Psicodeflacção
significa alívio da tensão psíquica, por outras palavras, do stress. É esta a hipótese de onde partem
as Crónicas de Berardi: o coronavírus veio para nos obrigar finalmente a parar,
retirando os corpos de circulação e condenando o capitalismo à morte por
asfixia. A inércia e a passividade, mais do que a actividade e a vontade
política, são agora a principal ameaça ao sistema. O vírus, podemos dizê-lo,
funciona aqui como uma “estratégia fatal” no sentido de Baudrillard - autor que
será evocado várias vezes ao longo do texto das Crónicas.
E no entanto (ou precisamente por isso, por ser de “estratégias
fatais” que falamos), precisaríamos imediatamente de acrescentar que nada é tão
simples como parece. Porque, e para citar Baudrillard, “o enigma é o que há de
fatalidade em toda e qualquer estratégia, o que transparece de estratégia fatal
nas estratégias mais banais, [o enigma] é o objecto”
- e é também por aqui que devemos entender a proposta, decididamente
materialista, de Berardi, que nos convida a pensar a situação pandémica e as
suas implicações como o início de uma “revolução sem sujeito”. Seremos capazes?
Não sabemos, mas será que isso ainda importa?
Franco “Bifo” Berardi esteve em Lisboa em Outubro de 2018 para a
reabertura do Teatro do Bairro Alto. A conferência, intitulada “poesia e caos”,
partia do “I can´t breathe” proferido por Eric Garner, pouco antes de morrer
estrangulado às mãos da polícia. Logo nos primeiros minutos Berardi avisou-nos
sobre o tom apocalíptico do que iria dizer: falaria do clima irrespirável que
se vive - é de um problema de respiração que se trata. Citaria ainda aquela
frase de Keynes que nos ficou na memória: o inevitável nunca acontece, porque
acontece sempre o imprevisível. [1]
1. A
conferência integral encontra-se disponível online.
Nos
meses seguintes haveria de voltar a Lisboa uma outra vez ainda, naquela que
seria a sua última viagem antes da pandemia. [2]
Agora - no agora estendido em que o TBA decidiu publicar as suas
Crónicas da Psicodeflacção, que começaram em Março e ainda continuam,
perfazendo o conjunto aqui reunido o seu primeiro volume - parece que o
imprevisível é o que se está a viver, não porque uma pandemia fosse impossível
de prever, mas porque de facto não se sabe que mundo vai haver depois disto — e
que lugar, por exemplo, pode nele ocupar um teatro, que é um espaço que serve
para juntar pessoas. Ou a política: que lugar estará destinado à política na
“nova normalidade”, se é que algum?
Franco “Bifo” Berardi tem vindo a trabalhar desde os anos 1990 sobre
a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e capitalismo. Para
além de ser alguém claramente militante, figura de destaque do operaísmo
italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação
com os media e a produção cultural, tendo fundado em meados dos anos 70 a Rádio
Alice, primeira rádio livre em Itália, e a revista A/traverso, que combinava maoísmo e dadaísmo numa crítica
anti-autoritária.[3]
O convite para a abertura do TBA
esteve relacionado com o resto da proposta de programação da abertura, com os
espectáculos circulares e repetitivos da Josefa Pereira e do Alessandro
Sciarroni - fundados sobre a intensificação de uma experiência partilhada entre
intérpretes e público, e com uma espécie de “posicionamento” do próprio teatro
a partir de premissas estéticas e poéticas tanto quanto políticas. Interessava
que se começasse por tentar, de alguma forma, dar conta de onde estamos. Sendo
que se está - se estava, na altura, como agora - num momento em que se torna
cada vez mais difícil respirar, como refere Berardi.
E se para a reabertura do TBA se rejeitou a ideia de criar um
acontecimento numa cronologia linear, e pelo contrário se sublinhou a
circularidade, numa duração que era também uma suspensão; vivemos agora também
um tempo cíclico (e este agora refere-se tanto ao início da tradução e
publicação das crónicas, durante a paragem imposta pelo estado de excepção,
como, de maneira diferente, ao momento da sua leitura), um tempo da repetição
dos dias, não linear; quanto ao vírus, rejeita também ele a progressão linear:
há que impedir que fique exponencial.
Vivendo em Bolonha, Berardi esteve desde o início numa das zonas mais
afectadas pela Covid-19 na Europa, o que o levou a escrever uma série de
crónicas em forma de diário. Estas, com a tradução de Nuno Leão, foram ao longo
de 4 meses sendo editadas numa parceria TBA-PUNKTO, que a colaboração com a
editora Tigre de Papel vem agora fortalecer, possibilitando a versão impressa
das mesmas.
Nestas crónicas houve três coisas que imediatamente nos chamaram a
atenção:
1. a escolha do formato diário, isto é, o carácter fragmentário e
quase caricato da experiência vivida, com o que de frágil e humilde tanto
quanto potente há nela, por contraposição ao ensaio ou a outros formatos em que
os autores assumem um ponto de vista mais distanciado.
2. O modo como os episódios vividos que dá a ver são globais,
partilháveis além fronteiras, e como remetem para uma espécie de única e
ininterrupta notícia, 24 horas por dia na televisão (numa espécie de único e
interminável dia, não importa em que meridiano), um presente suspenso comum -
abordável enquanto tal.
3. a forma como uma série de interesses e figuras de pensamento do
autor são reconfiguradas e re-problematizadas à luz do que se está a passar,
por exemplo na análise sobre a tecnologia e os modos conectivo e conjuntivo de
existência, na referência à estagnação económica das últimas décadas, ou às
manifestações pela mudança climática. Mas também e sobretudo na delicadeza,
humor e esperança que atravessa a sua escrita, mesmo num momento como este.
Houve certamente outros “diários da pandemia”, ou de maneira mais
geral, um sem número de textos que ao mesmo tempo que analisavam a situação em
que nos encontrámos nos últimos meses eram também
testemunhos pessoais, reflexões sobre uma experiência vivida e relatada na primeira
pessoa. Houve-os para todos os gostos: David Lynch, por exemplo, faz
diariamente a partir da sua casa em Los Angeles aquilo a que chamou Weather Report
(um boletim meteorológico), que disponibiliza no YouTube e que ainda prossegue
no momento em que escrevemos estas linhas. Seria interessante, em todo caso,
perguntar se o gesto “diarístico” que perpassou este período não reflectirá, em
si, uma tendência que começa a
esboçar-se, sem que a consigamos ainda nomear:
crise definitiva do sujeito público, político, porventura, a que se junta uma crise mais geral,
estética, da possibilidade dos corpos se encontrarem fisicamente (crise do
teatro e da sua função social, mas também do erotismo). E que talvez só possa
começar a ser “combatida” (tratar-se-á ainda de combate?) ou mesmo “apreendida”
por uma voz pessoal, ou singular, que aceita finalmente confundir num mesmo
plano o que pertence à vida íntima com
tudo o que pertencia, antes, à vida dita política?
Voltando a Berardi, a questão coloca-se, antes do mais, em termos de imaginação: será.
E será que conseguimos sequer imaginar um mundo sem o constante stress da competição capitalista, sem o
infinito stress da imersão
tecnológica nas redes, sem o horrível stress
do fluxo informativo ininterrupto, que quanto mais diz, menos sentido
produz?
À medida que as Crónicas avançam, e se aproximam do ponto onde nos
encontramos quando as publicamos, a questão que ocupa um espaço cada vez maior
é a da nova “normalidade” que se impõe a partir do momento em terminaram os
confinamentos. Na verdade, as perspectivas não são boas: o provável é que todas
estas coisas, a luta pela sobrevivência, a exploração tecnológica, a psicose
informativa, e outras ainda saiam reforçadas. Como já o era desde o início da
pandemia, também para Berardi.
Mas a psicodeflacção de que estas crónicas falam é um processo que
ocorre num tempo que não é o tempo linear, abstracto,
o tempo do crescimento infinito e da acumulação. É no tempo circular do Inconsciente que a
psicodeflacção age: o vírus veio mostrar-nos que estamos cansados do ciclo da
acumulação e que estamos dispostos a parar. Este é o seu carácter “fatal”.
Sejam quais forem as estratégias banais que desenvolvermos daqui em diante, por
detrás delas, através delas, “o vírus” agirá para nos conduzir de novo à
imobilidade fatal que acabará por destruir o capitalismo, de novo e de novo e
de novo. E de novo ainda, se é certo que o inevitável nunca acontece e é sempre
o imprevisível que acontece.
•
Ana
Bigotte Vieira
Faz parte da equipa de
programação do Teatro do Bairro Alto, sob direcção artística de Francisco
Frazão, como programadora de discurso. Licenciou-se em História Moderna e
Contemporânea (ISCTE), especializando-se em Cultura e Filosofia Contemporâneas
(FCSH-UNL), e em Estudos de Teatro (UL). A sua tese de Doutoramento recebeu uma
Menção Honrosa em História Contemporânea pela Fundação Mário Soares. Integra o
Instituto de História Contemporânea e Centro de Estudos de Teatro. É
co-fundadora e curadora da plataforma baldio | Estudos de Performance, e
dramaturgista em teatro e em dança. Traduziu vários autores, sobretudo de
teatro e filosofia, como Luigi Pirandello, Giorgio Agamben e Maurizio Lazzarato.
Nuno Leão
Estuda filosofia e é tradutor, tendo sido o responsável pela tradução
para português de “Crónicas da Psicodeflacção”.
Nota de edição
O texto original serve de introdução
a “Crónicas
da Psicodeflacção”, um conjunto de reflexões sobre o colapso da ordem social
resultante da pandemia da COVID-19, escritas em confinamento, na forma de
diário, por Franco “Bifo” Berardi, publicadas
entre Março e Julho no Punkto e editadas sob a forma de livro pela Tigre de Papel.
Ficha Técnica
Data de publicação: 29.10.2020
Edição #29 • Outono 2020 •