Nós, europeus… • Pedro Levi Bismarck





A propósito dos confrontos em Amesterdão entre adeptos do Maccabi Tel Aviv e manifestantes pró-palestinianos é particularmente interessante comparar a notícia do Jornal da Tarde da RTP, de sexta-feira, dia 8 de Novembro, com a notícia do Primeiro Jornal da SIC do mesmo dia. É, aliás, bastante elucidativo para compreender como alguns órgãos de comunicação social deixaram de fazer jornalismo, sobretudo no que toca a Israel, construindo, neste caso, a narrativa de que os adeptos israelenses foram unilateralmente e subitamente atacados. Na verdade, como mostra a reportagem da RTP, foram, desde logo, os adeptos israelenses, ainda antes do jogo, que desencadearam um sem número de acções provocatórias: como arrancar bandeiras palestinianas penduradas em edifícios, entoar cânticos racistas e anti-árabes ou apelar ao genocídio dos palestinianos («Let the IDF win, to fuck the arabs»). Para além disso, os adeptos do clube de Tel Aviv, não respeitaram o minuto de silêncio pelas vítimas das inundações em Valência, devido às posições de Espanha relativamente a Israel.

Houve agressões no final do jogo contra os adeptos do clube israelense (e essas devem ser condenadas), mas isso decorreu num clima de acentuada provocação por parte dos hooligans israelenses. A pura e simples vitimização israelense e a identificação destas manifestações como «ataques anti-semitas» por parte das autoridades europeias não fazem mais do que atirar lenha para um lume já de si explosivo é verdade, mas onde ardem os corpos de quase 50 mil palestinianos. E isso é um facto inescapável e é uma fonte de descontentamento e injustiça. Como é possível Ursula von der Leyen vir dizer, a este propósito, que «não tolera ódio na Europa», depois de um ano inteiro a financiar e a legitimar o massacre e a devastação absoluta de Gaza pelas forças israelenses? Como é possível vir com a sua auctoritas impregnada de laca e maquilhagem, assumir-se como representante na Terra dos mais altos valores éticos e morais depois de financiar e legitimar a morte de 50 mil palestinianos?

Ao transformar e generalizar o direito legítimo de manifestação contra o Estado de Israel e o genocídio do povo palestiniano em actos ilegítimos de puro anti-semitismo (como se não fosse possível uma manifestação contra Israel, porque isto seria sempre anti-semitismo), a Europa cai numa tautologia ético-política catastrófica cujo corolário moral é este e apenas este: justificar o genocídio em nome do holocausto. Esta posição não silencia apenas o genocídio do povo palestiniano em curso, não alimenta apenas todo um ciclo crescente de mais violência, mas é ela própria anti-semita porque afirma uma mentira histórica, ao garantir a unidade e a identificação total de todos os judeus com o Estado de Israel, o que está longe de ser verdade.

Se os israelenses ou as autoridades israelenses reivindicam para si todo um direito à impunidade moral (que não é senão o movimento intrínseco a todas as catástrofes históricas), a Europa, por mais propaganda mediática que possa ter, cai num abismo ético do qual dificilmente poderá sair incólume, precisamente porque demonstra como a universalidade dos seus valores (democracia, liberdade, direitos humanos) é tudo menos universal e está apenas indexada aos valores monetários, económicos, coloniais, racistas e imperiais, da sua existência num mundo que, para todos os efeitos, há muito que deixou de lhe pertencer. Já não é o rei, mas é a Europa quem vai nua. O gesto já foi prontamente assinalado e nem foi preciso a inocência ou a desfaçatez das crianças. Todos nós o sabemos. Restam os ecrãs da comunicação social, a extrema-direita fascista e o neoliberalismo da comissão europeia, para velar as partes pudibundas desta Europa em decadência e encher de grandeza retórica os seus €feitos imperiais. O cortejo cerimonioso e ostensivo com que a Europa exibe os seus valores não é mais que o seu próprio cortejo fúnebre.

Em «A Economia Política do Mito. Considerações sobre o fascismo a partir de ‘O Mito de Israel’» propus a necessidade de pensar Israel como Mito, tal como o fizeram Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy a propósito do nazismo, ao pensar a identidade de um «Mito Nazi. Isto é, tratava-se de pensar como Israel se constituiu através da mobilização de todo um dispositivo mítico de legitimação em que o Estado é elevado à categoria de figura de realização e redenção da totalidade de um povo «judeu», justificando não apenas a ocupação da Palestina, mas a limpeza étnica de todo um povo. Mito de Israel, ficção, fundamento e destino: a co-pertença axiomática total e absoluta entre «povo, terra e crença» num regime onde toda a política se torna crença e onde toda a crença foi politizada.

No entanto, talvez devêssemos levar a sério a possibilidade de pensar um «Mito da Europa»: catástrofe escatológica de uma unidade imperial em desagregação, em queda infinita. Afirmação cada vez mais teológica e menos política dos «valores Europeus», capazes de oferecer um  suplemento religioso de unidade e identificação (nós, europeus, bons, éticos, sempre do lado certo da história, não fosse esta a nossa história) e uma legitimação para a continuação da catástrofe em curso, em nome da liberdade, da democracia e da razão. O mito da Razão, o mito da Europa. Civilização e Colonialismo; Humanismo e Racismo, Liberdade e Genocídio. O Libanês Elias Jaradi exprime como ninguém a única conclusão possível, para esses que vêem a Europa e o Ocidente do exterior: «não há democracia ocidental, apenas hipocrisia ocidental». Agora que a Europa foi elevada à condição de ficção ou de crença, mas cada vez mais pertença de apenas alguns, talvez não nos reste outro desígnio se não talvez deixarmos de ser europeus.

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do jornal Punkto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Ficha técnica

«Nós, europeus…» • Pedro Levi Bismarck  

Data de publicação • 09.11.2024

 Edição #42 • Outono 2024