A campanha eleitoral das legislativas de 2022 veio revelar algo que até agora não era óbvio. André Ventura não é, por agora, a “ameaça à democracia” que se supunha, mas, pelo contrário, é a máquina respiratória que assegura a continuidade dessa democracia face à sua própria crise. Não porque Ventura se tenha afinal revelado um “moderado”, mas porque o restante espectro político encontrou modo de o encaixar e de o utilizar em seu proveito.
Para a esquerda liberal, que vota BE, Livre ou PS, Ventura encarnou o inimigo perfeito. É o vilão simultaneamente beto e burgesso que lhe permite expressar tanto o seu elitismo como o seu abrilismo. Descaracterizada pela sua participação na geringonça, pela expiação do seu passado de extrema-esquerda, pelo seu alheamento de tudo o que se passe para lá dos grandes centros urbanos, pela ausência de qualquer conteúdo político que não seja uma defesa abstracta da representatividade e da cidadania, a oposição a Ventura veio dar a esta esquerda a consistência ética que por si própria era incapaz de mobilizar. A sua crise de identidade passou para segundo plano quando encontrou na indignação contra Ventura a legitimação moral que lhe fugia.
Este processo tornou-se óbvio durante os debates televisivos. Os comentadores dos canais de notícias apressaram-se a afirmar que os debates entre o BE e o Chega ou entre o Livre e o Chega eram debates pouco interessantes porque esses partidos não disputam eleitorado. Estavam redondamente enganados. O BE e o Livre não disputam eleitorado com o Chega, mas disputam votos à esquerda, e a esquerda está desejosa de votar em quem conseguir calar André Ventura. É isso que explica o assomo de popularidade de Rui Tavares. Nenhum eleitor do Chega deixará de votar no Chega por ver alguém que tão facilmente personifica a caricatura do “intelectual de esquerda” a debater com o seu líder, mas Rui Tavares, eterno perdedor de eleições, elemento totalmente supérfluo no xadrez político, tornou-se numa estrela efémera do twitter porque se deu no eleitorado de esquerda uma percepção de que este tinha embaraçado Ventura, tal como tinha antes acontecido com Catarina Martins. A hipotética eleição de Rui Tavares, a ter lugar, deve-se inteiramente a ter conseguido passar a impressão de que “ganhou” o debate com Ventura, de que “castigou” Ventura, de que “humilhou” Ventura como ele nos tem humilhado a nós sem que tenhamos ainda conseguido responder.
André Ventura permite que uma esquerda despolitizada encontre um momento para encher o peito. O eleitorado e a militância da esquerda cosmopolita podem não querer programas radicais ou aventuras políticas, mas não resistem a encenar esse pequeno momento em que olham ao espelho e vê em si próprios um capitãozinho de Abril. Ventura é o último oásis onde a esquerda ainda se pode encontrar a si própria enquanto “radical”.
Para o PS, Ventura surge enquanto chantagem. Aqui o argumento será bastante simples: “o chumbo do orçamento colocou-nos um passo mais próximos do abismo e o PS é a última barreira ante o triunfo do fascismo”. O PS consegue assim autonomizar-se dos partidos à sua esquerda, que responsabiliza pelo iminente ingresso de dezenas de deputados de extrema-direita no parlamento, ajudado nisso por uma série de opinion-makers para lá de duvidosos. E consegue ainda distanciar-se de uma direita que se verá obrigada a ter Ventura em conta. Ainda assim, não deixa de ser impressionante ver uma parte substancial do voto que queria “dar um pontapé no estaminé” e abolir a discriminação estrutural deslocar-se para o PS, a quem devemos quase tudo o que há de estrutura e de estaminé. A ameaça de Ventura, de novo, vem legitimar o ilegitimável.
Para o PSD e mesmo para a IL, Ventura serve para alavancar alguma da abstenção em seu proveito. Ventura pode efectivamente roubar votos ao PSD e ao CDS, mas fá-lo mobilizando uma parte substancial da abstenção, e será essa abstenção a possibilitar um somatório de votos à direita capaz de superar a esquerda. Para além disso, a chantagem funciona em duplo sentido: será mais fácil ao PSD pressionar o PS ante a ameaça “se não governam connosco governamos nós com o Chega”.
Sobram nesta conta o CDS, para quem Ventura e a IL são trágicos, e o PCP, que justamente decidiu não entrar nesse jogo. O antifascismo é desde sempre um dos seus grandes traços identitários e são residuais os votos que disputa com o BE ou com o Livre. A ideia de que os seus votos se teriam transferido para Ventura foi em grande parte uma invenção mediática que fez bem em não levar a sério.
Quase todos os sectores políticos encontraram modo de utilizar Ventura ao mesmo tempo que este parece ter estancado o seu crescimento. A sua continuidade dependerá da capacidade de constituir o seu eleitorado enquanto subjectividade que o transcende, mas Ventura não revelou até agora qualquer inteligência capaz de manobrar esse processo.
A “normalização” de Ventura ocorreu não apenas pela atenção mediática que recebeu, nem apenas pelo modo ambíguo como a direita tradicional o encarou, mas também pelo modo como a esquerda o elegeu enquanto objecto de indignação. A esquerda agarrou-se a Ventura porque tem na verdade pouco conteúdo que colocar em cima da mesa. Ventura tornou-se na exterioridade que lhe dá consistência interna.
Isto, em si, não é necessariamente mau. A consciência de si, a consciência de comunidade, a consciência de classe, ocorre precisamente aquando do confronto com o outro, que desenha as esferas de amizade e inimizade necessárias a uma política que não seja apenas a gestão económica e legal de uma crise interminável. O que tem faltado a esta indignação contra André Ventura é que a sua inimizade, face à nossa amizade, assuma contornos concretos. Não se trata de berrar contra um boneco até à exaustão e ao desespero, trata-se de assumir duas coisas.
Primeiro, ante a crise climática, e ante as sucessivas crises financeiras e económicas, ou a esquerda assume um plano de ruptura política ou morre, passando a ser a ideologia residual de uma fração da classe média, transformando-se num misto de nostalgia impotente e ideologia da mediação infinita. Não é claro que isto não tenha já acontecido. Essa ruptura tem de passar pela proposta de um mundo diferente e não apenas pela gestão deste mundo.
Segundo, o antifascismo necessita de entender que o seu inimigo não é Ventura, mas o modo como Ventura viabiliza a continuação do desastre em curso. Ventura é um fantoche odioso, inventado para que tudo continue igual enquanto toda a gente se concentra nele. Ventura não é algo exterior “à nossa democracia”, que vem para a fazer tremer, ele é um produto criado para que a democracia sobreviva à sua própria crise, enquanto sucedâneo de democracia, enquanto extremo-centrismo. Hoje, a maior ameaça política não é o regresso do fascismo, é o nascimento de um centro radical que cumpra o propósito anteriormente assumido pelo fascismo, legitimado precisamente por não ser fascismo. Por mais saborosos que sejam esses momentos, cada vez que sorrimos com um jornalista da SIC a mandar uma boquinha a Ventura, cada vez que aplaudimos as tricas entre Chicão e Ventura, estamos a reforçar um consenso político que será a nossa cova.
O desastre não são os vindouros dez deputados do Chega, que serão apenas um reality show. O desastre é que tudo continue no rumo em que está.
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Luhuna Carvalho
Luhuna Carvalho nasceu em 1980, em Lisboa.
Imagem
1. Pedro Passos Coelho e André Ventura na convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL), 2021, ©Tiago Petinga/Agência Lusa.
Ficha Técnica
Data de publicação: 26.01.2022
Edição #34 • Inverno 2022 •