Seul l’acte de résistance résiste à la mort, soit sous la forme d’une œuvre d’art, soit sous la forme d’une lutte des hommes.
Gilles Deleuze, Qu’est-ce que
l’acte de création?
A recente onda de
contestações e actos de vandalismo face a monumentos associados à escravatura
ou ao colonialismo, que transbordou as fronteiras dos EUA, chegando à Europa e
a Portugal, recorda-nos que, por mais que aspire a uma suposta universalidade,
a narrativa histórica dominante é sempre um artifício ao serviço de um poder. E
quanto mais estável é o consenso em torno da sua pretensa universalidade, mais
naturalizados estão os valores que o sustentam, e mais erodida está a memória
dos atritos que esse poder enfrentou: daquilo que foi destruído, dos que
resistiram, sofreram e sucumbiram perante a sua imposição.
No decurso da discussão
agitada por estes eventos, tem sido recorrente a evocação de um suposto perigo
de esquecimento, sugerindo que a remoção de estátuas que celebram o
colonialismo sob os mais variados disfarces, ou que glorificam figuras
esclavagistas ou genocidas, pode levar a que essas mesmas atrocidades sejam
esquecidas. Se não nos deixarmos deter pelo cinismo, por demais evidente neste
argumento, que reclama sem ironia a importância pedagógica de homenagear um
traficante de escravos no centro de um espaço que se diz “de todos”, podemos
pelo menos constatar que a dupla função inerente a qualquer monumento ou
narrativa histórica é algo que escapa a quem dele se recorre.
Na medida em que toda
a narrativa é selectiva, e sendo a selecção indissociável da ecologia de poderes
em que ocorre, não há gesto de homenagem ou narrativa histórica que não
participe também da arquitectura de um regime de omissões. A permanência de
monumentos em homenagem a homens que massacraram povos, que detiveram e
traficaram escravos, que defenderam a escravatura ou o colonialismo, posições e
actos consensualmente tidos como toleráveis, ou pelo menos negligenciáveis, em
função de feitos ditos maiores; não pode ser interpretada senão como prova da
persistente mentalidade colonial europeia, que continua a desvalorizar as
atrocidades contra outros povos como danos colaterais, justificados pela
necessidade do progresso europeu e universal. Desmantelar esta mentalidade
passa por inviabilizar a desvalorização contínua, através de diversos
meios, do racismo, da escravatura, ou do colonialismo enquanto detalhes
acidentais de uma odisseia protagonizada por homens brancos.
Em Portugal, tem-se
afigurado no mínimo perturbadora a relevância que o coro de comentadores
mediáticos pretende agora atribuir a uma escultura vandalizada, em que figura
um homem de crucifixo erguido, rodeado de índios infantis, na suposta
valorização de um legado literário, como se a obra literária carecesse de ser
representada por alguma coisa exterior a si própria... Ao mesmo tempo que tudo
isto revela as reais motivações destes ostensivos defensores da literatura
portuguesa, oferece ainda um vislumbre sobre esse estranho entendimento da obra
literária, como algo passível de ser gravado na matéria de uma escultura
figurativa, totalmente indiferente ao confronto controverso de quem lê com o
que é escrito. Mas se a pertinência dessa escultura na valorização do génio
literário de Padre António Vieira é dúbia, por outro lado, é digno de destaque
o seu rigor na representação da fantasia colonial portuguesa, e a sua potência
simbólica na perpetuação do mito do bom colonizador, que concede o dom da
civilização aos povos das terras “descobertas”.
As volumosas reacções
as estes acontecimentos só revelam que destruir ou vandalizar um monumento pode
fazer tanto ou mais pela agitação da memória colectiva, quanto erguê-lo. O
debate histórico proliferou de tal modo, que nos leva a crer que os fantasmas
coloniais permaneciam encerrados nessas figuras de bronze, desejosos por
escapar através de uma qualquer fissura, para assombrar de novo o presente e
sacudir os seus artificiosos consensos em relação ao passado. Em Portugal,
oriundos de todos os quadrantes políticos, comentadores mediáticos
apressaram-se a condenar o vandalismo e a destruição, actos dogmaticamente
banidos do campo político, como se um simples graffiti sobre uma estátua
superasse, pela sua natureza, qualquer ofensa representada pela própria
estátua. E, no entanto, dentro do contexto internacional de contestação
anti-racista, nada parece ter funcionado tão bem quanto essa minúscula
intervenção para fazer ruir a barreira consensual, e reintroduzir em força um
passado colonial há muito reprimido no debate público português.
A potência destes
actos espontâneos de vandalismo e destruição reintroduz um debate importante
sobre a instrumentalidade dos monumentos, não só na construção da memória
colectiva, mas sobretudo na consolidação de uma autoridade simbólica e no
silenciamento de versões alternativas da história, ainda mais num momento em
que esta é devolvida à sua condição de campo de batalha. E, embora seja sempre
um choque assistir à ruína de um universo simbólico que nos habituámos a
assumir como o mais isento e universal de todos, estarão bem presentes na nossa
memória imagens de símbolos derrubados noutros lugares do mundo, desde os
monumentos soviéticos após a queda da URSS, à estátua de Saddam Hussein, no
Iraque. O facto de algo semelhante acontecer agora nos EUA e na Europa
recorda-nos apenas que, tal como sucede com os monumentos, nenhum império é
eterno; e que o desejo de mudança, de emancipação do que é velho e obsoleto,
encontrará sempre meios de fender os consensos mais sólidos, para relançar a
história na sua indefinição fundamental.
Perante as imagens
que hoje testemunhamos, que impacto têm essas figuras inertes de personagens
ficcionadas, ocupando os centros das praças povoadas por turistas, quando
comparadas com a figura decapitada de Cristóvão Colombo, em Boston, ou com a
estátua de Edward Colston desaparecendo nas águas do Rio Avon? As primeiras não
passam de restos obsoletos de um império estéril e decadente, derradeiramente
mantido com recurso à coacção e à força bruta, enquanto as segundas são imagens
vívidas de uma história em acontecimento, testemunho de um mesmo impulso
vital que atravessou os povos colonizados e escravizados do passado, e os povos
explorados e oprimidos do presente; um impulso de resistência e emancipação que
é comum aos povos indígenas, que continuam a defender territórios contra os
avanços da destruição capitalista e dos seus mercenários; aos negros,
rotineiramente abordados, capturados e assassinados pelos agentes do
capitalismo racial; aos despossessados, condenados aos trabalhos mais fúteis e
precários para sobreviver em condições cada vez mais miseráveis; entre uma
multidão de anónimos por todo o mundo, cujo incomensurável contributo para
história, pela afirmação da vida através de corajosos actos de resistência,
permanecerá para sempre por homenagear.
A revolta da multidão
anónima contra os monumentos é a revolta contra uma história que não é a sua;
contra uma história forjada para sustentar que o progresso sempre foi dirigido
por homens brancos e europeus, e que as suas atrocidades não passaram de meros
acidentes ou danos colaterais justificados pela premência desse progresso; uma
história que omite e faz esquecer os povos subjugados, desfeitos e extintos, os
inestimáveis saberes e culturas varridos da face da Terra pela mesma violência
arbitrária que ameaça hoje a própria existência da espécie humana. A revolta no
ocidente contra a violência colonial, cujo ponto de ignição foi a imagem de um
polícia asfixiando até à morte um homem negro nos EUA, parte do reconhecimento
de que essa violência nunca deixou de existir, de que ela está viva e é actual
por toda a parte, desde no polícia que a exerce, até ao monumento que a
oculta.
Esta revolta traz a
esperança de um reconhecimento generalizado da natureza colonial do
capitalismo, que coloniza os territórios, as comunidades e os saberes, os
corpos e o próprio desejo; que canaliza todos os recursos naturais,
energéticos, culturais, técnicos e intelectuais para alimentar as máquinas da
sua própria reprodução, destruindo e desperdiçando tudo aquilo que não pode
assimilar, a saber, tudo o que potencia a nossa liberdade. Essa mesma violência
arbitrária, que nunca deixou de ser combatida e denunciada por movimentos
indígenas, negros, trabalhadores, feministas, ecologistas, de minorias sexuais…
entre uma infinidade de outros sujeitos políticos sem nome, mais ou menos
larvares, mais ou menos efémeros; fruto também desse esforço ininterrupto,
torna-se agora visível para outros, incluindo aqueles que não a experienciam de
modo tão óbvio e directo.
Voltando ao problema
do passado colonial, podemos enfim reconhecer que o confronto com esse passado
se prende afinal com uma necessidade perfeitamente actual. Uma necessidade que,
ao contrário do que reclamam algumas vozes mais fanáticas, nada tem a ver com
auto-flagelação. Auto-flagelação não é confrontar o passado. É antes continuar
a reproduzi-lo.
•
Paulo
Ávila
Paulo Ávila (1994) é arquitecto pela
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Colabora com o Jornal
Punkto desde 2017.
Imagem
O momento
dramático em que a estátua de Edward Colston foi removida do seu plinto no
centro de Bristol, a 7 de Junho de 2020 (Harry Pugsley/SWNS)
Ficha Técnica
Data de publicação: 17.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •