Tanto
comentador, tanto comentário político, e, no entanto, as análises à vitória de
Carlos Moedas parecem um pouco frugais, entregues às habituais «leituras
nacionais» e aos «cartões laranjas».
É
relativamente fácil encontrar razões para os votos que Fernando Medina perdeu,
o que, sem dúvida, se relacionará com as políticas (urbanas e de habitação) que
este tem vindo a seguir nos últimos anos em Lisboa. Mas deste ponto de vista,
Moedas nada trará de substancialmente diferente, bem pelo contrário. E os votos
que Medina perdeu dificilmente foram para a coligação de direita. Neste
sentido, mais do que uma qualquer união da direita ou de uma performance
extraordinária durante a campanha, as razões da vitória «surpresa» de
Moedas só podem ser compreensíveis à luz de um outro factor tão silencioso como
derradeiro: as sondagens, ou melhor, a
percepção que estas foram construindo na opinião pública de uma vitória
inevitável (e até de uma maioria absoluta) por parte de Medina. Por exemplo, o
título do Jornal Público de 30 de Agosto não deixava dúvidas: «Sondagem em
Lisboa: Medina quase duplica intenção de voto em Moedas».
Não
é evidente se a derrota de Medina se deveu à desmobilização do eleitorado
socialista ou a uma transferência de votos para outros partidos (fugindo ao
desígnio pragmático do voto útil), mas parece claro que as sondagens jogaram
aqui um papel fundamental na reconfiguração das expectativas políticas dos eleitores
(ainda para mais tendo em conta que não houve nenhum episódio político
relevante, nenhuma gaffe por parte de Medina, que pudesse ter posto em
causa o rumo da campanha).
Certamente
que há muito que a ciência política debate o paradoxo constitutivo da sondagem:
isto é, o facto de esta ser um instrumento de leitura de uma realidade que
ela própria não cessa de alterar e produzir. Se não existissem sondagens,
se a real dimensão do voto não pudesse ser auscultada previamente (e inúmeras
vezes), teria Medina ganho ou perdido estas eleições? Uma pergunta certamente
sem resposta, mas que nos garante (pelo menos) que aqueles que desvalorizam as
sondagens serão certamente os menos letrados politicamente. E, no entanto, será
lícito aceitar de forma tão pueril a neutralidade política da sondagem? Será
lícito fazer da sondagem um elemento do jogo político democrático, sabendo que
a sua neutralidade é impossível e, sobretudo, sabendo que ela própria institui
instrumentos de avaliação do poder democrático que não só não são acompanhados
ou verificados, como permanecem nas zonas mais escuras e opacas das empresas de
sondagens?
Se
as antigas práticas adivinhatórias davam também pelo nome de práticas
propiciatórias é porque aqueles que queriam saber o futuro, estavam tão
interessados em sabê-lo como em propiciá-lo, isto é, em controlá-lo.
Ora, sondagens e comentadores políticos (não são estes os verdadeiros oráculos
capazes de desocultar o insondável político?) são, de facto, a continuação das
artes propiciatórias por outros meios, mas sobretudo, por outros media.
Ora, se há uma afinidade secreta entre a sondagem e os media (que
legitima e reforça a presença da primeira no sistema geral da comunicação
social) é, precisamente, porque o mecanismo da sondagem encerra todo o segredo
da grande utopia e da grande magia mediática (no qual o jornalismo se insere
inevitavelmente) enquanto grande oráculo capaz de conter em si mesmo todos os
futuros possíveis, todas as realidades existentes. Também aqui podemos detectar
o mesmo movimento identificado na famosa «dialéctica do iluminismo» de Adorno e
Horkheimer: só a confiança extrema na sua racionalidade objectiva pode levar o
jornalismo a um tal grau de cegueira relativamente a si mesmo. «Aquele que
controla o passado, controla o futuro», escrevia Orwell em 1984, mas bem
poderíamos dizer, invertendo os termos da equação, que aquele que controla o
futuro, já controla o presente.
•
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Capa do jornal Novo de 16 de Abril de 2021.
Ficha Técnica
Data de publicação: 29.09. 2021
Edição #33 • Outono 2021 •