O triunfo da iliteracia • António Bracinha Vieira




Nós, humanos, sempre falámos, mas nem sempre escrevemos. A escrita, acontecimento recente, perto de 5.000 anos, lâmina quase sem espessura na nossa história evolutiva, marca o limiar da passagem da Pré-história para a História: e admitiremos que a perda da escrita marcará um dia a passagem da História para outra era, que ainda não tem nome mas, provisoriamente, se poderá chamar de Pós-história.

Quando vos digo que falámos sempre, refiro-me, neste plural impreciso, a algumas espécies do género Homo que nos precederam na biosfera. Homo erectus, que entrou em cena há cerca de dois milhões de anos, desenvolveu uma complexa indústria lítica e, provavelmente a partir de um estado tardio e por efeito de uma mutação aleatória que permitiu a articulação de consoantes, instaurou o grau zero da linguagem. Esta mutação foi então premiada pela selecção natural — apesar dos seus riscos — dadas as vantagens que a linguagem trazia às populações falantes. [1]

1. Desenvolvi uma teoria da origem e evolução da linguagem, em que estes passos evolutivos são discutidos. Cf. Vieira, A.B. – «Grammatical equivalents of Palaeolithic tools: a hypothesis», Theory in Biosciences, 129, 2-3, Sept. 2010, 203-210. – E também: Origem e evolução da linguagem: dados e hipóteses, Homem: Origem e Evolução, Lisboa, 2015 (Glaciar).   

Com a linguagem verbal articulada, mesmo em fases incipientes, despertou uma consciência da relatividade do tempo, situando o sujeito falante assimetricamente em relação ao presente, e confrontando-o com os abismos da sua origem e do seu destino. Assim teriam sido inventados os primeiros mitos, formas primordiais de literatura oral, destinados a explicar o como e o porquê do antes da vida e do depois da morte e a legitimar o desconhecido da origem e do destino.

No fim do Neolítico surge a escrita, e com ela o efeito cumulativo de conhecimentos e saberes culturais. Com a escrita, passa-se do registo sonoro, confiado ao tempo, para um registo material estável, assente no espaço: os sons que designam objectos e a sua situação (relativamente ao locutor)  são projectados em grafismos inscritos numa base sólida, seja o barro ou a pedra.  O que hoje parece estranho e ameaçador é que, decorridos estes milénios de História, a linguagem declina abruptamente, empobrece e perde as suas faculdades de interrogar o mundo e questionar o nosso lugar nele.

A filosofia nasceu no fim do arcaísmo grego, atingiu o apogeu no século clássico da Grécia, tomou novas formas na Antiguidade tardia, manifestou-se sob outras formas na Índia e na China. Entorpeceu, mas sem se extinguir, na Idade Média europeia e ressurgiu na Primeira Renascença. Seguiram-se o século neoclássico, e logo o século das Luzes, o Romantismo, e enfim os séculos da ciência.

Que forças nefastas ditaram de súbito o estado crescente de iliteracia em todas as nações, mesmo nas que herdaram o mais elevado grau de cultura intelectual? — Eis o problema.

No tempo da minha já longa vida, pude assistir a este processo deliberado de corrosão e enfraquecimento da linguagem, e assisto convosco aos seus efeitos perversos. — Num pequeno livro que publiquei em 1994, com o título Ensaio sobre o termo da História (que não era o termo da História postulado por Hegel, nem o então muito em voga Fim da História, de Fukuyama) tentei inquirir das causas deste fenómeno. E o ensaio tomou feições quase oraculares, no seu pessimismo. Este livro recebeu o anátema de muitos dos meus colegas, numa faculdade de ciências humanas e sociais onde então trabalhava, e para além dela. Cristãos, marxistas, conservadores de todos os azimutes e outros optimistas por doutrina, repudiaram a reflexão que ali desenvolvia.

Tentara desenhar os traços de uma personagem construída premeditadamente, fabricada de toutes pièces com o intuito de degradar a linguagem e mudar o rumo das sociedades. Chamei-lhe o Incaracterístico, e não posso deixar de o evocar hoje a propósito da iliteracia, porque é um iletrado contumaz, e toda a cultura intelectual o aborrece. O Incaracterístico foi construído com um fito premeditado, a partir de receitas precisas, como Pandora, saída da oficina de Hefesto conforme à encomenda de Zeus. Esta figura, na qual se desconstruíam, a par com a linguagem (e correlativamente), o juízo crítico e a ética, era possuída por um infantilismo néscio e pusilânime, por um hedonismo radical e uma sofreguidão primária e ego-centrada.

De onde a importância de estudar criatura tão degenerada? — O caso é que a sua compreensão permitiria entender o fulcro da mutação social que se operava, e visava obter a transmutação de todos os valores, para retomar uma frase famosa de Nietzsche. Com o triunfo deste homúnculo celebrava-se um fim da História e abria-se caminho ao ultra-liberalismo mais desenfreado.

Facto surpreendente: a transmutação operava-se com a aquiescência e os aplausos do próprio Incaracterístico, em cuja mente empobrecida a sua situação de escravo não era discernível, obnubilada que estava por promessas de uma saciedade imediata. As profecias deste texto — que decorriam de uma breve análise do seu protagonista e suas consequências — foram de tal modo cumpridas que o autor se considerou à semelhança do Agenórida Fineu, um anti-herói da epopeia grega, mencionado na Argonáutica: por ter profetizado com rigor excessivo, provocou a ira dos deuses, que sobre ele lançaram as Harpias.

Eis que, hoje, as multidões, postas perante esta iliteracia programada, jubilosas por alijarem o fardo da linguagem e da sua exigência cultural, delegam em máquinas as faculdades pensantes de cada indivíduo, rebaixado doravante ao nível de sujeito. Esta mutação foi premeditada e organizada por forças coniventes (e, há que dizê-lo, tanto da ala direita como da ala esquerda do espectro político). 

Na sua estultícia hedónica, este Incaracterístico deixa empobrecer o seu léxico (300 ou 400 palavras, como os chimpanzés e bonobos mais dotados são capazes de utilizar), desmoronar a sintaxe e obnubilar a semântica. Assim se entrega a uma linguagem titubeante, que culminará porventura numa perda da escrita a breve prazo, marcando a passagem de um limiar e o acesso a uma nova era, a referida Pós-história. Indícios deste percurso são-nos patentes em cada dia.

Decerto que a entrada neste tempo de trevas não arrastará de um golpe a totalidade do grupo social: uma fracção residual de seres humanos acederá ainda, durante algumas gerações, ao encanto da linguagem escrita, e mesmo à literatura. Nas malhas da termiteira totalitária subsistirá, em estado crepuscular, essa comunidade clandestina e inconfessável (para lhe atribuir o belo título de Maurice Blanchot, La communauté inavouable).

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Para Edward O. Wilson, o fundador da ‘sociobiologia’ chamada wilsoniana, não será impossível que os humanos, em função da deriva oportunista da adaptação às solicitações do meio, se reorganizem um dia como uma sociedade de insectos gregários, himenópteros (formigas) ou isópteros (térmitas) [2]. O primata humano, único da sua ordem que se guia pelo preconceito, reorganizar-se-ia então, porventura, conforme ao modelo das sociedades termíticas, sendo este homem-térmita que se perfila no horizonte como o estado-limite da sua vocação social.  

2. Wilson, E.O. – The Insect Societies, 1971 (Belknap Press), p. 460. 

Dos efeitos e abalos imprevisíveis que uma tal involução implica damo-nos conta a cada dia, escutando e lendo as notícias que de toda a parte e em várias línguas nos chegam. Eis que o Incaracterístico elevado ao vértice da pirâmide — um pouco à maneira do Ubu roi, de Jarry — sacode todo o tecido societário e desconjunta os gonzos da História, brincando com ela como com um balão inflável.

Como se precipitou em poucas décadas esta báscula dos valores, catástrofe da razão crítica? — Através de dois factores conjugados: de um lado, as tendências primáticas recebidas da nossa história natural e fixadas pela chamada ‘inércia filogenética’, e entre elas a formação de hierarquias de dominância e um mimetismo avassalador e sem limites; do outro lado, o crescimento vertiginoso da técnica.

Assim, as nossas tendências biológicas irrefreáveis, contidas ao longo dos tempos históricos pelas normas da cultura e a intenção das leis, reerguem-se na sua crueza quando as culturas tendem a perder os seus limites e a confundir-se numa subcultura planetária: uma língua universalizada e vandalizada, hábitos e projectos de vida estereotipados, comportamentos desabridos, animando as hordas de bárbaros que se agitam.

Entretanto, desenvolve-se uma epistemologia da manipulação, e os meios de influenciar as massas crescem a cada dia, de forma exponencial. O braço longo da alavanca que manipula as multidões acríticas cresce, assim, em proporção directa com a iliteracia que campeia.

Infantilizadas, menorizadas, estultificadas, as multidões ignaras e ignavas (que nada sabem nem querem saber, julgando contudo saber algo) perdem a ponderação crítica, a livre escolha de um rumo, anulando assim a própria essência da democracia. Nem deveres, nem direitos, nem evocação do passado ou planificação do futuro, mas a satisfação imediata dos apetites. — Triunfo absoluto de Thomas Hobbes e do marquês de Sade.   

Vivemos na Idade de ouro da ignorância. O ataque visa a cultura intelectual em todos os sectores, desde a filosofia e as outras humanidades até ao conjunto das ciências, exceptuando os conhecimentos que conduzem ao aperfeiçoamento das armas, à influência das multidões ou a obtenção de benefícios pragmáticos, sejam eles ilícitos. Porque a dissolução, que se opera, do limiar entre verdade e mentira se acompanha do apagamento da fronteira entre licitude e ilicitude, isto é, conduz à anulação do espírito da lei.

Assim, desprovidos das raízes do conhecimento e destituídos da herança histórica e cultural, os novos iletrados ficam à mercê da doutrinação das vozes impertinentes das Sereias, que os assediam sem tréguas — nas redes informáticas, na televisão, nos pequenos écrans dos portáteis, na publicidade. Sufocado o canto de Orfeu, prevalece agora este vozear grotesco das Sereias, que ressoa por toda a parte.

Assim se caminha a grandes passos para a ‘golemização’ do Incaracterístico. E deve recordar-se que o golem é uma figura da mística hebraica, figura cuja construção obedece a regras contidas num livro da cabala medieval, o Sefer Yetsirá. Construir um golem, homúnculo sem alma, pura matéria, significava para os cabalistas imitar a obra de Deus, que moldara Adama com as lamas argilosas. Esta ‘golemização’ (a palavra não existe, e a própria palavra golem não está dicionarizada em língua portuguesa) do Incaracterístico significa torná-lo servo de máquinas centuplicadoras dadas ao serviço do poder.

Posto no limiar da iliteracia, com a sua aprovação e para seu gáudio, o novo homúnculo elege e aplaude os poderes que o rebaixam e votam a uma vida frívola e fátua, centrada no presente. Assim se apaga nele todo o rasto da história das ideias precedente, uma vez que a flexão verbal — dínamo do estar-no-mundo temporal tendendo para a morte — se lhe dissipa, enturvando-lhe o horizonte e entregando-o à satisfação imediata de apetites primários.

Na sua fixação ávida ao presente, o Incaracterístico esquece por igual os saberes do passado e os direitos dos seres do futuro. Ou seja: este neo-escravo, inábil para o exercício da razão, que pulula em multidões compactas e entusiásticas, compraz-se no seu estatuto miserando e não faz perguntas sobre o passado nem sobre o futuro. Assim se liberta da angústia daquilo a que Max Scheler  chamou ‘a situação metafísica do homem’. [3]

3. Scheler, M. – Phänomenologie und Erkenntnistheorie. – Tradução em espanhol: La esencia de la filosofia y la condición moral del conocer filosófico, Madrid, 2001 (Encuentro).  

Uma outra metamorfose se desenvolve, em paralelo e correlativamente, nas sociedades humanas do tempo presente, que incide na relação entre os grupos humanos e o capital. O dinheiro, sob a forma de moeda destinada a facilitar as trocas, surgiu na Grécia asiática, na Lídia, no século VI anterior a Cristo. Durante séculos, garantiu um elo entre os seres humanos e os recursos da pólis, e ao mesmo tempo uma caução do Estado que cunhava a moeda.

Conhecemos as transformações e vicissitudes do capital no decorrer dos séculos. Mas eis que, nas encruzilhadas da nova conjuntura, esta entidade que acompanhou o homem historial perdeu de súbito o seu carácter de comensal saprófita das sociedades e adquiriu feições de parasita ameaçador, desde que o exercício da linguagem crítica deixou de o manter sob regulação homeostática. Senhor do jogo que se joga, o capital torna-se protagonista e submete os novos sub-humanos, que delegam o seu pensar e o seu destino em máquinas mais competentes do que eles.

Eis como, no pensamento extremo-liberal (e apesar da palavra liberalismo conter em si o étimo da palavra liberdade), estes humanóides se destituem da faculdade de inquirir da sua própria posição no mundo e abdicam de facto da sua individualidade e alteridade, confundindo-se numa massa acrítica. Resíduos da sua estultícia circulam pelas chamadas ‘redes sociais’ e acodem a cada momento às telas dos seus dispositivos telefónicos, a que se lhes reduz o horizonte.

Fixado nas imagens do pequeno écran do seu telefone móvel, o Incaracterístico dá a volta ao mundo sem o desfitar, indiferente a florestas, montanhas, mares, nuvens, seres viventes, fotografando vezes sem conta a sua fisionomia histriónica e os alimentos sórdidos que consome. Entretanto, surdo para a grande música do ocidente, escuta sem cessar (e obriga os outros a escutar) as suas músicas podres.

Assistimos assim a um projecto fáustico de ‘golemização’ dos antigos humanos, projecto latente num conjunto de disciplinas e técnicas transformadoras. Porque a curva ascendente da tecnologia da manipulação — penso na engenharia genética, na robótica, na chamada ‘inteligência artificial’, na possibilidade de implantes cerebrais estimulando ou inibindo certos comportamentos, na nanotecnologia, e mais, e mais — cresce como uma assíntota, elevando-se vertiginosamente nos mais breves lapsos de tempo.

Não saberemos, não poderemos e não deveremos parar o desencadeamento da técnica. Mas atentemos num fenómeno inusitado e perturbador: a rebelião da tecnologia contra a ciência.

Desde a Antiguidade, e reanimando-se com o seu recomeço cartesiano (fixemos arbitrariamente o início da Modernidade no momento da publicação do Discurso do método, ele próprio destinado a servir de prefácio ao Tratado do dióptrico), a logo-ciência constituía uma venerável construção humana, cumulativa, objectivável, verificável e refutável, partilhada por toda a ‘comunidade científica’.  Pigmeus subiam aos ombros de gigantes e podiam ver mais longe do que estes . E a técnica alimentava-se dos saberes acumulados, para benefício da comunidade.

Eis que as mesmas forças que desencadearam o declínio da linguagem lançam agora as tecnologias em combate contra a própria ciência, da qual a técnica directamente decorria. Porque esta logo-ciência, demasiado esclarecida, será doravante perniciosa para o poder bárbaro e brutal que predomina. — Rebelião edipiana da tecno-ciência contra a ciência-mãe! Uma tal circularidade viciosa — a  eficácia técnica corroendo o discurso científico e enturvando a sua transparência — apaga a fronteira entre verdade e mentira e dissolve os próprios critérios e argumentos que as distinguem.

E, para concluir, aproveito um parágrafo do prefácio que acabo de escrever para um ensaio de Nietzsche, Verdade e mentira em sentido extra-moral: Assim se instaura um paradigma encobridor, que serve um projecto desmedido de domínio: a vontade de poder, a famosa Wille zur Macht, exercendo-se enfim contra a procura da verdade. — Vontade de mentira como vontade negativa de poder.      

 

António Bracinha Vieira

António Manuel Bracinha Vieira (Lisboa, 1941) é um médico psiquiatra, antropólogo e professor universitário português. Trabalha entre a antropologia biológica e a antropologia fenomenológica e, sob o nome António Vieira, em literatura e filosofia.

 

Nota da edição

Este ensaio foi apresentado no Colóquio “Os Outros em Eu, 25 anos depois. Que outros, que eus?” organizado por Rui Mota Cardoso e António Guerreiro no IPATIMUP, a 12 de Março de 2025. A sessão em que António Bracinha Vieira participou, juntamente com António Guerreiro e Rui Mota Cardoso, tinha como tema, justamente, a “Iliteracia”.

 

Imagem

Fragmento de As Tentações de Santo Antão, Hieronymus Bosch, c. 1500.

 

Ficha técnica

O Triunfo da Iliteracia • António Bracinha Vieira

Data de publicação • 03.12.2025  Edição #44 • Verão — Outono 2025