Rui Rio, «homo populi» • Pedro Levi Bismarck

 


 

A campanha de Rui Rio foi bastante inteligente, não na forma de exposição de qualquer conteúdo político, mas na postura que adoptou tanto nos debates como nas «arruadas». Foi talvez o primeiro a perceber que o melhor modo de tirar votos a André Ventura não seria pelo conteúdo das propostas políticas, mas imitando um «género», um «tipo político», se assim o podemos chamar, bastante particular e característico. De uma forma ou de outra, esse estilo já tinha sido experimentado nas campanhas autárquicas do Porto. Um «tipo», ou melhor, uma personagem política que assenta numa espécie de populismo: não aquele populismo das propostas políticas, mas um populismo de estilo, de «carácter»: Rio, «homo populi», «homem do povo», que consegue falar a sua linguagem e que, portanto, consegue traduzir o seu modo de pensar. Essa mimetização dos gestos e da linguagem é evidente no modo como Rio organiza o seu discurso, os seus gestos, a sua postura. Não há nada de espontâneo, autêntico e honesto em Rio (ao contrário do que habitualmente a comunicação social gosta de dizer). A entrada em cena do Zé Albino e do humor brincalhão de Rio exemplificam os traços dessa personagem cuidadosamente preparada e encenada, que tirou partido absoluto do formato da campanha, transmitida em directo e transformada num entretenimento ininterrupto e sem fim. O humor, a piada burgessa, o sorriso gozão, as tiradas e as butades, constroem uma personagem que consegue reproduzir todos os lugares comuns da política, mas, simultaneamente, dissimulando-os, menorizando o conteúdo em nome da forma e do estilo. Nisso, o analista mais atento da postura de Rui Rio foi Ricardo Araújo Pereira, que captou bem a estratégia política do humor de Rui Rio.

Uma das características mais «fascinantes» da política do Estado novo, foi a criação de uma ideia de «arquitectura portuguesa» como uma entidade homogénea e única, dotada de um conjunto de atributos formais específicos. A famosa «casa portuguesa», à moda de Raul Lino, com os seus beirais, telhados, chaminés, vasos, um certo tipo de janelas e portas, era uma mescla ou uma «sínteses» de vários elementos arquitectónicos que iam das casas do Minho às casas do Algarve, inventando um estilo nacional absolutamente artificial, mas que servia a política nacionalista e identitária do Estado Novo, definindo aquilo que deveria ser a boa «casa portuguesa» e obviamente o «bom português».

Ora, é exactamente isso que Rui Rio faz quando encena um certo modo de falar e de estar à «maneira do povo». O sucesso daqueles que falam à «moda do povo», «como o povo», «para o povo», não está na sua capacidade de falar como «eles», porque eles, o «povo», como entidade única e homogénea, do Minho ao Algarve, na verdade, nã0 existe. O seu sucesso, o sucesso de Rio, está precisamente na capacidade de reunir e sintetizar todo um conjunto de atributos distintos (como na casa portuguesa) aptos a encená-lo não apenas como «homo populi», mas a encenar a figura, a imagem, do próprio povo. E, neste sentido, o sucesso de Rio está, precisamente, em oferecer-se como espelho, capaz de fazer aparecer no terreno da política e, obviamente, no terreno da televisão, o próprio povo, imaginado e ficcionado. Aquilo que vemos nas imagens das «arruadas» não é Rio, mas é a imagem desse «povo», reconstituído e reunido, na imagem epifânica e kitsch de Rui Rio.

O ponto essencial da crítica de extrema-direita é a corrupção da classe política no seu todo, os seus privilégios e regalias, a sua presença num sistema circular de favoritismos e nepotismo. É esse sentimento que alimenta a verve de André Ventura e arregimenta votos. É essa divisão entre «nós, povo» e «eles, políticos» que mobiliza a extrema-direita e que permite anular a divisão esquerda-direita e incorporar a esquerda no seu todo como elemento de legitimação do sistema (muito há a dizer sobre isto, mas o essencial podemos ler no texto de Luhuna Carvalho,  A utilidade de Ventura). De novo, o sucesso de Rio, o sucesso da sua personagem está em situar-se sobre essa fractura, situar-se no campo do «nós, povo». No mesmo sentido, o erro estratégico de António Costa, não está tanto nos apelos à maioria absoluta, mas precisamente em oferecer-se como a imagem plena do «estadista», do «homem de governo», numa altura em que essa imagem, essa figura, aparece profundamente abalada por todos os casos de corrupção que atravessam e perfazem a estrutura do sistema democrático.

Posto isto, fica por dizer aquilo que todos os que vivem no Porto e atravessaram os mais de dez anos de Inverno autárquico de Rio sabem que aconteceu: uma vez terminada a campanha, Rio voltará a ser aquilo que sempre foi: um «eles, políticos». E, por mais radicais que sejam as declaração de Rosa Mota, que chegou a apelidar o antigo presidente da Câmara do Porto de «nazizinho», é certo que o autoritarismo, a prepotência e a cultura de silenciamento dos anos de Rio, ficaram bem marcadas não só no imaginário colectivo, mas também em algumas instituições públicas da cidade, até aos dias de hoje. Mas também ficou bem marcado a incoerência e a incongruência política de Rui Rio em tantas áreas, mesmo dentro da sua própria formação ideológica. E não foi só na cultura, foi na gestão da própria cidade a tantos níveis: na destruição sistemática do centro histórico, na alienação desregrada de património público, na administração desajustada da habitação (pública e social) e do espaço urbano da cidade e, por fim, numa política de entretenimento bacoca que produziu uma cidade inóspita e inabitável. Anos de chumbo, tão terríveis, que até fizeram aparecer Rui Moreira como anjo salvador.

 

 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Rui Rio durante uma arruada. Imagem via sicnoticias.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 28.01. 2022

Edição #34 • Inverno 2022 •