«Assim como as
algas monstruosas e mutantes invadem a Lagoa de Veneza, também os nossos ecrãs
de televisão são povoados, saturados, por imagens e opiniões “degeneradas”. No
campo da ecologia social, é permitido a homens como Donald Trump que proliferem
livremente, como outra espécie de algas, tomando conta de bairros inteiros de Nova
Iorque e Atlantic City; ele “regenera” ao aumentar as rendas, expulsando desse
modo dezenas de milhares de famílias pobres, na sua maioria condenadas a ficar
sem casa, tornando-se no equivalente aos peixes mortos na ecologia ambiental».
— Félix Guattari, The Three
Ecologies.
Nestas
linhas escritas quando Trump estava ainda a entrar em cena, Guattari prevê
aquilo que é hoje claro como o sol: a deregulation neoliberal permitiu
que as algas monstruosas contaminassem as águas. Aconteceu previsivelmente e o
mar sobreaquecido desencadeia hoje tempestades assustadoras que matam centenas
de pessoas na costa espanhola. Além disso, a deregulation permitiu a
proliferação de fontes de enunciados que se destinam a contaminar a Mediasfera
e, por consequência, a Psicosfera. Aconteceu previsivelmente: multidões
psico-dependentes votam num canalha que promete a maior deportação da história.
Nestas poucas linhas guattarianas está descrita a génese de um ambiente
venenoso que gera violência, opressão, guerra de todos contra todos, e gera as
condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.
Repensemos as longínquas premissas daquilo a que chamamos deregulation. No princípio está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização das tecnologias electrónicas nos anos 60 e 70, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autónomas de informação. Em Itália e França, criámos centenas de rádios livres após termos travado uma batalha cultural contra o monopólio do Estado sobre a informação. Depois, a criação da world wide web tornou possível a proliferação de inúmeros núcleos de cibercultura por todo o mundo. Mas através da fenda aberta pela criatividade difusa entraram o grande capital e os grupos mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos EUA, e gente semelhante em todos os países do mundo) cujo objectivo não era a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.
Zed
is dead, baby
Assisti
ao The Apprentice, o filme de Ali Abbasi dedicado ao aprendizado do
candidato republicano nas eleições americanas. O título é retirado com astúcia
do programa de televisão no qual, há algumas décadas, Donald Trump submetia a
humilhações candidatos que se apresentavam diante dele para serem insultados,
ridicularizados, interrogados e por fim despedidos (you're fired). As
pessoas faziam fila para serem escarnecidas publicamente por aquele indivíduo
de cabelo louro. Porquê? O enigma Trump demonstra que os instrumentos da análise
política já não servem praticamente para nada. Para compreender uma tal
monstruosidade ética, psíquica e política, é preciso, de facto, falar de
humilhação, de tristeza epidémica, de auto-desprezo — é preciso falar de
liberdade ilimitada para os esclavagistas, os tiranos psicóticos e os
fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue fazê-lo, até certo ponto;
talvez não seja um grande filme, mas é útil para compreender algo do
enquadramento psíquico, existencial e mafioso em que Trump cresceu. É útil para
compreender quais são os instrumentos do seu domínio sobre a psique de um povo
miserável e imensamente ignorante.
O
filme não trata do programa The Apprentice, do qual retira oportunamente
o título. Trata antes do aprendizado do próprio Trump. Como é que ele se tornou
naquilo que é? Para responder a esta pergunta, a psicanálise pode ser mais útil
do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary Trump, psicóloga de
formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My
Family Created the World's Most Dangerous Man, onde procura compreender o
seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao
ler o livro: a vida daquele indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai desse
indivíduo era, segundo Mary, uma pessoa sociopata mas eficiente. O filme de
Abbasi consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu a
infância e a adolescência atemorizado pelas humilhações a que o pai o sujeitava
sistematicamente, o que lhe provocou feridas psíquicas profundas. “A convicção
fundamental de Fred (o pai sociopata) é a seguinte: na vida, só há um vencedor
e todos os outros são falhados, e a bondade significa apenas debilidade.” “Ou és
um falhado ou és um killer”, diz o pai ao pequeno Donald. Quando se
parte de premissas deste género, torna-se impossível desfrutar da relação com
os outros, pois essa relação só pode ser de competição, de agressão ou de
submissão. Mas, lamentavelmente, não será este um traço decisivo da
personalidade colectiva dos habitantes desse país que não teria existido sem o
genocídio dos nativos e sem a deportação e a escravatura?
As
três regras que Donald aprende com um advogado mafioso e racista (Roy Cohn) são
as seguintes: “1. Ataca ataca ataca; 2. Mente sempre; 3. Declara sempre vitória
e não admitas nunca a derrota.” Como observa um personagem do filme, jornalista
do Times, estes três princípios descrevem muito bem a política externa
americana dos últimos trinta anos. Eu diria que definem o espírito público dos
Estados Unidos da América, do início ao fim. O inconsciente colectivo dos
brancos americanos é uma cave fétida de onde emergem monstros como aquele que
Tarantino retratou em Pulp Fiction. Lembram-se de quando Bruce Willis
liberta daquela cave Marcellus, que Zed, o torturador, mantém lá em baixo
acorrentado para o violar? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump,
embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e de saúde, e que se prepara
para violar um monte de pobrezinhos.
Nomen
est omen
No
início de 2021, pouco depois da farsa da invasão do Capitólio pelas tropas do
general Trump, publiquei um ensaio sob o título The American Abyss. Quatro anos
depois, esse abismo está cada vez mais profundo e um perigo torna-se cada vez
mais evidente: a desintegração da mente americana pode provocar uma reacção em
cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Por vezes ocorre-me
pensar no nome deste indivíduo: to trump significa superar, ultrapassar,
atropelar — mas o substantivo trump também significa peido, peido fétido.
Se alguma vez a frase “nomen est omen” foi confirmada, foi neste caso. O
homem laranja é um peido fétido que se propõe (e consegue) empestar a atmosfera
psíquica, humilhando e ameaçando.
Se
eu tivesse o infortúnio de ser cidadão americano, não votaria em nenhum dos
dois candidatos: a senhora Harris, que prometeu que o exército americano será
sempre dotado da máxima letalidade, é mais perigosa do que Trump do ponto de
vista europeu, porque com Harris como presidente, a guerra ucraniana
alastrar-se-ia até ao limiar atómico. O Sr. Trump, que representa consciente e
explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os
palestinianos e, de um modo mais geral, para os migrantes, aos quais Trump e
Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como é
que Trump pode ser mais impiedoso do que Biden e Obama, que durante as suas
presidências deportaram mais migrantes do que o homem peido. E é difícil
imaginar como pode ser mais impiedoso com os palestinianos do que Biden, que
nunca interrompeu o apoio financeiro e o envio de armas aos exterminadores
israelitas. Talvez seja apenas menos hipócrita.
Psicose
Mimética
A 6
de Janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para
tomar posse na Casa Branca e o Congresso reunia para cumprir os seus rituais,
uma multidão multicolor respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e
alguns milhares de transtornados marcharam em direcção ao Capitólio. Não
encontrando resistência séria por parte da polícia, os transtornados entraram
nos corredores do Capitólio, partiram vidros de janelas, vociferando e agitando
bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas.
Donald
Trump incitou os revoltosos a retomar o poder pela força. “Vocês nunca trarão
de volta o nosso país com fraqueza. Têm de mostrar força e têm de ser fortes.
[...] Lutamos. Lutamos como danados. E se não lutarem como danados, já não
haverá país para vocês.” [You'll never take back our country with weakness.
You have to show strength and you have to be strong (...) We fight. We fight
like hell. And if you don't fight like hell, you're not going to have a country
anymore.] Ao final do dia, a multidão voltou para casa, como se faz depois
de um belo passeio dominical. Contavam-se alguns feridos, e uma pessoa morta
por um tiro disparado por um agente da polícia. Os comentadores democratas
escandalizaram-se muito, o que é compreensível. Mas o escândalo dos democratas
perante as falsidades ditas por Trump e aceites pelos seus seguidores é risível.
Depois
de 2008, os americanos brancos, atordoados por duas guerras dementes,
humilhados pelo empobrecimento que se seguiu à crise financeira, aterrorizados
pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus
SUV, ao seu direito de comer carne de vaca e de matar. O que aconteceu em
Washington a 6 de Janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de
Estado, mas um episódio simultaneamente farsesco e criminoso da guerra
civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos: um conflito entre
o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população
branca e a população negra latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e
as áreas rurais empobrecidas, um conflito cultural entre laicos e fanáticos de
um qualquer Jeová sintético, mas sobretudo uma guerra civil psicótica de
transtornados armados que decidem matar o primeiro que estiver ao alcance da
mira.
Este é o abismo americano, e não a difusão de fake news. Em 2016, aconteceu o impensável: um nazi a cores vence as eleições. Desde esse momento, ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está totalmente descontrolada], perdeu a cabeça e possui cento e vinte armas de fogo por cada cem habitantes. Os democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só um ingénuo poderia não perceber que o falso não pode ser erradicado, porque a América é o reino do falso. De 1 de Janeiro a Agosto de 2023, os mortos por armas de fogo foram vinte e oito mil duzentos e noventa e três. Aqueles que foram mortos em acções de mass-shooting (como traduzir para italiano uma palavra tão intimamente ligada à língua dos atiradores?) foram 474. Os homicídios com arma de fogo não intencionais (por outras palavras, as pessoas mortas por acidente enquanto manuseavam uma arma) foram 1.070.
Um
pai americano
Ainda
que consumam quatro vezes mais electricidade e muito mais carne do que qualquer
outro povo da terra (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos
levam uma vida miserável. A esperança média de vida em Espanha é de 83,3 anos,
na Suécia de 83,1, em Itália de 82,7 e na China de 77,1. Nos Estados Unidos, a
esperança de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm
qualquer poupança e, se adoecerem, têm grandes hipóteses de acabar na rua. Em
2022, os mortos registados por overdose de psicofármacos opiáceos foram cem
mil. A maior potência militar do planeta está a desintegrar-se. A palavra “impensável”
é recorrente no discurso público dos EUA nos últimos anos. We Need to Think
the Unthinkable About Our Country é o título de um editorial do New York
Times de 13 de Janeiro de 2022, assinado por Jonathan Stevenson e Steven
Simon: “As próximas eleições serão inevitavelmente disputadas com hostilidade e
talvez de forma violenta. É bom que se diga que a ameaça da direita nos Estados
Unidos é politicamente existencial. Os Estados Unidos, tal como os conhecemos,
podem desintegrar-se”.
The Unthinkable
é, aliás, o título de um livro de Jamie Raskin, lançado a 6 de Janeiro de
2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um
escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland nas
fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito
Constitucional, diz-se liberal e é pai de três filhos de idades entre os vinte
e os trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, activista político, apoiante de
causas progressistas, animalista, morreu na noite do último dia do ano de 2020.
Tommy escolheu morrer, suicidou-se, como se costuma dizer. Fê-lo depois de uma
longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o
trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a
decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de
uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a
dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas, ao mesmo tempo, foi-me
revelada a profundidade da crise que está a dilacerar o Ocidente e que, em
particular, obscurece o horizonte cultural da democracia liberal. O pai já não
tem um mundo de valores para transmitir ao filho.
No
livro, três histórias diversas desenrolam-se simultaneamente e alimentam-se
entre si: a primeira é a história do fascismo americano emergente. A segunda é
a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua
sensibilidade ética. O terceiro é o efeito da Covid-19 sobre as mentes da geração
jovem que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão
e, na sua última mensagem, fala dela: “perdoem-me, a minha doença venceu”. Jamie
Raskin escreve: “Como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela
Covid para uma espiral maligna. Com a escola encerrada, a vida social reduzida
a um frágil mínimo com máscara, viajar é um pesadelo. As relações são difíceis,
forçadas a uma intimidade prematura e incómoda ou, mais precisamente, a um
esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a contracção
económica e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram forçados a
regressar a casa dos pais, a um quarto cheio de livros do liceu. .... Tommy
tinha-se declarado anti-natalista porque não podia aceitar a perspectiva de
impor a outro ser humano uma vida condenada a ser dominada pela dor da tristeza
e do sofrimento”, escreve Raskin. “Por mais que Sarah e eu tentássemos
descrever-lhe a alegria de ter filhos, Tommy não aceitava renunciar à sua
determinação, porque ninguém tem o direito de impor a inevitável experiência da
dor sobre um outro. Não me consola saber que uma parte enorme e crescente da
geração de Tommy pensa o mesmo sobre a questão de não ter filhos.”
O
anti-natalismo é provavelmente um efeito da depressão, como não? Mas isto
demonstra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria, não só de doença.
Torna-se numa doença quando não somos capazes de compreender a sua mensagem e
nos tentamos desesperadamente conformar às normas dominantes de produtividade,
eficácia e dinamismo. Rejeitar a mensagem da depressão, reafirmar a força de
vontade contra a mensagem da depressão, é um modo de cair numa deriva suicida. Se
formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível
uma evolução consciente e partilhada da depressão. No caso de Tommy, isto é
evidente: o seu desnatalismo é talvez mais sensato do que a decisão irresponsável
de trazer inocentes ao mundo, destinados a uma vida quase certamente infeliz. Após
a morte do seu filho, a percepção de Raskin foi transformada: o seu optimismo
de constitucionalista foi abalado pela explosão de força bruta que tende a
prevalecer sobre a força da razão, e as suas certezas democráticas vacilaram
frente ao alastrar da depressão. “De repente, o meu optimismo constitucional
embaraça-me como se fosse uma vergonha. Temo que o meu optimismo político
radiante, aquilo que muitos dos meus amigos mais apreciaram em mim, se tenha
tornado numa armadilha de auto-ilusão em massa, uma debilidade que pode ser
explorada pelos nossos inimigos.”
O
optimismo político deste generoso professor de Direito é abalado pela súbita
constatação de que a democracia liberal assenta em bases frágeis. De facto,
escreve: “Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de
escravos. Estes factos não são acidentais, mas resultam da própria arquitectura
das nossas instituições políticas.” A escravatura faz parte da bagagem psíquica
da nação americana. Como é que esta nação pode pretender ser considerada como
um exemplo por qualquer outra? Como evitar pensar que esta nação seja um perigo
para a sobrevivência da humanidade? A lei do pai já não tem qualquer poder
sobre o caos. Hoje, no primeiro dia de Novembro de 2024, Trump arrisca-se a
voltar a ser presidente, enquanto o mundo, por vontade americana, entrou num
ciclo de guerra civil psicótica cujos resultados são imprevisíveis, e de facto
propriamente impensáveis. O pai já não tem um mundo de sentido para entregar ao
filho. A lei do pai já não tem qualquer poder sobre o caos. Independentemente
de quem vença estas eleições dopadas de biliões de dólares, o caos está
garantido.
•
Franco “Bifo” Berardi
Franco “Bifo” Berardi foi uma figura de destaque no operaísmo
italiano, em particular na sua ala mais criativa e dedicada à experimentação
com os média e a produção cultural. Fundou a Radio Alice, primeira rádio livre
em Itália (1976-1978), e a revista A/traverso (1976-1981), que combinava
maoísmo e dadaísmo numa crítica anti-autoritária. Exilado em Paris, trabalhou
com Felix Guattari em esquizoanálise. Desde os anos 1990 que o seu trabalho tem
incidido sobre a relação entre psicopatologia, tecnologias da informação e
capitalismo.
Nota da edição
Este texto foi originalmente publicado em italiano, no
blogue Il Disertore, a 1 de Novembro de
2024.
Imagem
As imagens apresentadas ao longo do texto correspondem às
suas ilustrações originais, escolhidas pelo autor.
Ficha Técnica
«Loving Gun Smoke» • Franco “Bifo” Berardi
Data de publicação: 18.11.2024
Edição #42 • Outono 2024 •