O que resta da esquerda? • Pedro Levi Bismarck



 

1. O partido das sondagens

Os resultados eleitorais de domingo cumpriram plenamente o objectivo destas eleições antecipadas: a maioria absoluta do Partido Socialista. E, mais uma vez, como já tinha escrito em Meditações medinianas, as sondagens desempenharam um papel instrumental na definição dos resultados (uma reflexão sobre a influência das sondagens no voto que continua por fazer e, sobretudo, por reconhecer). E, no entanto, o PS foi o primeiro a aprender a lição: o fantasma de uma possível vitória do PSD (cenário desenhado em algumas sondagens na recta final da campanha) levou a um voto útil em massa no Partido Socialista, retirando votos  e deputados aos principais partidos da esquerda, Bloco e CDU, sobretudo o primeiro, que viu a sua votação reduzida em mais de metade. Por mais que a retórica do Partido Socialista de culpabilização dos partidos de esquerda pela crise possa ter tido algum eco, a perspectiva de uma vitória do PSD levou a uma corrida decisiva ao voto útil.

Ao analisar os resultados eleitorais nos vários distritos, comparando as votações de 2019 e as de 30 de Janeiro, vemos duas coisas: primeiro, o PSD consegue ganhar votos em praticamente todos os distritos, o que não sendo uma dinâmica de crescimento expressiva, permite-lhe tecnicamente subir a sua votação (por exemplo: em Lisboa passa de 22% para 24% e em Bragança mesmo perdendo para o PS mantém sensivelmente o mesmo número de votos); segundo, o PS ganha votos sobretudo à custa do Bloco de Esquerda: é quase uma transferência directa de votos, a percentagem que o PS ganha em cada distrito é praticamente igual à percentagem que o BE perde (no Porto, o PS passa de 36% para 42% e o Bloco passa de 10% para 4%).

O PS conseguiu afirmar a sua estratégia de maioria absoluta, não da forma cristalina que supunha, mas aproveitando-se do crescimento do PSD nas sondagens e no delírio que isso provocou em muitos comentadores e responsáveis políticos. A ironia, em política, tem um preço: Rio perde porque poderia ganhar. Rio não consegue travar o PS, porque a possibilidade de uma vitória da direita mobilizou o eleitorado de esquerda a votar no partido que poderia evitar isso mesmo. As memórias da Troika parecem ainda bem presentes e, em certa medida, também aqui Rio tinha razão: era preciso reconquistar o centro político para o PSD voltar a governar. Mas, obviamente, apesar da figura do homo populi que Rio tentou construir, a ambiguidade das suas propostas e a sua relação potencial com o Chega e a Iniciativa Liberal, tornaram impossível a ocupação desse espaço político, do qual, neste momento, o PS é rei absoluto.

 

2. O Partido Socialista é de esquerda?

Mas tudo isto leva-nos a uma outra reflexão: o programa de inscrever Bloco e CDU no arco da governação juntamente com PS parece ter falhado. E falha de duas maneiras: primeiro, porque a crise do chumbo do orçamento mostrou que a capacidade de entendimento do Bloco e da CDU (com o PS) significou um abandono ou um esvaziamento progressivo (mas intolerável) dos seus próprios programas políticos, ou melhor, uma incapacidade de colocar propostas fundamentais do seu programa em governo (como, por exemplo, reverter a legislação laboral aprovada no tempo da Troika). Mas este programa falha também porque o Bloco, ao inscrever-se no cenário da governação, capta um voto, um eleitor, que flutua entre a ala esquerda do PS, o PAN, o Livre e o Bloco, e que perante o perigo da direita não hesitará em votar PS. Este eleitor quer o Bloco, mas não quer o Bloco do seu programa político tout court, quer o Bloco como instrumento de moralização política do PS, de salvaguarda de um  programa mínimo de Estado-social (que a coligação PSD-CDS pôs em causa), e que sabe que o PS, sozinho, na verdade não é capaz de realizar.

No final de contas, o Bloco foi mais útil ao PS, do que o contrário. E razão parecem ter tido aqueles que em 2015 avisaram que a longo prazo o preço a pagar por esse compromisso poderia ser demasiado alto. Mas terá sido um erro do Bloco ou uma condição inevitável da sua evolução política? É certo que o Bloco traçou um rumo em direcção a um espaço político que parecia esvaziado, mas que acaba por «morrer» porque o PS, habilmente, consegue reocupá-lo e constituir a ilusão de que é um «partido de esquerda», ou de «centro-esquerda», quando as suas políticas, quer em termos laborais, quer em termos sociais e económicos, vivem numa tal ambiguidade que só a habilidade política de António Costa permite legitimá-las enquanto tais.

Ora, aquilo que se torna particularmente relevante é que a polarização esquerda-direita, que vem desde os tempos da Pàf (PSD-CDS) mas que tem sido levada a cabo, sobretudo, pelo Chega e pela Iniciativa Liberal nos últimos anos, teve esse papel instrumental: fazer do PS aquilo que ele definitivamente não é ou já não é ou nunca foi: um «partido de esquerda». Mas essa estratégia de denúncia do «socialismo» acabou por ter um efeito paradoxal: arregimentou em torno do PS todo um eleitorado preocupado em defender o Estado Social e as «conquistas de Abril». E, sobretudo, conseguiu a proeza de colocar um conjunto considerável de eleitores a votar num partido que leva a cabo a mesma política de desmantelamento do Estado social e de liberalização económica, ainda que de forma dissimulada, acabando por lesar, afinal de contas, os interesses e valores políticos de que são defensores.

O apelo apaixonado de Chega e IL de que é preciso acabar com o «socialismo em Portugal» serve assim dois propósitos: mobilizar e organizar uma nova base eleitoral de direita, mas, por outro lado, esvaziar a esquerda, retirar espaço de representação à CDU e ao Bloco, encostá-los às margens do sistema político enquanto partidos da «esquerda radical», quando, na verdade, estes são os últimos representantes daquilo que resta do programa político da Social-democracia em Portugal e da defesa do Estado social. Não é por acaso que o PCP encontrou na defesa da Constituição de Abril um dos motes da sua acção.

Aqueles que em 2015 avisaram do erro que seria colocar a CDU e o Bloco no arco da governação com o PS, teriam, de facto razão, mas também não deixam de cultivar uma ilusão: a de que é possível cumprir um programa político anticapitalista permanecendo dentro da esfera da democracia representativa, isto é, no Parlamento, jogando com os instrumentos, com os meios e as formas políticas, disponibilizadas por este sistema. E, no entanto, aqueles que defenderam esse outro rumo, parecem situar-se no fim de uma outra ilusão: a que seria possível constituir uma política de gestão do capital à esquerda, reformista, na defesa do Estado social e dos direitos dos trabalhadores, actuando dentro da esfera da governação e da Assembleia. A história tem de facto a tendência para se repetir inúmeras vezes quer como farsa quer como tragédia.

 

3. De que se pode falar numa campanha?

A fórmula é, portanto, simples: a extrema-direita que emergiu da crise financeira global como a grande ameaça do centro político, tornou-se na «ameaça» que o sistema precisa para sobreviver (como, aliás, escreve Luhuna Carvalho, em A utilidade de Ventura). A função do Chega e da Iniciativa Liberal corresponde, portanto, a um duplo objectivo: fazer surgir essa «nova direita» e deslocar todo o espectro político para a direita, convertendo o programa social-democrata num programa da esquerda radical, legitimando e naturalizando o avanço neoliberal. Nada tão contraditório com o actual momento em que vivemos: as mesmas políticas neoliberais que estão na origem do movimento catastrófico do capital e das actuais crises (sociais, económicas, climáticas) são apresentadas como a única solução. Esse é o triunfo tautológico da lógica política do capital: forças políticas que se legitimam através catástrofe que elas próprias não cessam de produzir

Ora, aquilo que se revelou uma verdadeira catástrofe foi a própria campanha eleitoral. Nenhuma questão relevante foi discutida: emergência climática, offshores e fuga de capitais, desigualdades económicas, precariedade laboral, privatização de sectores fundamentais da vida colectiva, crises migratórias e mão-de-obra imigrante despojada de direitos políticos e sociais, assimetrias nacionais e regionais, modelos de agricultura intensiva e de exploração que colocam em causa os recursos naturais, etc. A campanha eleitoral revela o lugar que a política realmente ocupa na sociedade do capital: pura gestão técnica do jogo de interesses interno dos vários sectores económicos, pura gestão técnica do nada, daquilo que já está previamente decidido e que não pode ser de outra maneira e que não pode senão tornar-se um entretenimento. Se, por vezes, chegamos a pensar, num assomo de iluminação consternada, que a comunicação social é de «direita» (porque dá voz à direita e desvaloriza a esquerda), não é porque esta esteja a ser parcial, mas porque ela exprime a razão e os limites do sistema político: a configuração institucional de um sistema em que a esquerda apenas é incluída na medida em que legitima a democracia enquanto sistema da pluralidade.

É esse o «dilema da esquerda» e esse dilema implica reconhecer que a arena da democracia representativa, com os seus órgãos de comunicação, com as suas instituições, protocolos, modelos, não admite que um certo tipo de problemas possa ser levantado sem correr o risco de se transformar numa paródia nacional. Sendo verdadeiramente justo: Catarina Martins, João Oliveira e João Ferreira, fizeram uma boa campanha, são os únicos que, de facto, expõem de forma quase didáctica a natureza de um programa político, das suas consequências e objectivos. Mas se propostas como a desprivatização da EDP ou da REN, são apelidadas de «aventureiras», não é apenas porque têm um custo económico, mas porque têm um custo político, ou melhor, uma razão política, cuja argumentação e demonstração nada podem contra a vox populi fabricada de uma esquerda sonhadora e utópica que não sabe como é a realidade. Mas quanto dinheiro público e europeu é usado a fundo perdido para financiar empresas e projectos de inovação e de empreendedorismo? Quanto dinheiro público foi usado para apoiar o sistema bancário privado? E quanto dinheiro público (em forma de fuga de impostos) escapa ao Estado através dos offshores por culpa da manutenção de um enquadramento político e jurídico do Estado que permite tudo isto. Em suma, o limite do espaço que o Bloco (e o PCP) quiseram ocupar é aquele da realpolitik. Neste espaço ou se joga com os truques do ilusionismo político e do populismo (porque o populismo é o fundamento de toda a política na sociedade do capital), ou, então, está-se condenado a perecer infinitas vezes. A campanha eleitoral demonstrou isso mesmo: ela não é o momento do confronto e do debate político, mas o momento de anulação daquilo que de política ainda resta na política.

 

4. Neoliberalismo e formas da política

O sucesso do neoliberalismo não está apenas na afirmação vitoriosa de um sujeito empreendedor absolutamente individualizado, subjectivado à imagem do mercado, mas está na destruição do quadro político da Social-democracia e das suas instituições, consolidado desde o final da Segunda Guerra Mundial na Europa e, por isso mesmo, também, na destruição dos modelos políticos de resistência que a esquerda encontrou para si e onde a arena da democracia representativa se constituía como um instrumento central de uma luta progressiva contra o capitalismo. O neoliberalismo destruiu todas essas formas que organizavam a política de resistência no quadro da esfera legitimada da democracia: os grandes contentores colectivos da luta e da emancipação política de massa, os sindicatos, os partidos, a fábrica, o associativismo, as próprias universidades, vivem hoje uma morte lenta e penosa. Isto não significa que não haja uma politização crescente perante a violenta expressão do neoliberalismo – e, de novo, a vitória do PS demonstra o medo de uma política puramente neoliberal tal como foi tentada por Passos Coelho durante os anos da Troika – mas significa que essa politização tem de encontrar novos espaços, novas formas, novos modelos, uma nova linguagem política inclusivamente, capaz de responder à nova configuração política e social que o neoliberalismo instituiu de forma violenta e rápida.

Será interessante recuar um ano e perceber como nas eleições presidenciais de 2021, em que André Ventura apareceu pela primeira vez com expressão política nas sondagens, o voto útil desencadeou exactamente o mesmo resultado: uma votação expressiva em Marcelo Rebelo de Sousa e um fraco resultado dos candidatos da esquerda. Na altura, e correndo o risco de repetição, terminava um artigo, chamado A lógica política do Capital, desta maneira:

«Não há divisão possível, as lutas intersectam-se: não é possível uma critica ecológica sem uma crítica do capital, não é possível uma critica feminista sem uma crítica dos modelos de dominação patriarcais do capital, não é possível uma crítica de classe sem compreender a sua composição, a sua multiplicidade étnica, sexual, racial. O problema está, sim, no movimento imparável do neoliberalismo e no modo como se podem construir formas-do-comum num mundo totalmente privatizado, tanto politicamente como economicamente, sabendo de antemão que os modelos de acção reformista a partir das instituições da social-democracia e os modelos de luta revolucionária a partir das grandes instituições do trabalho dificilmente se podem hoje constituir como locais políticos de batalha. E quando refiro formas-do-comum não estou a invocar a idealização de uma vida em comum, futura, por vir, mas ao modo específico como se podem estabelecer e mobilizar formas de participação política, associação e militância, capazes de perturbar e enfrentar a nova estabilidade formal do campo político do neoliberalismo»

 

 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Do filme de João César Monteiro, «Que farei com esta espada?», 1975.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 31.01. 2022

Edição #34 • Inverno 2022 •