Nós,
humanos, sempre falámos, mas nem sempre escrevemos. A escrita, acontecimento
recente, perto de 5.000 anos, lâmina quase sem espessura na nossa história
evolutiva, marca o limiar da passagem da Pré-história para a História: e
admitiremos que a perda da escrita marcará um dia a passagem da História para
outra era, que ainda não tem nome mas, provisoriamente, se poderá chamar de
Pós-história.
Quando
vos digo que falámos sempre, refiro-me, neste plural impreciso, a algumas
espécies do género Homo que nos precederam na biosfera. Homo erectus,
que entrou em cena há cerca de dois milhões de anos, desenvolveu uma complexa
indústria lítica e, provavelmente a partir de um estado tardio e por efeito de
uma mutação aleatória que permitiu a articulação de consoantes, instaurou o
grau zero da linguagem. Esta mutação foi então premiada pela selecção natural —
apesar dos seus riscos — dadas as vantagens que a linguagem trazia às
populações falantes. [1]
1. Desenvolvi uma teoria da origem e evolução
da
linguagem, em que estes passos evolutivos são discutidos. Cf. Vieira,
A.B. – «Grammatical equivalents of Palaeolithic tools: a hypothesis», Theory
in Biosciences, 129, 2-3, Sept. 2010, 203-210. – E também: Origem e
evolução da linguagem: dados e hipóteses, Homem: Origem e Evolução,
Lisboa, 2015 (Glaciar).
Com
a linguagem verbal articulada, mesmo em fases incipientes, despertou uma
consciência da relatividade do tempo, situando o sujeito falante
assimetricamente em relação ao presente, e confrontando-o com os abismos da sua
origem e do seu destino. Assim teriam sido inventados os primeiros mitos,
formas primordiais de literatura oral, destinados a explicar o como e o porquê
do antes da vida e do depois da morte e a legitimar o desconhecido da origem e
do destino.
No
fim do Neolítico surge a escrita, e com ela o efeito cumulativo de
conhecimentos e saberes culturais. Com a escrita, passa-se do registo sonoro,
confiado ao tempo, para um registo material estável, assente no espaço: os sons
que designam objectos e a sua situação (relativamente ao locutor) são projectados em grafismos inscritos numa
base sólida, seja o barro ou a pedra. O
que hoje parece estranho e ameaçador é que, decorridos estes milénios de
História, a linguagem declina abruptamente, empobrece e perde as suas
faculdades de interrogar o mundo e questionar o nosso lugar nele.
A
filosofia nasceu no fim do arcaísmo grego, atingiu o apogeu no século clássico
da Grécia, tomou novas formas na Antiguidade tardia, manifestou-se sob outras
formas na Índia e na China. Entorpeceu, mas sem se extinguir, na Idade Média
europeia e ressurgiu na Primeira Renascença. Seguiram-se o século neoclássico,
e logo o século das Luzes, o Romantismo, e enfim os séculos da ciência.
Que
forças nefastas ditaram de súbito o estado crescente de iliteracia em todas as
nações, mesmo nas que herdaram o mais elevado grau de cultura intelectual? —
Eis o problema.
No
tempo da minha já longa vida, pude assistir a este processo deliberado de
corrosão e enfraquecimento da linguagem, e assisto convosco aos seus efeitos
perversos. — Num pequeno livro que publiquei em 1994, com o título Ensaio
sobre o termo da História (que não era o termo da História postulado por
Hegel, nem o então muito em voga Fim da História, de Fukuyama) tentei
inquirir das causas deste fenómeno. E o ensaio tomou feições quase oraculares,
no seu pessimismo. Este livro recebeu o anátema de muitos dos meus colegas,
numa faculdade de ciências humanas e sociais onde então trabalhava, e para além
dela. Cristãos, marxistas, conservadores de todos os azimutes e outros
optimistas por doutrina, repudiaram a reflexão que ali desenvolvia.
Tentara
desenhar os traços de uma personagem construída premeditadamente, fabricada de toutes
pièces com o intuito de degradar a linguagem e mudar o rumo das sociedades.
Chamei-lhe o Incaracterístico, e não posso deixar de o evocar hoje a propósito
da iliteracia, porque é um iletrado contumaz, e toda a cultura intelectual o
aborrece. O Incaracterístico foi construído com um fito premeditado, a partir
de receitas precisas, como Pandora, saída da oficina de Hefesto conforme à
encomenda de Zeus. Esta figura, na qual se desconstruíam, a par com a linguagem
(e correlativamente), o juízo crítico e a ética, era possuída por um
infantilismo néscio e pusilânime, por um hedonismo radical e uma sofreguidão
primária e ego-centrada.
De
onde a importância de estudar criatura tão degenerada? — O caso é que a sua
compreensão permitiria entender o fulcro da mutação social que se operava, e
visava obter a transmutação de todos os valores, para retomar uma frase famosa
de Nietzsche. Com o triunfo deste homúnculo celebrava-se um fim da História e abria-se
caminho ao ultra-liberalismo mais desenfreado.
Facto
surpreendente: a transmutação operava-se com a aquiescência e os aplausos do
próprio Incaracterístico, em cuja mente empobrecida a sua situação de escravo
não era discernível, obnubilada que estava por promessas de uma saciedade
imediata. As profecias deste texto — que decorriam de uma breve análise do seu
protagonista e suas consequências — foram de tal modo cumpridas que o autor se
considerou à semelhança do Agenórida Fineu, um anti-herói da epopeia grega,
mencionado na Argonáutica: por ter profetizado com rigor excessivo,
provocou a ira dos deuses, que sobre ele lançaram as Harpias.
Eis
que, hoje, as multidões, postas perante esta iliteracia programada, jubilosas
por alijarem o fardo da linguagem e da sua exigência cultural, delegam em
máquinas as faculdades pensantes de cada indivíduo, rebaixado doravante ao
nível de sujeito. Esta mutação foi premeditada e organizada por forças
coniventes (e, há que dizê-lo, tanto da ala direita como da ala esquerda do
espectro político).
Na
sua estultícia hedónica, este Incaracterístico deixa empobrecer o seu léxico
(300 ou 400 palavras, como os chimpanzés e bonobos mais dotados são capazes de
utilizar), desmoronar a sintaxe e obnubilar a semântica. Assim se entrega a uma
linguagem titubeante, que culminará porventura numa perda da escrita a breve
prazo, marcando a passagem de um limiar e o acesso a uma nova era, a referida
Pós-história. Indícios deste percurso são-nos patentes em cada dia.
Decerto
que a entrada neste tempo de trevas não arrastará de um golpe a totalidade do
grupo social: uma fracção residual de seres humanos acederá ainda, durante
algumas gerações, ao encanto da linguagem escrita, e mesmo à literatura. Nas
malhas da termiteira totalitária subsistirá, em estado crepuscular, essa
comunidade clandestina e inconfessável (para lhe atribuir o belo título de
Maurice Blanchot, La communauté inavouable).
§
Para
Edward O. Wilson, o fundador da ‘sociobiologia’ chamada wilsoniana, não será
impossível que os humanos, em função da deriva oportunista da adaptação às
solicitações do meio, se reorganizem um dia como uma sociedade de insectos
gregários, himenópteros (formigas) ou isópteros (térmitas) [2]. O primata
humano, único da sua ordem que se guia pelo preconceito, reorganizar-se-ia
então, porventura, conforme ao modelo das sociedades termíticas, sendo este
homem-térmita que se perfila no horizonte como o estado-limite da sua vocação
social.
2. Wilson, E.O. – The
Insect Societies, 1971 (Belknap Press), p. 460.
Dos
efeitos e abalos imprevisíveis que uma tal involução implica damo-nos conta a
cada dia, escutando e lendo as notícias que de toda a parte e em várias línguas
nos chegam. Eis que o Incaracterístico elevado ao vértice da pirâmide — um
pouco à maneira do Ubu roi, de Jarry — sacode todo o tecido societário e
desconjunta os gonzos da História, brincando com ela como com um balão
inflável.
Como
se precipitou em poucas décadas esta báscula dos valores, catástrofe da razão
crítica? — Através de dois factores conjugados: de um lado, as tendências
primáticas recebidas da nossa história natural e fixadas pela chamada ‘inércia
filogenética’, e entre elas a formação de hierarquias de dominância e um
mimetismo avassalador e sem limites; do outro lado, o crescimento vertiginoso
da técnica.
Assim,
as nossas tendências biológicas irrefreáveis, contidas ao longo dos tempos
históricos pelas normas da cultura e a intenção das leis, reerguem-se na sua
crueza quando as culturas tendem a perder os seus limites e a confundir-se numa
subcultura planetária: uma língua universalizada e vandalizada, hábitos e
projectos de vida estereotipados, comportamentos desabridos, animando as hordas
de bárbaros que se agitam.
Entretanto,
desenvolve-se uma epistemologia da manipulação, e os meios de
influenciar as massas crescem a cada dia, de forma exponencial. O braço longo
da alavanca que manipula as multidões acríticas cresce, assim, em proporção
directa com a iliteracia que campeia.
Infantilizadas,
menorizadas, estultificadas, as multidões ignaras e ignavas (que nada sabem nem
querem saber, julgando contudo saber algo) perdem a ponderação crítica, a livre
escolha de um rumo, anulando assim a própria essência da democracia. Nem deveres,
nem direitos, nem evocação do passado ou planificação do futuro, mas a
satisfação imediata dos apetites. — Triunfo absoluto de Thomas Hobbes e do
marquês de Sade.
Vivemos
na Idade de ouro da ignorância. O ataque visa a cultura intelectual em todos os
sectores, desde a filosofia e as outras humanidades até ao conjunto das
ciências, exceptuando os conhecimentos que conduzem ao aperfeiçoamento das
armas, à influência das multidões ou a obtenção de benefícios pragmáticos,
sejam eles ilícitos. Porque a dissolução, que se opera, do limiar entre verdade
e mentira se acompanha do apagamento da fronteira entre licitude e ilicitude,
isto é, conduz à anulação do espírito da lei.
Assim,
desprovidos das raízes do conhecimento e destituídos da herança histórica e
cultural, os novos iletrados ficam à mercê da doutrinação das vozes
impertinentes das Sereias, que os assediam sem tréguas — nas redes
informáticas, na televisão, nos pequenos écrans dos portáteis, na publicidade.
Sufocado o canto de Orfeu, prevalece agora este vozear grotesco das Sereias,
que ressoa por toda a parte.
Assim
se caminha a grandes passos para a ‘golemização’ do Incaracterístico. E deve
recordar-se que o golem é uma figura da mística hebraica, figura cuja
construção obedece a regras contidas num livro da cabala medieval, o Sefer
Yetsirá. Construir um golem, homúnculo sem alma, pura matéria, significava
para os cabalistas imitar a obra de Deus, que moldara Adama com as lamas
argilosas. Esta ‘golemização’ (a palavra não existe, e a própria palavra
golem não está dicionarizada em língua portuguesa) do Incaracterístico
significa torná-lo servo de máquinas centuplicadoras dadas ao serviço do poder.
Posto
no limiar da iliteracia, com a sua aprovação e para seu gáudio, o novo
homúnculo elege e aplaude os poderes que o rebaixam e votam a uma vida frívola
e fátua, centrada no presente. Assim se apaga nele todo o rasto da história das
ideias precedente, uma vez que a flexão verbal — dínamo do estar-no-mundo
temporal tendendo para a morte — se lhe dissipa, enturvando-lhe o horizonte e
entregando-o à satisfação imediata de apetites primários.
Na
sua fixação ávida ao presente, o Incaracterístico esquece por igual os saberes
do passado e os direitos dos seres do futuro. Ou seja: este neo-escravo, inábil
para o exercício da razão, que pulula em multidões compactas e entusiásticas,
compraz-se no seu estatuto miserando e não faz perguntas sobre o passado nem
sobre o futuro. Assim se liberta da angústia daquilo a que Max Scheler chamou ‘a situação metafísica do homem’. [3]
3. Scheler, M. – Phänomenologie
und Erkenntnistheorie. – Tradução em espanhol: La esencia de la
filosofia y la condición moral del conocer filosófico, Madrid, 2001
(Encuentro).
Uma
outra metamorfose se desenvolve, em paralelo e correlativamente, nas sociedades
humanas do tempo presente, que incide na relação entre os grupos humanos e o
capital. O dinheiro, sob a forma de moeda destinada a facilitar as trocas,
surgiu na Grécia asiática, na Lídia, no século VI anterior a Cristo. Durante
séculos, garantiu um elo entre os seres humanos e os recursos da pólis,
e ao mesmo tempo uma caução do Estado que cunhava a moeda.
Conhecemos
as transformações e vicissitudes do capital no decorrer dos séculos. Mas eis
que, nas encruzilhadas da nova conjuntura, esta entidade que acompanhou o homem
historial perdeu de súbito o seu carácter de comensal saprófita das sociedades
e adquiriu feições de parasita ameaçador, desde que o exercício da linguagem
crítica deixou de o manter sob regulação homeostática. Senhor do jogo que se
joga, o capital torna-se protagonista e submete os novos sub-humanos, que
delegam o seu pensar e o seu destino em máquinas mais competentes do que eles.
Eis
como, no pensamento extremo-liberal (e apesar da palavra liberalismo conter em
si o étimo da palavra liberdade), estes humanóides se destituem da faculdade de
inquirir da sua própria posição no mundo e abdicam de facto da sua
individualidade e alteridade, confundindo-se numa massa acrítica. Resíduos da
sua estultícia circulam pelas chamadas ‘redes sociais’ e acodem a cada momento
às telas dos seus dispositivos telefónicos, a que se lhes reduz o horizonte.
Fixado
nas imagens do pequeno écran do seu telefone móvel, o Incaracterístico
dá a volta ao mundo sem o desfitar, indiferente a florestas, montanhas, mares,
nuvens, seres viventes, fotografando vezes sem conta a sua fisionomia
histriónica e os alimentos sórdidos que consome. Entretanto, surdo para a
grande música do ocidente, escuta sem cessar (e obriga os outros a escutar) as
suas músicas podres.
Assistimos
assim a um projecto fáustico de ‘golemização’ dos antigos humanos, projecto
latente num conjunto de disciplinas e técnicas transformadoras. Porque a curva
ascendente da tecnologia da manipulação — penso na engenharia genética, na
robótica, na chamada ‘inteligência artificial’, na possibilidade de implantes
cerebrais estimulando ou inibindo certos comportamentos, na nanotecnologia, e
mais, e mais — cresce como uma assíntota, elevando-se vertiginosamente nos mais
breves lapsos de tempo.
Não
saberemos, não poderemos e não deveremos parar o desencadeamento da técnica.
Mas atentemos num fenómeno inusitado e perturbador: a rebelião da tecnologia
contra a ciência.
Desde
a Antiguidade, e reanimando-se com o seu recomeço cartesiano (fixemos
arbitrariamente o início da Modernidade no momento da publicação do Discurso
do método, ele próprio destinado a servir de prefácio ao Tratado do
dióptrico), a logo-ciência constituía uma venerável construção humana,
cumulativa, objectivável, verificável e refutável, partilhada por toda a
‘comunidade científica’. Pigmeus subiam
aos ombros de gigantes e podiam ver mais longe do que estes . E a técnica
alimentava-se dos saberes acumulados, para benefício da comunidade.
Eis
que as mesmas forças que desencadearam o declínio da linguagem lançam agora as
tecnologias em combate contra a própria ciência, da qual a técnica directamente
decorria. Porque esta logo-ciência, demasiado esclarecida, será doravante
perniciosa para o poder bárbaro e brutal que predomina. — Rebelião edipiana da
tecno-ciência contra a ciência-mãe! Uma tal circularidade viciosa — a eficácia técnica corroendo o discurso
científico e enturvando a sua transparência — apaga a fronteira entre verdade e
mentira e dissolve os próprios critérios e argumentos que as distinguem.
E,
para concluir, aproveito um parágrafo do prefácio que acabo de escrever para um
ensaio de Nietzsche, Verdade e mentira em sentido extra-moral: Assim se
instaura um paradigma encobridor, que serve um projecto desmedido de domínio: a
vontade de poder, a famosa Wille zur Macht, exercendo-se enfim contra a
procura da verdade. — Vontade de mentira como vontade negativa de poder.
•
António Bracinha Vieira
António Manuel Bracinha Vieira (Lisboa, 1941) é um médico psiquiatra,
antropólogo e professor universitário português. Trabalha entre a antropologia
biológica e a antropologia fenomenológica e, sob o nome António Vieira, em
literatura e filosofia.
Nota da edição
Este ensaio foi apresentado no Colóquio “Os Outros em Eu, 25 anos
depois. Que outros, que eus?” organizado por Rui Mota Cardoso e António
Guerreiro no IPATIMUP, a 12 de Março de 2025. A sessão em que António Bracinha
Vieira participou, juntamente com António Guerreiro e Rui Mota Cardoso, tinha
como tema, justamente, a “Iliteracia”.
Imagem
Fragmento de As Tentações de Santo Antão, Hieronymus Bosch, c.
1500.
Ficha técnica
O Triunfo da
Iliteracia • António Bracinha Vieira
Data de publicação • 03.12.2025 • Edição #44 • Verão — Outono 2025


