extrema-direita Curtis Yarvin — citado como
uma influência por figuras como Peter Thiel, Steve Bannon e J.D. Vance, e
recentemente destacado pelo The New York Times — ecoou a proposta de
Trump, adaptando-a para o imaginário tecno-«libertário» anti-democrático
daquilo a que Quinn Slobodian chamou «capitalismo do colapso» [crack-up
capitalism]. A fantasia distópica de Yarvin para «Gaza, Inc.»
combina as visões de Trump do desenvolvimento imobiliário com uma concepção
totalmente corporativizada e privatizada da soberania, que «escapa» aos
próprios parâmetros do direito internacional ou da política democrática —
seguindo o modelo, por exemplo, de Próspera, a «charter-city» em
Honduras financiada por capitalistas de risco como Thiel, Balaji Srinivasan e
Marc Andreessen.
Para
Yarvin, uma condição prévia para transformar Gaza na «primeira corporação
soberana a ingressar na ONU» não é apenas a deportação dos seus habitantes, mas
a obliteração dos seus direitos de propriedade sobre a terra. Como ele declara:
«Gaza, sem os seus habitantes (ainda mais importante, sem o seu complexo
labirinto de títulos de propriedade da era otomana), vale muito mais do que
Gaza com os seus habitantes, até mesmo para os seus habitantes. São 365
quilómetros quadrados de propriedade no Mediterrâneo, livres de titularidade,
demolidos e desminados a um custo de talvez dez mil milhões de dólares. Esta
terra torna-se na primeira charter-city assente na legitimidade dos EUA:
Gaza, Inc. Símbolo da acção: GAZA».
Em
conformidade com a sua persona cultivada como um troll que provoca «os libs»,
adicionando insulto à injúria, Yarvin até sugere que o evento promocional para
essa OPI (Oferta Pública Inicial) seja promovido por Adam Neumann, o bilionário
israelense-americano que co-fundou a WeWork. Para Yarvin, a sua visão, e
a de Trump, tem o mérito de assumir o facto de que a «história humana normal»
está agora a restabelecer-se no crepúsculo da ordem liberal. No cerne dessa
ideia está a proposição de que «todos os títulos de propriedade têm a guerra
como bloco génese». (O bloco génese é o primeiro bloco numa blockchain,
o livro-razão distribuído que regista transacções e serve de base para as
cripto-moedas.)
As
propostas de Trump para Gaza vieram acompanhadas pelos seus esforços de coagir
os dinamarqueses a «venderem» a Gronelândia ou os panamenses a «devolverem» o
Canal, destacando uma formulação muito mais crua e abertamente transaccional da
primazia internacional americana. É a mesma lógica que rege as reivindicações
dos EUA sobre 50% das receitas provenientes da exploração de minerais de terras
raras na Ucrânia e o seu «direito de preferência para a compra de minerais
exportáveis», conforme estipulado num contrato preliminar redigido por
advogados do sector privado. A projecção do poder militar dos EUA sempre foi
acompanhada de pilhagens e esquemas de extorsão, mas é notável que o vício
americano já não sinta a necessidade de prestar qualquer homenagem às virtudes
internacionais.
Cada
vez mais movido pelo dominium, este é um imperium que não sabe o
que fazer com os arcanos. Parece gostar do seu Estado agressivamente raso, não «profundo»
[2]. Até que ponto a
projecção global do poder americano — da qual dependem profundamente as grandes
fortunas económicas do país — poderá sobreviver a esse abandono da hegemonia é
um dos muitos enigmas que enfrentamos. O que está claro é que evitar a crueza da
política global tornada desenvolvimento imobiliário ao mesmo tempo que se
anseia pela «ordem internacional baseada em regras» — o reflexo das próprias
elites internacionais centristas que pavimentaram o caminho para Trump e os
seus semelhantes — é um exercício de futilidade.
2. Nota do
tradutor: o adjectivo deep (profundo) faz referência à noção de Deep
State (Estado Profundo), cuja forma secreta de operar, evitando manchar a
imagem oficial do Estado, contrasta com a postura explícita característica de
Donald Trump, que traz os interesses obscuros à «superfície» do discurso
oficial.
•
Alberto Toscano & Brenna Bhandar
Alberto Toscano: autor de Late Fascism: Race,
Capitalism and the Politics of Crisis (Verso, 2023) e de Terms of
Disorder: Keywords for an Interregnum (Seagull, 2023), colonista no In
This Times. A sua investigação abrange temas como políticas autoritárias e
fascismos, na sua relação com as crises geopolíticas, raciais e de género do
capitalismo; a tragédia como quadro de compreensão das políticas colectivas;
descolonização e acção climática; formas de representação e “mapeamento” do
capitalismo. Brenna Bhandar: autora de Colonial Lives of Property; Law, Land
and Racial Regimes of Ownership (DUP, 2018), e co-editora de
Revolutionary Feminism: Conversations on Collective Action and Radical Thought
(Verso, 2020). A sua investigação centra-se nas fundações coloniais da lei
moderna, tendo como foco a questão da propriedade, abrangendo áreas como
filosofia política e história legal, teoria jurídica crítica, teoria crítica
feminista e da raça, estudos indígenas críticos, teoria pós-colonial e disputas
contemporâneas sobre propriedade.
Nota da edição
Este texto foi originalmente publicado em inglês na Protean
Magazine, a 27 de Fevereiro de 2025, sob o título Slumlord Empire,
assinado por Alberto Toscano & Brenna Bhandar. A tradução portuguesa para o
jornal Punkto esteve a cargo de Paulo Ávila.
Imagem
Donald Trump na Trump Tower, 1982 (Fred R. Conrad/The New
York Times).
Ficha Técnica
«Trump: o império da tirania imobiliária» • Alberto
Toscano & Brenna Bhandar
Data de publicação: 24.04.2024
Edição #44 • Inverno / Primavera 2025 •