1.
«Loucos e sábios», o artigo que Jacques Rancière escreveu sobre Donald Trump e a composição política
dos seus apoiantes, publicado no Jornal Punkto, poderá ser uma ferramenta útil
para compreender não apenas o confuso «mapa» político americano, mas também, por
cá, a expressão cada vez mais forte da extrema-direita, após as eleições
presidenciais de Janeiro de 2021. Ora, mais do que cair em leituras sociológicas
e psicológicas demasiado apressadas, como refere o próprio Rancière, talvez
seja importante reconhecer que a lógica que dá votos a alguém como André
Ventura não pertence ao domínio do irracional, mas tem uma racionalidade que é,
na verdade, a da própria democracia e do funcionamento das suas instituições.
2.
Mas será preciso lembrar, primeiro, que o
povo não existe constrói-se: é sempre uma construção política
determinada, feita a partir de um conjunto específico de sistemas,
comunicações, instituições. Dito isto, a «cultura do ódio» não é mais do que a manifestação
da lógica que fundamenta a própria democracia: a «lógica da desigualdade», a
«paixão da desigualdade», aquela que, como escreve Rancière, permite que haja
sempre «uma superioridade da qual podemos participar», «onde cada inferior é
capaz de encontrar um inferior e desfrutar da sua superioridade sobre ele». Os eleitores de Trump e de Ventura pertencem a
essa lógica política: não se trata de um sentimento de injustiça contra a
desigualdade crescente, mas antes, de manter a todo o custo a desigualdade
existente e a sua posição de superioridade na lógica hierárquica do capitalismo
liberal. E essa «cultura do ódio» não é obra de «camadas sociais carentes» mas,
como escreve Rancière, «produto do funcionamento das nossas instituições (…) uma
forma de fazer-povo, uma forma de criar um povo». Claro, podemos acrescentar, que
a lógica do ódio se torna tanto ou mais expressiva ou aguda quanto mais essa
superioridade vai carecendo de um fundamento material. Em todo o caso, como
escrevia algures Sartre, se o anti-semitismo teve tanta força nos anos trinta foi
precisamente porque permitiu dar aos desapossados de qualquer propriedade e de
qualquer poder económico, um outro sentimento de propriedade, agora em
nome da nação, da pátria e do sangue.
Se é verdade que em pano de fundo estão todas
as aporias e contradições de uma democracia (representativa e liberal) que «garante»
a igualdade no plano político, mas nunca no plano social e económico – porque
isso seria contrário à própria lógica do capital –, também é verdade que nessa identificação
mística entre um colectivo e um individuo que encarna o seu poder (e que estabelece
a lógica da representação), qualquer direito político delegado não é mais que a
expropriação de toda a política. E, neste sentido, a política do ódio é, de
facto, a expressão pura da lógica da desigualdade, o esforço de manter uma
posição intacta no sistema de superioridade-inferioridade continuamente gerado
pelo capitalismo liberal, mas é também o reflexo distorcido e monstruoso no espelho,
que revela o princípio da expropriação em que assenta toda a política actual.
3.
Ora, tão preocupante como a ascensão de André
Ventura é a sublimação que é conferida a esse novo delfim do liberalismo, Tiago
Mayan, pela comunicação social. Ainda
que a pandemia tenha refreado os ânimos neoliberais, face à súbita descoberta da
necessidade de Estado, agora que um novo inimigo externo entrou nos cálculos e
considerações do pensamento político, a celebração épica da nova “onda liberal”
portuguesa, como se estivéssemos a falar de um canto dos Lusíadas, demonstra
apenas a “dificuldade” em perceber como Mayan não é senão a outra face de André
Ventura. Onde está um Mayan haverá sempre um Ventura. Eles são as duas faces
mais evidentes da mesma moeda, do mesmo capital, da mesma lógica política de
desigualdade do liberalismo: onde Mayan abre caminho com a destruição criativa da
“Iniciativa liberal” na desagregação absoluta do corpo social, na expansão
infinita da lógica da desigualdade, Ventura estará lá, na retaguarda, pronto a
recolher os despojos e as cinzas que restam dos postulados ideológicos inverificáveis
do liberalismo para criar a IV República. As contradições políticas e a
incoerência ideológica não estão apenas em Ventura, estão em Mayan, estão nos
postulados do liberalismo apresentados pelos media, pelos comentadores,
pelas instituições da democracia, como postulados inverificáveis, como
realidades evidentes e naturalmente aceites por todos.
É por isso que a comunicação social tem
um fascínio tão mórbido pela Coreia do Norte, porque só assim o liberalismo se
pode auto-verificar e auto-legitimar, isto é, por negação: não por aquilo que é
– o que é desde logo impossível porque os seus efeitos e consequências são na
verdade miseráveis – mas por aquilo que não é. Tal como o capitalismo tende
para a acumulação de capital na forma do monopólio, esmagando lentamente a
lógica da concorrência que o funda, também o liberalismo, como ideologia
política, tende para acumulação de poder, na forma da ditadura, esmagando a
lógica política do individualismo democrático. E essa é a sua aporia: a
democracia não é a forma política por excelência do liberalismo, é apenas o
meio político de legitimar e dissimular a desigualdade do capital, de o
transformar em liberté, egalité, fraternité, até ao ponto da sua
inverificabilidade.
O «povo de Trump», o «povo de Ventura»,
não são senão o «povo do Liberalismo», que tem de existir para assegurar a
lógica da desigualdade do capital. Ele está sempre aí, pronto a formar-se como
fantasma ou como milícia, pronto a constituir-se como perigo. Ele é, aliás, o
perigo de que o liberalismo precisa para sobre-viver e que ao mesmo tempo não
cessa de o ameaçar: ele é a imagem daquilo que o liberalismo não pode senão vir
a ser.
4.
A luta política contra a extrema-direita
não se fará através da denúncia das suas mentiras, das suas inconsistências ou
mesmo da oligarquia das suas máquinas partidárias – está visto, aliás, que esta
estratégia redundou num fracasso – mas tem de ser a luta política contra os
princípios e fundamentos do próprio liberalismo, a exposição sem fim da sua
lógica de desigualdade política, social e económica; a exposição crítica dos
seus postulados ideológicos elevados à categoria de entidades inverificáveis,
metafísicas e transcendentes.
Não foram os eleitores de esquerda que
desapareceram nestas eleições, mas foi a esquerda que desapareceu do espaço
político, da estrutura mediática – muita razão tem o PCP quando refere a
ausência de comentadores políticos do seu espaço ideológico nos debates
televisivos. O discurso de esquerda tornou-se, hoje, mais do que nunca
impossível, internamente ameaçado pelas tensões históricas que o constituíram e
o desmultiplicaram, externamente descredibilizado pelo aparato mediático: nem
os valores mais altos da Constituição Portuguesa e do Estado social, são
suficientes para construir uma agenda política eficaz, subjectivadora e
mobilizadora. Não sendo apenas falta de habilidade política, é porque o campo
de batalha do espaço político está, como sempre esteve, constitutivamente
minado, limitado, impossibilitado: esse campo onde os postulados da igualdade
social, da emancipação política, da crítica das formas de exploração e domínio
da lógica da desigualdade são colocados numa simetria política bloqueadora e
caricatural: a extrema direita é a extrema esquerda, o fascismo é o comunismo.
5.
A reflexão sobre os limites da esquerda
estará certamente aí, mas estará também presente a um outro nível. Se o
neoliberalismo implicou, desde os anos oitenta, a erosão do espaço político e
institucional da social-democracia, com a privatização do Estado Social, dos
seus serviços públicos e dos direitos constitucionais, ele também tornou
obsoleto todo um modo de conceber as formas de resistência, de acção e de crítica
política a partir da esquerda, fortemente ancoradas num regime produtivo de
massas e numa política altamente colectiva em torno das instituições do Estado
Social. O neoliberalismo não afirma apenas o individualismo na lógica económica
da desigualdade (através do empreendedorismo, da precariedade laboral, da
atomização das formas de trabalho e de produção de valor), mas faz dele um
princípio político absoluto. E se a pandemia teve a aparente virtude de refrear
esse processo imparável de privatização social e económica, cuja última figura
será a IV República de Ventura, recolhidos os destroços e as cinzas, por outro
lado, parece óbvio que a esquerda enfrenta uma equação difícil: como construir
uma política do comum, uma «lógica da igualdade» (económica, política e social),
quando os modelos, as formas tradicionais de agregação e associação através do
trabalho foram tornadas obsoletas ou apropriadas pelo neoliberalismo e de que
modo se podem criar outras formas, outros modelos de associação e militância, tendo
em conta que os efeitos e consequências da gestão liberal da pandemia não
auguram nada de bom?
À esquerda, a divisão, o problema, está
longe de ser entre aqueles que defendem as lutas anti-racistas, as lutas
ecológicas e os direitos das mulheres, dos imigrantes e das minorias lgbti, e
aqueles que defendem o primado irredutível de uma crítica do capital. Não há
divisão possível, as lutas intersectam-se: não é possível uma critica ecológica
sem uma crítica do capital, não é possível uma critica feminista sem uma
crítica dos modelos de dominação patriarcais do capital, não é possível uma
crítica de classe sem compreender a sua composição, a sua multiplicidade étnica,
sexual, racial. O problema está, sim, no movimento imparável do neoliberalismo
e no modo como se podem construir formas-do-comum num mundo totalmente
privatizado, tanto politicamente como economicamente, sabendo de antemão que os
modelos de acção reformista a partir das instituições da social-democracia e os
modelos de luta revolucionária a partir das grandes instituições do trabalho
dificilmente se podem hoje constituir como locais políticos de batalha. E quando
refiro formas-do-comum não estou a invocar a idealização de uma vida em comum, futura,
por vir, mas ao modo específico como se podem estabelecer e mobilizar formas de
participação política, associação e militância, capazes de perturbar e enfrentar
a nova estabilidade formal do campo político do neoliberalismo.
•
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Um cartaz da Iniciativa Liberal (imagem via Rádio Renascença)
Ficha Técnica
Data de publicação: 25.01.2021
Edição #30 • Inverno 2020 •