Se há alguma
coisa que me tem interessado nos últimos tempos é observar como a racionalidade
político-económica do neoliberalismo se tem vindo paulatinamente a instalar no
campo da arquitectura (enquanto prática e discurso). Um dos aspectos
fundamentais deste processo diz respeito à dissolução da sua condição
disciplinar dentro do um novo quadro de prática profissional. As grandes
discussões que mobilizam a arquitectura prendem-se, hoje, com estratégias de
internacionalização, branding,
empresarialização e networking: já
não interessa a obra propriamente dita, mas sim como é que essa pode ser
vendida e exportada enquanto produto em nome das qualidades (económicas, universais
e místicas) daquela nova marca que é, hoje, a “arquitectura portuguesa”. Basta
ver as iniciativas que têm preenchido (até à exaustão) a agenda dos últimos
tempos, particularmente o “Work-Shop ARQ 3.0 – Architecture International
Challenge”, realizado em Serralves, a que o Jornal Arquitectos (na sua última
edição) confere destaque com uma entrevista aos seus organizadores. E onde se
manifestam bem as ambiguidades de um discurso mais obcecado com as estratégias
de marketing do produto (arquitectónico) em formato cocktail networking e Atlantic
design do que em debater as condições e efeitos de produção da
arquitectura. Sem esquecer as inúmeras iniciativas da Ordem dos Arquitectos e
das Secções Regionais visando constituir manuais de instruções e acções de formação expressamente
dedicadas a fornecer aos arquitectos métodos e ferramentas para a “internationalization
of portuguese architecture”.
O arquitecto é,
hoje, um empreendedor ou, antes, ele é um empreendedor que é também arquitecto. Os gabinetes são
empresas ou marcas. O destino é o mercado e não a cidade. Não há cá tempo para
experimentações, nem para instruções problemáticas da acção projectual, muito
menos para discursos públicos ou “teóricos” sobre arquitectura ou cidade. O
neoliberalismo desfere, assim, um duplo golpe: (1) privatiza a arquitectura, ao
diluir a sua condição de saber intelectual enquanto reflexão sobre o habitar e
a cidade, transformando-a em exercício puramente privado; (2) e nesse processo
torna toda a legitimação crítica das opções de projecto pouco mais que um fait divers. Assistir a conferências de
arquitectos tem-se tornado, por isso, um exercício relativamente penoso. O novo
sujeito-arquitecto neoliberal, esvaziado da sua condição disciplinar e do seu
desígnio, é um sacerdote dedicado aos mistérios divinos do objecto ou um "entrepreneur"
que faz da conferência uma plataforma TEDx onde aquilo que expõe é apenas a sua
argúcia em captar clientes e em construir discursos sedutores que, geralmente,
envolvem o uso indiscriminado e esvaziado de palavras como
"community" e "neighbouring".
Uma recente conferência realizada na Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto de um arquitecto da Costa do Marfim, Issa
Diabaté, expressa bem as ambiguidades que envolvem as actuais relações entre o
discurso e a prática da arquitectura na era do Neoliberalismo. Num ciclo de conferências
cujo título é "Contexto(s) na Arquitectura Contemporânea: cinco
continentes", aquilo que esteve ausente foi, um tanto ou quanto
ironicamente, o "contexto". Afinal, que país é esse, a Costa do
Marfim, um dos vinte países mais pobres do mundo, onde quase 50% da população
vive abaixo do limiar da pobreza? O que são essas cidades? Qual a relevância
desses processos de urbanização na reprodução das desigualdades? Numa
conferência que assume como problema o “contexto”, esperar-se-ia que este fosse
um dado essencial da equação. Pelo contrário, aquilo a que assistimos foi uma
sequência banal de casas com piscina (tão genéricas que bem podiam estar ali no
Canidelo) e operações de loteamentos, onde o autor nos contava os mistérios e
os truques maravilhosos do real estate num
país como a Costa do Marfim. Sempre, claro, em nome de todos e da sagrada
“community” quando, na verdade, se tratavam de condomínios fechados e
investimentos imobiliários para uma elite a aceder ao maravilhoso mundo
internacional do crédito e da finança.
Teve pelo menos
a vantagem de não procurar refúgio em discursos poéticos ou exóticos para
consumo colonial europeu. Mas podemos dizer que, no final, aquilo que esteve
ausente não foi apenas o “contexto”, mas a própria arquitectura. Ou, antes, a
dissolução da arquitectura enquanto discurso, enquanto problema e enquanto
gesto. A sua diluição num fazer-se empreendedor(ismo) individual(ista) que se
realiza e esgota nas possibilidades imediatas do seu fazer (e da sua carreira).
Algo que, desde logo, parece ser dissonante de qualquer ideia de comunidade e
comum. Palavras que, na verdade, não passam de slogans para cativar os
sentimentos mais humanistas da audiência, promovendo uma retórica que não faz
mais do que ocultar os efeitos perversos e as contradições desses processos na
produção de cidade e território. Este, precisamente, o ponto fulcral de
qualquer discurso que visa falar de “contexto”.
O que é certo é
que uma crítica colocada nestes termos corre sempre o risco de ser
incompreendida, mas não será esse, precisamente, mais um sintoma dessa dissolução
da condição disciplinar da arquitectura?
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Notas da edição
Nota acerca da imagem: incêndio numa casa de dois
pisos na Rotunda da Boavista, Porto, onde viviam cerca de 20 a 30 pessoas em
quartos alugados, no dia 28 de Fevereiro de 2018.
Pedro Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto. Arquitecto, investigador no CEAU e assistente convidado na
FAUP.
Ficha Técnica
Data de publicação: 02.03.2018
Etiqueta: Arquitectura \
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