A
propósito dos confrontos em Amesterdão entre adeptos do Maccabi Tel Aviv e
manifestantes pró-palestinianos é particularmente interessante comparar a
notícia do Jornal da Tarde da RTP, de sexta-feira, dia 8 de Novembro, com a
notícia do Primeiro Jornal da SIC do mesmo dia. É, aliás, bastante elucidativo para
compreender como alguns órgãos de comunicação social deixaram de fazer
jornalismo, sobretudo no que toca a Israel, construindo, neste caso, a narrativa de que os
adeptos israelenses foram unilateralmente e subitamente atacados. Na verdade,
como mostra a reportagem da RTP, foram, desde logo, os adeptos israelenses,
ainda antes do jogo, que desencadearam um sem número de acções provocatórias:
como arrancar bandeiras palestinianas penduradas em edifícios, entoar cânticos
racistas e anti-árabes ou apelar ao genocídio dos palestinianos («Let the
IDF win, to fuck the arabs»). Para além disso, os adeptos do clube
de Tel Aviv, não respeitaram o minuto de silêncio pelas vítimas das inundações
em Valência, devido às posições de Espanha relativamente a Israel.
Houve
agressões no final do jogo contra os adeptos do clube israelense (e essas devem
ser condenadas), mas isso decorreu num clima de acentuada provocação por parte
dos hooligans israelenses. A pura e simples vitimização israelense e a
identificação destas manifestações como «ataques anti-semitas» por parte das
autoridades europeias não fazem mais do que atirar lenha para um lume já de si explosivo
é verdade, mas onde ardem os corpos de quase 50 mil palestinianos. E isso é um
facto inescapável e é uma fonte de descontentamento e injustiça. Como é
possível Ursula von der Leyen vir dizer, a este propósito, que «não tolera ódio
na Europa», depois de um ano inteiro a financiar e a legitimar o massacre e a
devastação absoluta de Gaza pelas forças israelenses? Como é possível vir com a
sua auctoritas impregnada de laca e maquilhagem, assumir-se como representante
na Terra dos mais altos valores éticos e morais depois de financiar e legitimar
a morte de 50 mil palestinianos?
Ao transformar
e generalizar o direito legítimo de manifestação contra o Estado de Israel e o
genocídio do povo palestiniano em actos ilegítimos de puro anti-semitismo (como
se não fosse possível uma manifestação contra Israel, porque isto seria sempre
anti-semitismo), a Europa cai numa tautologia ético-política catastrófica cujo
corolário moral é este e apenas este: justificar o genocídio em nome do
holocausto. Esta posição não silencia apenas o genocídio do povo
palestiniano em curso, não alimenta apenas todo um ciclo crescente de mais
violência, mas é ela própria anti-semita porque afirma uma mentira histórica,
ao garantir a unidade e a identificação total de todos os judeus com o Estado
de Israel, o que está longe de ser verdade.
Se
os israelenses ou as autoridades israelenses reivindicam para si todo um direito
à impunidade moral (que não é senão o movimento intrínseco a todas as catástrofes
históricas), a Europa, por mais propaganda mediática que possa ter, cai num
abismo ético do qual dificilmente poderá sair incólume, precisamente porque
demonstra como a universalidade dos seus valores (democracia, liberdade,
direitos humanos) é tudo menos universal e está apenas indexada aos valores monetários,
económicos, coloniais, racistas e imperiais, da sua existência num mundo que, para todos os efeitos, há muito que
deixou de lhe pertencer. Já não é o rei, mas é a Europa quem vai nua. O gesto
já foi prontamente assinalado e nem foi preciso a inocência ou a desfaçatez das
crianças. Todos nós o sabemos. Restam os ecrãs da comunicação social, a
extrema-direita fascista e o neoliberalismo da comissão europeia, para velar as
partes pudibundas desta Europa em decadência e encher de grandeza retórica os
seus €feitos imperiais. O cortejo cerimonioso e ostensivo com que a Europa
exibe os seus valores não é mais que o seu próprio cortejo fúnebre.
Em «A
Economia Política do Mito. Considerações sobre o fascismo a partir de ‘O Mito
de Israel’» propus a necessidade de pensar Israel como Mito, tal como o fizeram
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy a propósito do nazismo, ao pensar a
identidade de um «Mito Nazi. Isto é, tratava-se de pensar como Israel se constituiu
através da mobilização de todo um dispositivo mítico de legitimação em que o
Estado é elevado à categoria de figura de realização e redenção da totalidade
de um povo «judeu», justificando não apenas a ocupação da Palestina, mas a limpeza
étnica de todo um povo. Mito de Israel, ficção, fundamento e destino: a
co-pertença axiomática total e absoluta entre «povo, terra e crença» num regime onde toda a política se torna crença
e onde toda a crença foi politizada.
No
entanto, talvez devêssemos levar a sério a possibilidade de pensar um «Mito da
Europa»: catástrofe escatológica de uma unidade imperial em desagregação, em
queda infinita. Afirmação cada vez mais teológica e menos política dos «valores
Europeus», capazes de oferecer um suplemento religioso de unidade e
identificação (nós, europeus, bons, éticos, sempre do lado certo da história,
não fosse esta a nossa história) e uma legitimação para a continuação da
catástrofe em curso, em nome da liberdade, da democracia e da razão. O mito da
Razão, o mito da Europa. Civilização e Colonialismo; Humanismo e Racismo, Liberdade
e Genocídio. O Libanês Elias Jaradi exprime como ninguém a única conclusão
possível, para esses que vêem a Europa e o Ocidente do exterior: «não há
democracia ocidental, apenas hipocrisia ocidental». Agora que a Europa foi
elevada à condição de ficção ou de crença, mas cada vez mais pertença de apenas
alguns, talvez não nos reste outro desígnio se não talvez deixarmos de ser europeus.
•
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do jornal Punkto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos
de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do
Porto).
Ficha
técnica
«Nós,
europeus…» •
Pedro Levi Bismarck •
Data de
publicação • 09.11.2024 •
Edição #42 • Outono 2024