Meditações Medinianas • Pedro Levi Bismarck





Tanto comentador, tanto comentário político, e, no entanto, as análises à vitória de Carlos Moedas parecem um pouco frugais, entregues às habituais «leituras nacionais» e aos «cartões laranjas».

É relativamente fácil encontrar razões para os votos que Fernando Medina perdeu, o que, sem dúvida, se relacionará com as políticas (urbanas e de habitação) que este tem vindo a seguir nos últimos anos em Lisboa. Mas deste ponto de vista, Moedas nada trará de substancialmente diferente, bem pelo contrário. E os votos que Medina perdeu dificilmente foram para a coligação de direita. Neste sentido, mais do que uma qualquer união da direita ou de uma performance extraordinária durante a campanha, as razões da vitória «surpresa» de Moedas só podem ser compreensíveis à luz de um outro factor tão silencioso como derradeiro:  as sondagens, ou melhor, a percepção que estas foram construindo na opinião pública de uma vitória inevitável (e até de uma maioria absoluta) por parte de Medina. Por exemplo, o título do Jornal Público de 30 de Agosto não deixava dúvidas: «Sondagem em Lisboa: Medina quase duplica intenção de voto em Moedas».

Não é evidente se a derrota de Medina se deveu à desmobilização do eleitorado socialista ou a uma transferência de votos para outros partidos (fugindo ao desígnio pragmático do voto útil), mas parece claro que as sondagens jogaram aqui um papel fundamental na reconfiguração das expectativas políticas dos eleitores (ainda para mais tendo em conta que não houve nenhum episódio político relevante, nenhuma gaffe por parte de Medina, que pudesse ter posto em causa o rumo da campanha).

Certamente que há muito que a ciência política debate o paradoxo constitutivo da sondagem: isto é, o facto de esta ser um instrumento de leitura de uma realidade que ela própria não cessa de alterar e produzir. Se não existissem sondagens, se a real dimensão do voto não pudesse ser auscultada previamente (e inúmeras vezes), teria Medina ganho ou perdido estas eleições? Uma pergunta certamente sem resposta, mas que nos garante (pelo menos) que aqueles que desvalorizam as sondagens serão certamente os menos letrados politicamente. E, no entanto, será lícito aceitar de forma tão pueril a neutralidade política da sondagem? Será lícito fazer da sondagem um elemento do jogo político democrático, sabendo que a sua neutralidade é impossível e, sobretudo, sabendo que ela própria institui instrumentos de avaliação do poder democrático que não só não são acompanhados ou verificados, como permanecem nas zonas mais escuras e opacas das empresas de sondagens?

Se as antigas práticas adivinhatórias davam também pelo nome de práticas propiciatórias é porque aqueles que queriam saber o futuro, estavam tão interessados em sabê-lo como em propiciá-lo, isto é, em controlá-lo. Ora, sondagens e comentadores políticos (não são estes os verdadeiros oráculos capazes de desocultar o insondável político?) são, de facto, a continuação das artes propiciatórias por outros meios, mas sobretudo, por outros media. Ora, se há uma afinidade secreta entre a sondagem e os media (que legitima e reforça a presença da primeira no sistema geral da comunicação social) é, precisamente, porque o mecanismo da sondagem encerra todo o segredo da grande utopia e da grande magia mediática (no qual o jornalismo se insere inevitavelmente) enquanto grande oráculo capaz de conter em si mesmo todos os futuros possíveis, todas as realidades existentes. Também aqui podemos detectar o mesmo movimento identificado na famosa «dialéctica do iluminismo» de Adorno e Horkheimer: só a confiança extrema na sua racionalidade objectiva pode levar o jornalismo a um tal grau de cegueira relativamente a si mesmo. «Aquele que controla o passado, controla o futuro», escrevia Orwell em 1984, mas bem poderíamos dizer, invertendo os termos da equação, que aquele que controla o futuro, já controla o presente.

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

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Capa do jornal Novo de 16 de Abril de 2021.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 29.09. 2021

Edição #33 • Outono 2021 •