A Guerra dos Mundos • Franco "Bifo" Berardi




 

Uma previsão

Muitos tinham a ilusão de que a vitória de Biden daria início a uma era um pouco menos brutal que a de Trump. O contrário é verdade. Biden já deportou mais migrantes do que o antigo presidente em quatro anos, e as suas promessas Rooseveltianas não resistem à prova do Congresso, enquanto que em Minneapolis um referendo recusou a reforma da polícia local. Humilhado perante o mundo inteiro por aqueles que dizimaram o World Trade Center, há vinte anos, Biden é levado a acções dementes tais como a criação do AUKUS [1], o fornecimento de submarinos atómicos à Austrália, e o início de uma guerra suicida contra a China. Os danos políticos e económicos infligidos à França e à Europa são a prova de uma vocação belicosa e supremacista, que faz lamentar Trump.

1. O AUKUS (acrónimo, em inglês, das três nações signatárias) é um pacto militar de segurança, trilateral, assinado entre a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos da América, anunciado a 15 de Setembro de 2021.

Tranquilo, não vamos morrer de calor

Parece que depois deste Verão de incêndios e furacões, mais de 50% dos adolescentes estão ansiosos, porque temem que possam acabar por morrer devido às alterações climáticas. Podem estar tranquilos: muito provavelmente, ainda antes do calor ou de uma tempestade, morrerão de uma guerra destinada a ter início no Extremo Oriente, mas que não se limitará a essa área, e não será, como se diz no jargão macabro dos militares, convencional.

Antes de mais, a criação do AUKUS é um acontecimento cujas causas, significado e, sobretudo, as consequências prováveis devem ser analisadas. Esta aliança surge um mês depois da amarga humilhação afegã e representa uma tentativa de reagir à crise de credibilidade americana, assim como ao desastre do Brexit. Um presidente americano que está a perder o apoio interno e é impotente perante a húbris islamista alia-se a um primeiro-ministro britânico que é incapaz de enfrentar a desintegração do Reino Unido. A união dos três países, que encarnam a nostalgia do Império Britânico, o racismo australiano redneck e o nazismo norte-americano, está a empurrar-se para um abismo.

Na Europa, por outro lado, a morte cerebral da NATO, segundo as palavras de Macron, a desconexão entre os anglo-americanos e a UE, e as posições divergentes no seio da União entre aqueles que preferem seguir os primeiros e aqueles que gostariam de relançar um programa de rearmamento europeu, são temas que crescem com insistência.

 

Três mundos em rota de colisão

Aqueles que deram este passo parecem ser amadores às escuras, tal como Bush, que foi a um porta-aviões para declarar que a missão havia sido cumprida. Estes ignorantes acreditam que o confronto com a China é uma repetição da Guerra Fria anti-soviética. Mas não é. De modo algum.

O confronto com a URSS foi um contraste ideológico entre duas potências capazes de compreender os motivos um do outro, porque ambas eram expressões da cultura branca e cristã. Os confrontos com o Islão e a China têm um carácter completamente diferente, porque não têm fundamento ideológico nem estão enraizados numa história de poucas décadas, como a que opõe o liberalismo e o socialismo.

Os três mundos que entram agora em rota de colisão são antropologicamente estranhos e esta alteridade não é política, mas antes psicocultural. É possível despejar milhões de toneladas de explosivos, prender, torturar e matar centenas de milhares de civis inocentes, como os ocidentais fizeram no Iraque e no Afeganistão, mas isto não altera nada a nível psicocultural, pelo contrário, aprofunda o ódio, a alienação irredutível. Os ocidentais são impotentes face a uma cultura que lhes é alheia, como vimos em Cabul, mas infelizmente os três mundos diferentemente totalitários – o chinês, o islâmico e o anglo-americano, com o seu apêndice europeu – são suficientemente poderosos para pôr em marcha uma deriva que nos pode conduzir rapidamente a uma guerra nuclear. Porque é com isso que estamos a lidar agora, pela primeira vez desde a Guerra Fria. Os pontos de precipitação do conflito são visíveis a olho nu: Taiwan, Coreia e Irão. Não esqueçamos o facto de o Irão e a China terem formado recentemente uma aliança militar com a duração de 25 anos. A estratégia AUKUS coalesce efectivamente os inimigos mortais do Ocidente, porque a classe dominante ocidental considera o seu domínio económico e militar, a superioridade da raça branca e anglo-saxónica e, claro, a predilecção de Deus, como sendo eternas.

 

Capitalismo e Ocidente não são a mesma coisa

Se é verdade que o Ocidente é capitalista, o contrário não é verdade: o capitalismo não se identifica apenas com o Ocidente, nem se reduz aos seus modelos epistémicos e antropológicos. E na fábula que é impressa diariamente em jornais nacionais como o La Repubblica, em Itália, segundo a qual o capitalismo traz a democracia, já nem os mais imbecis acreditam. A prova está no facto de a China, uma potência não ocidental, profundamente estrangeira e inacessível à compreensão do Ocidente por razões não políticas, mas históricas e antropológicas, estar claramente a ganhar a competição económica, apesar de ser completamente incompatível com o modelo liberal-democrático.

O capital não tem aversão pela China; pelo contrário, prefere-a e recompensa-a. O colectivismo chinês nada a tem a ver com o comunismo, antes tem muito a ver com o enxame, ou seja, com a cadeia de automatismos tecno-linguísticos que percorrem o corpo colectivo do grupo étnico Han, fazendo com que este bilião de cérebros flua sem resistência (sem a resistência determinada pela formatação individualista da cognição ocidental). É por isso que a China está a ganhar a corrida do capitalismo automatizado, que é desencadeada pelo automatismo cognitivo ao qual o individualismo ocidental não se submete tão facilmente. É por isso que a China ganhará a guerra nuclear que a AUKUS declarou, isto assumindo que no final ainda há alguém para determinar quem ganhou e quem perdeu. O Ocidente, que embora capitalista não é o capitalismo, só gosta de competição quando a ganha. E agora está a perdê-la. Já não é um vencedor e, como tal, o Ocidente não está a aceitar o veredicto dos mercados, estando a preparar o Armagedão. A resposta chinesa, até agora, tem sido bastante britânica, desinteressada, irritada, desdenhosa. O Império Celestial não se deixa intimidar por estas pequenas questões. O Ocidente está a cair no caos e a China está a prevalecer, totalitarismo contra totalitarismo. A guerra dos mundos está a aproximar-se. É por isso que é necessário preparar uma insurreição impensável, mas urgente.

 

 

Franco “Bifo” Berardi

Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de destaque no operaísmo italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação com os média e a produção cultural. Fundou a Radio Alice, primeira rádio livre em Itália (1976-1978), e a revista A/traverso (1976-1981), que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária. Exilado em Paris, trabalhou com Felix Guattari em esquizoanálise. Desde os anos 1990 que o seu trabalho tem incidido sobre a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e capitalismo.

 

Nota da edição

O texto de Franco “Bifo” Berardi foi originalmente publicado em italiano, no número #19 da revista Arts of the Working Class e encontra-se disponível em acesso aberto em http://artsoftheworkingclass.org. A versão que aqui se publica foi traduzida para português pelo Jornal Punkto. 

 

Imagem

1. Tempestade de fogo sobre Hiroshima, 6 de agosto de 1945, ©National archives.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 09.01.2022

Edição #34 • Inverno 2022 •