A
falência económica e política dos EUA
Um duplo,
contraditório e complementar, processo político e económico está em curso: o
Estado e a política (dos EUA) afirmam com veemência a sua soberania através da
guerra (incluindo a guerra civil) e do genocídio. Ao mesmo tempo, expõe a sua
total subordinação ao novo rosto que o poder económico assumiu após a dramática
crise financeira de 2008, promovendo uma financeirização sem precedentes, tão
ilusória e perigosa como a que produziu a crise do subprime. A causa do
desastre que nos levou à guerra converteu-se num novo remédio para sair da
crise: uma situação que não pode ser senão prenúncio de novas catástrofes e
guerras. A análise do que está a acontecer nos Estados Unidos, o coração do
poder capitalista, é crucial, porque é precisamente do seu âmago, da sua
economia e da sua estratégia de poder, que provêm todas as crises e todas as
guerras que devastaram e continuam a devastar o mundo.
O
cerne do problema está na falência do modelo económico e político dos EUA, que
conduz necessariamente à guerra, ao genocídio e à guerra civil interna, por
enquanto apenas latente, mas que já se materializou uma primeira vez no
Capitólio, no final da presidência de Donald Trump. A economia norte-americana
já deveria há muito ter declarado bancarrota, se lhe aplicassem as mesmas
regras que valem para os outros países. No final de Abril de 2024, a dívida
pública total, chamada Total Treasury Security Outstanding, ou seja, a
soma das várias obrigações e títulos da dívida pública, ascendia aos 34.617
biliões de dólares. Doze meses antes, este valor era de 31.458 biliões. Num
ano, a dívida pública aumentou 3,16 biliões de dólares, valor quase equivalente
à dívida pública da Alemanha, a quarta maior economia mundial. Mas é a sua
progressão exponencial que está agora completamente fora de controlo: um
aumento de mil milhões a cada cem dias. Hoje, já aumenta 1 bilião a cada 60
dias.
Se
há uma nação que vive às custas do mundo inteiro, são os EUA. O resto do mundo
paga as dívidas desta (os gastos desmesurados do “American way of life”
— de que, evidentemente, só uma fracção dos americanos beneficia — e o seu
enorme aparato militar) de duas maneiras principais. Primeiro, através do
dólar, a mercadoria mais transaccionada do mundo, os EUA exercem senhoriagem
sobre o planeta inteiro, visto que a sua moeda nacional funciona como a moeda
do comércio internacional, consentindo-lhe um endividamento superior a qualquer
outro país. Após a crise de 2008, os EUA desenvolveram outro sistema para
transferir os custos da sua dívida para outros, através de uma reorganização
das finanças. Os capitais (principalmente dos aliados e, entre estes, sobretudo
da Europa) são transferidos para os Estados Unidos para pagar os crescentes
juros da dívida, graças aos fundos de investimento. Após a crise financeira,
foi constituída uma concentração de capitais, graças a quinze anos de quantitative
easing (liquidez a custo zero) por parte dos bancos centrais, resultando
num monopólio de dimensões que o capitalismo jamais tinha conhecido. Com a
ajuda política das administrações Obama e Biden, um grupo extremamente restrito
de fundos americanos dispõe de activos (ou seja, captação e gestão da poupança)
de entre 44 e 46 biliões de dólares. Para se ter uma ideia do que significa
esta centralização monopolista, podemos compará-la com o PIB da Itália — 2
biliões de dólares — ou com o de toda a União Europeia — 18 biliões de dólares.
Os “Três Grandes”, como são designados os três fundos mais importantes, Vanguard,
Black Rock e State Street, constituem, de facto, uma única
realidade, na medida em que a propriedade dos fundos é cruzada e difícil de
atribuir.
A fortuna deste “hiper-monopólio” foi
construída sobre a destruição do Estado-Social. Para adquirir pensões, saúde,
educação e qualquer outro tipo de serviço social, os americanos são forçados a
subscrever todo o tipo de seguros. É agora a vez dos europeus e do resto do
mundo ocidental (mas também da América Latina de Milei) se colocarem nas mãos
dos fundos de investimento, a um ritmo ditado pelo desmantelamento dos serviços
sociais (o salário indirecto garantido pelo Welfare transforma-se numa
carga, num custo e uma despesa que cada um deve assumir para assegurar a sua
própria reprodução). Os EUA têm um duplo interesse em prosseguir e intensificar
o desmantelamento do Welfare a nível mundial: económico, porque induz ao
investimento em títulos de fundos (que, por sua vez, servem para comprar
títulos do tesouro, obrigações e acções de empresas americanas) e político,
porque a privatização dos serviços significa individualismo e financeirização
do indivíduo, que passa de trabalhador ou cidadão a pequeno operador financeiro
(e não a empresário de si mesmo, como recita a ideologia dominante). Também as
políticas fiscais convergem no projecto de anulação do Estado-providência. Nem
os ricos nem as empresas são obrigados a pagar impostos, e a progressividade
dos impostos é reduzida a zero; portanto, não há mais recursos para despesas
sociais e, consequentemente, incentiva-se à aquisição de apólices privadas que
acabam em fundos de investimento. O plano de destruição de tudo o que foi
concedido ao longo de duzentos anos de luta está, finalmente, a ser
concretizado.
A
poupança americana já não chega para alimentar o circuito das rendas, pelo que
os fundos estão à caça da poupança europeia. Por exemplo, os 35 triliões de
dólares que Enrico Letta pretendia destinar a um grande fundo de investimento
europeu funcionariam segundo os mesmos princípios: produzir e distribuir renda,
dando forma às mesmas e enormes diferenças de classe que se encontram nos EUA.
A razão do rápido e incrível empobrecimento da Europa reside na estratégia
económica levada a cabo pelo aliado americano. o défice em relação aos EUA
aumentou de 15% em 2002 para 30% actualmente. Quanto mais a Europa se deixa
roubar, mais as suas classes políticas e mediáticas se tornam atlantistas,
belicistas, totalmente submissas perante aqueles que as marginalizam de maneira
dramática, empurrando-as para a guerra contra a Rússia (que, aliás, nem sequer
são capazes de apoiar). Os Estados europeus substituíram a China e a Ásia
Oriental na compra de títulos do tesouro americano e, prosseguindo a demolição
do Estado social, forçam a população a subscrever apólices de seguro que acabam
nas contas dos fundos de investimento. Deste modo, o euro converte-se em dólar,
salvando assim a dolarização da ameaça proveniente da recusa do Sul em
submeter-se ao domínio da moeda americana.
Esta
transferência de riqueza afecta também a América Latina, onde Milei é a
vanguarda da nova financeirização que visa privatizar tudo. O neo-fascismo de
Milei é um laboratório para ajustar as técnicas de saque norte-americanas
adoptadas na Europa, no Japão e na Austrália, também às economias mais débeis.
Não é o fascismo clássico, mas sim o novo fascismo “libertário” da renda e do
fundo de investimento que é encarnado por Milei, uma cópia ideológica barata do
fascismo de Silicon Valley, nascido das suas empresas “inovadoras”.
A
política económica de Biden, orientada para repatriar indústrias que tinham
sido descentralizadas, empobrece ainda mais o resto do mundo e especialmente a
Europa, que vê empresas estabelecidas no seu território a tentar atravessar o
Atlântico. Os grandes benefícios fiscais necessários são financiados com
dívida, e igualmente com dívida são financiadas as bombas (milhares de milhões
de dólares) que os EUA continuam a enviar para a Ucrânia e para Israel. Pelo
que, ironia do destino, a Europa paga a política destinada a reduzir ainda mais
a sua capacidade produtiva, tal como paga duas vezes a guerra e o genocídio,
uma primeira vez com a compra de títulos do tesouro americano e apólices de
seguro que permitem que os EUA se endividem, e uma segunda vez com a imposição
de uma economia de guerra (aceite e acelerada por classes políticas engendradas
no suicídio).
Como
disse Kissinger: “Pode ser perigoso ser inimigo dos EUA, mas ser seu amigo é
fatal”, Esta enorme liquidez permitiu que os fundos comprassem, em média, 22%
de todo o índice da Standard & Poors, que contém as 500 principais
empresas cotadas na Bolsa de Nova Iorque. Os fundos já estão representados nas
mais importantes empresas e bancos europeus (sobretudo em Itália, onde estão a
ser vendidos a um ritmo acelerado) e as suas especulações decidem praticamente
o destino da economia, orientando as escolhas dos “empreendedores”.
Houve
quem tivesse delirado com a autonomia do proletariado cognitivo, com a
independência da nova composição de classe. Porém não há nada mais falso. Quem
decide onde, quando, como e com que força de trabalho produzir (assalariada,
precária, servil, escrava, feminina, etc.) é, mais uma vez, quem detém o
capital necessário, quem possui a liquidez e o poder para fazê-lo (actualmente, sem dúvida, os “Big Three”).
Não é certamente o proletariado mais débil dos últimos dois séculos. Longe de
ser de autonomia e independência, a realidade de classe é a da subordinação, da
subjugação e da submissão, como nunca antes na história do capitalismo. Ser
“trabalho vivo” é uma desgraça, porque é sempre um trabalho comandado, como o
do meu pai e do meu avô. O trabalho não produz “o” mundo, mas o “mundo do
capital”, que, até que se prove o contrário, é algo muito diferente, porque é
um mundo de merda. O trabalho vivo só pode ganhar autonomia e independência na
rejeição, na ruptura, na revolta e na revolução. Sem isso, trata-se de uma
impotência assegurada!
O
conflito interno do capital financeiro americano
Luca Celada, num artigo publicado na Dinamopress,
cita Robert Reich qualificando-o como “progressista” por ter sido um
ex-ministro do governo Clinton que, como bom democrata, intensificou a
financeirização (e a consequente destruição do Welfare) e aprofundou
desigualdades de classe abismais, lançando bases sólidas para o desastre de
2008, que esteve na origem das guerras actuais. A acção de Musk e Thiel,
empresários de Silicon Valley e aliados de Trump, é vista como a ameaça
de um novo monopólio, enquanto é ignorada a inédita centralização do poder dos
fundos que há quinze anos fazem o que bem entendem com a cumplicidade activa
dos democratas, numa actuação combinada que vem criando as condições para a
próxima catástrofe financeira.
“Talvez
não seja de todo por acaso, que a “entrada na política” dos magnatas de Silicon
tenha coincidido com os primeiros indícios de uma acção regulatória mais
vigorosa por parte da administração Biden-Harris, incluindo as primeiras
efectivas acções judiciais antitrust contra gigantes como a Google,
a Amazon e a Apple, lançadas pela presidente da Federal Trade
Comission, Lina Khan (cuja tese de graduação foi dedicada ao monopólio da Amazon)
e pelo igualmente feroz procurador-geral adjunto da Justiça, Jonathan Kanter.
Não é, portanto, surpreendente que alguns “barões de Silicon” apostem agora no
candidato mais susceptível de lhes renovar um cheque em branco. E até mesmo de
nomear alguns deles para o seu próprio governo”.
Kamala
Harris tem as mãos atadas à vontade dos fundos, porque os accionistas de
referência de todas (e mesmo todas) as empresas que Celada menciona são
justamente os fundos. Não vejo como é
que ela pode contrariar o seu monopólio, do qual depende a salvação dos EUA e a
do seu partido (“democratas pelo genocídio”). A justificação para a cegueira em
relação aos “progressistas” deve ser reconhecida no neo-fascismo de Trump. Se
ele for eleito, passar-se-á da frigideira para o fogo; mas não devemos esquecer
que já com a eleição de Biden, caímos da frigideira para o fogo da guerra e do
genocídio. Tinham-nos assegurado que a violência nazi tinha sido um parêntesis,
mas os Democratas recordaram-nos que o genocídio é, pelo contrário, um dos
instrumentos com que o capitalismo tem operado desde a sua origem. A democracia
americana é fundada sobre o genocídio e a escravatura. O racismo, a segregação
e o apartheid são a sua outra componente estrutural. A cumplicidade com
Israel tem raízes profundas na história da “mais política” das democracias,
segundo Hannah Arendt.
Os
pequenos monopolistas, como Musk, mobilizaram-se porque o grande monopólio não
os deixa respirar, mas estão completamente subordinados à sua lógica. Na
realidade, trata-se de um conflito interno ao capital financeiro americano: os
pequenos monopolistas gostariam de representar os “espíritos animais” do
capitalismo, asfixiados, segundo eles, pela aliança dos democratas com os
grandes fundos de investimento. Enquanto agitam um fascismo futurista (mais uma
vez, nada de verdadeiramente novo se pensarmos no fascismo histórico, onde o
futurismo da velocidade, da guerra, das máquinas se harmonizava sem problemas
com a violência anti-proletária e anti-bolchevique), um trans-humanismo e um
delírio ainda mais oligárquico e racista do que aquele dos fundos financeiros.
Estes pequenos monopolistas estão, de facto, alinhados com os grandes quanto à
questão principal: a propriedade privada, ou seja, o alfa e o ómega da
estratégia do capital.
A
sua agenda comum é a de financeirizar tudo, o que significa a privatização de
tudo. Os problemas surgem quando se trata de dividir este enorme bolo. Para compreender os limites da análise
progressista, é preciso mergulhar rapidamente no funcionamento da
financeirização monopolista conduzida pelos fundos de investimento após 2008. A
crise do subprime foi sectorial e a especulação concentrou-se no
imobiliário. Hoje, pelo contrário, a finança é omnipresente. De Obama a Biden,
as administrações democratas acompanharam a infiltração dos fundos em toda a
sociedade: não há esfera da vida que hoje não esteja financeirizada.
A
financeirização da reprodução: fala-se muito da centralidade da reprodução nos
movimentos, mas com um atraso abismal face à acção dos fundos, cuja condição
prévia é a destruição do Welfare. Os democratas abandonaram todas as
vagas ambições de um novo Welfare e apostaram tudo na privatização de
todos os serviços sociais. Teorizaram-no abertamente: a democratização da
finança deve conduzir à financeirização da classe média. Os fundos, favorecidos
de todas as formas pelos democratas, garantiriam um investimento financeiro
seguro, de modo a que os americanos que compram os títulos produzidos por esses
fundos assegurariam para si o rendimento e os serviços que o trabalho já não
assegura (os que podem pagar, porque os pobres, as mulheres solteiras e a
grande maioria dos trabalhadores estão excluídos — numa sondagem recente,
verificou-se que 44% das famílias americanas não conseguem fazer face a uma
despesa imprevista de 1000 dólares).
A classe média, para Kamala Harris, vai até a
um rendimento de 400.000 dólares por ano. Um dado significativo para
compreender a composição social que os democratas têm como referência. O
trabalho e os trabalhadores desapareceram completamente do horizonte dos
democratas, assim como da “esquerda” em geral. O milagre da multiplicação dos
pães e dos peixes, replicado pela finança e já fracassado em 2008, é agora
reproposto como a solução para a “questão social”. Repetimos, trata-se de um
processo de financeirização do welfare, porque os títulos e as políticas
substituem os serviços prestados pelo Estado. Podemos também citar o caso
italiano: perante o desinvestimento do Estado no território devastado pela
crise climática, o ministro da Protecção Civil relançou a ideia de um seguro
obrigatório contra as inundações. Matteo Salvini interveio dizendo que “o
Estado pode dar indicações, mas não vivemos num Estado ético em que o Estado
nos impõe, proíbe ou força a fazer” e, em vez disso, propôs uma nova lei para
forçar os trabalhadores a investir parte da sua TFR (Indemnização por Despedimento
[Trattamento di Fine Rapporto]) em fundos de pensões, a fim de obterem,
ao final da carreira, uma pensão suplementar. Obviamente, sem compreender que
relação tem isto com os fundos americanos (ingenuidade ou idiotice) porque, na
realidade, 70% acabariam por ser convertidos em dólares nos EUA.
A
financeirização transforma as empresas em agentes financeiros. E afecta também
as empresas que produzem lucros reais, que despedem pessoal e cujos enormes
dividendos não são investidos, mas em grande parte distribuídos aos accionistas
ou utilizados para comprar as suas próprias acções para aumentar o seu valor e
aumentar a sua capitalização (que não tem, de agora em diante, qualquer relação
com o que realmente produzem e vendem). Tudo isto vai a par e passo com a
financeirização dos preços: não é o mercado (a relação entre a oferta e a
procura de bens) que fixa os preços, mas as apostas dos operadores (através de
derivados) que não têm qualquer relação com a produção nem com o comércio real.
Os preços são definidos por empresas financeirizadas que controlam os sectores
energético, alimentar, das matérias-primas, farmacêutico, etc., a partir de uma
posição de monopólio ou oligopólio absoluto (os principais accionistas destas
empresas são sempre os grandes fundos de investimento). A inflação que disparou
recentemente é o resultado da especulação dos preços e não depende de modo
algum do aumento dos salários ou das despesas sociais. A combinação destas
financeirizações que investem a “vida” (mesmo que o termo seja ambíguo) faz
explodir as diferenças de rendimento e, sobretudo, de património de que são
vítimas os trabalhadores e toda a população que não tem meios para comprar os
títulos.
A
falência da governance neoliberal e a guerra
A afirmação do monopólio que confirma o fim do
neoliberalismo e da ideologia do mercado merece, portanto, algumas observações.
Falamos de ideologia no que se refere à concorrência, porque o processo de
verticalização da economia continua imperturbável, pelo menos desde o final do
século XIX. Na verdade, explodiu durante o neoliberalismo, como já discutimos.
Os fundos, como já foi dito, são hoje
funcionais na centralidade do poder americano, mais do que qualquer outra
instituição. E os fundos precisam das políticas fiscais do governo (não
tributando as finanças e o trabalho), das regulamentações e das concessões,
generosamente ampliadas por Obama (um presidente negro, mas em perfeita
continuidade com o presidente branco que o precedeu e com o que o seguiu) e,
ainda mais decisivamente, por Biden. Surge aqui um problema teórico e político:
a finança, que deveria representar a modalidade mais abstracta do valor e a
forma cosmopolita perfeitamente realizada do capitalismo, é, no Ocidente,
comandada e gerida por dispositivos que ostentam a bandeira às riscas. Os
fundos americanos actuam em concertação com as administrações americanas,
defendendo os seus interesses em detrimento do mundo inteiro. A moeda
encontra-se na mesma situação. Não existe uma moeda supranacional, a moeda é
sempre nacional, porque está estreitamente ligada, nomeadamente o dólar, às
políticas ditadas pelo Estado que a emite. Pode afirmar-se que a moeda e a
finança representam a tendência para sair dos limites territoriais dos Estados
e a impossibilidade de o fazer. A relação entre os EUA e os fundos de
investimento organiza uma acção global favorável a uns poucos americanos e às
suas oligarquias.
A
segunda observação diz respeito à leitura do neoliberalismo, que ainda é
considerado como operante, quando, na realidade, está morto: morto pelo
fascismo, pelas guerras e pelos genocídios. O mesmo fim coube ao seu ilustre
antecessor, o liberalismo, que deveria ter evitado os pequenos inconvenientes
que causou (as duas guerras mundiais e o nazismo) e que, pelo contrário, acabou
necessariamente por reproduzi-los. Muita desta análise deve-se à teoria da
biopolítica de Michel Foucault, que exerceu uma influência funesta sobre o
pensamento crítico. Foucault lê o neoliberalismo como uma teoria da empresa e a
sua subjectivização como um devir “empreendedor de si mesmo”. Nunca menciona,
nem mesmo en passant, o crédito, a moeda e a finança sobre os quais a estratégia
capitalista tem sido construída desde o final dos anos 1960. O principal
instrumento da contra-revolução é o “grande endividamento do Estado, das
famílias, das empresas”, como diria Paul Sweezy, e não a produção. A empresa é uma ideologia e uma ideia ordoliberal
que pertence ao Ocidente industrial, aos anos 30 e ao pós-guerra: um mundo
definitivamente morto. O ordo-liberalismo vê a economia como a causa da morte
do “soberano” quando a finança realiza um enorme monopólio (o soberano
económico). Mas, no contexto do capitalismo, o soberano económico precisa, para
se constituir, do “soberano” político (o Estado). A cabeça do soberano não foi
cortada pela economia, mas desdobrada, convertendo a centralização do poder do
capital e do Estado numa estratégia que teve um enorme sucesso.
Foucault,
simplesmente, confundiu uma época, tal como os seus alunos que reproduziram os
erros do mestre, por exemplo Dardot e Laval, sobretudo. O mercado nunca
funcionou como Foucault e os ordoliberais acreditavam, nomeadamente com base na
concorrência. Pelo contrário, a sua verdade é representada pelo funcionamento
da finança, que estabelece os preços a partir de um monopólio especulativo que
nada tem a ver com a procura e a oferta de bens reais (recentemente, o preço da
energia aumentou dez vezes, mas sem qualquer relação com a sua disponibilidade
real, e o mesmo se aplica aos cereais, etc.). A subjectivação não é
representada pelo empreendedor, mas pela transformação ilusória dos indivíduos
(não de todos, como já dissemos) em agentes financeiros. Para a finança, a
“população” e o mundo são constituídos por credores, devedores e investidores
em acções, títulos e obrigações. A financeirização da classe média, prosseguida
através do acordo entre os democratas e os fundos, é a última quimera destinada
a desaparecer no próximo crash.
A
guerra inevitável dos EUA
Hoje,
o processo que nem sequer foi vislumbrado pela biopolítica atingiu o seu ápice.
O crescimento, no Ocidente, é apenas financeiro (ao passo que é real no Sul
global). A sua produção (dinheiro que produz dinheiro assim como a “pereira que
produz peras” , dizia Marx) é uma ficção, uma fabricação de papel velho, que,
no entanto, tem efeitos reais. Os fundos fazem subir os preços das acções das
empresas das quais eles próprios são detentores, a fim de recolher dividendos a
distribuir entre os subscritores. Não se trata de nova riqueza, mas apenas da
apropriação, captura e roubo de um valor que já existe e que é apenas
transferido do resto do mundo para os EUA — de um ponto de vista de classe,
poder-se-ia dizer do trabalho para o capital especulativo. Se este “roubo” da
riqueza produzida no resto do mundo se detiver, todo o sistema entra em
colapso.
O
verdadeiro nome deste processo é renda. O seu circuito é garantido e assegurado
pela dolarização, e é por isto que os Estados Unidos nunca poderão aceitar um
mundo multipolar. São forçados ao unilateralismo, são forçados a roubar os seus
aliados porque o Sul Global já não quer funcionar como colónia (papel
completamente assumido pela Europa, Japão e Austrália). As oligarquias que
governam o Ocidente são o fruto da financeirização e funcionam exactamente como
a aristocracia do “ancien régime”. Hoje, portanto, é necessária uma nova
noite de 4 de Agosto de 1789, em que foram abolidos os os privilégios da
aristocracia feudal.
Os
Estados Unidos estão num beco sem saída: estão obrigados a aumentar as taxas de
juro para atrair capitais de todo o mundo, pois de outro modo o sistema
financeiro entra em colapso, mas a própria subida das taxas estrangula a
economia americana. Quando as baixam, como agora, por razões eleitorais
(durante a campanha eleitoral, aliás, os democratas foram acusados de sufocar a
economia), só beneficiam os especuladores (in primis, os fundos) que apostam na
sua subida. Tal como a grande liquidez colocada à disposição da economia pelos
bancos centrais nunca alcança a produção real, porque fica limitada ao sector
financeiro, também esta descida das taxas não terá qualquer influência na
economia real, mas apenas activará a especulação. Os EUA são incapazes de sair
do círculo vicioso das rendas pelo que a guerra é a única solução desde 2008,
altura em que se tornou claro que a economia dos EUA se baseava na produção e
distribuição de rendas financeiras. Daí a vontade de prosseguir e alargar a
guerra, de continuar a financiar e a legitimar o genocídio, de levar a que os
novos fascismos ascendam ao poder em todo o lado. Este parece ser o futuro
próximo, como o confirma um documento de Julho deste ano (Commission on the
National Defense Strategy) do Congresso americano onde se afirma com toda a
clareza que os EUA devem preparar-se para a “grande guerra” contra o Sul
global, no centro do qual estão a Rússia e a China. Nos próximos anos, todos os
sectores da sociedade terão de ser mobilizados, à semelhança do que foi feito
antes e durante a Segunda Guerra Mundial, a fim de extirpar a ameaça à sua
existência, que nunca foi tão grave desde 1945.
O
primeiro objectivo é, porém, o de transformar uma indústria (que já não existe)
numa indústria de guerra: “a Comissão considera que a base industrial de defesa
dos EUA (DIB) não é capaz de satisfazer as exigências de equipamento,
tecnologia e munições dos Estados Unidos e dos seus aliados e parceiros. Um
conflito prolongado, em múltiplos cenários, exigiria uma capacidade muito maior
de produzir, manter e fornecer armas e munições. Para fazer frente a esta
carência serão necessários maiores investimentos, capacidades adicionais de
produção e desenvolvimento conjunto, em cooperação com os aliados, e uma maior flexibilidade
nos sistemas de aquisição. É necessária a colaboração com uma base industrial
que não compreenda apenas os grandes fabricantes tradicionais de defesa, mas
também os novos operadores e uma ampla gama de empresas envolvidas na produção
de componentes, na cibersegurança e nos serviços de apoio”.
O
Estado e as administrações devem ser coordenados no sentido daquilo a que o
documento chama “dissuasão integrada”. Uma atenção particular deve ser dedicada
à força laboral, com vista a requalificá-la em função da economia de guerra,
depois de ter sido desmantelada pela financeirização e pelo consequente
desmantelamento da industrialização. Os vários departamentos da administração
devem coordenar-se em função da guerra: “incluindo o Departamento de Estado e a
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), os
departamentos económicos (incluindo o Tesouro, o Comércio e a Small Business
Administration) e os que apoiam o desenvolvimento de uma parte importante
da força laboral americana mais forte e melhor preparada, como o Departamento
do Trabalho e da Educação. Tal como aconteceu durante a Guerra Fria, estes
departamentos e agências devem assumir um foco estratégico sobre a
concorrência, agora, em particular, sobre a China”.
Em
linha com os preceitos do rentismo e da oligarquia, os grandes investimentos
necessários devem ser privados, de modo a inundar os monopólios com biliões de
dólares. Fala-se claramente num “apelo às armas” bipartidário, de democratas e
republicanos, que devem educar uma opinião pública inconsciente do perigo
mortal que enfrenta e prepará-la para suportar os custos de uma guerra mundial
(cita-se a enorme percentagem do PIB investida em armamento na Guerra Fria). “A
opinião pública dos EUA ignora em grande medida os perigos que os Estados
Unidos enfrentam e os custos (financeiros e outros) necessários para se
prepararem adequadamente. Não se dão conta da força da China e das suas
parcerias, nem das ramificações que a erupção do conflito teria na sua vida quotidiana.
Não prevêem interrupções no fornecimento de eletricidade, água ou acesso a
todos os bens de que dependem. Não interiorizaram os custos da perda de posição
de superpotência mundial, da parte dos EUA. É urgentemente um “apelo às armas”
bipartidário para que os EUA possam efectuar as mudanças e os investimentos
mais significativos, em vez de ficarem à espera do próximo Pearl Harbor ou do
próximo 11 de Setembro. O apoio e a determinação da opinião pública americana
são indispensáveis”.
Ernst
Jünger teria dito que se estão a preparar para a “mobilização total”. Têm, no
entanto, um pequeno problema, porque a economia e a riqueza que impuseram são
para poucos, enquanto os muitos têm sido empobrecidos, marginalizados,
precarizados e culpados pela sua condição. Agora, parecem dar-se conta de que
precisam dos muitos, de que é necessária uma força laboral “forte e preparada”
para defender a nação e o espírito nacional... a economia e a propriedade dos
muito poucos. Com um país mais dividido do que nunca, resta-nos desejar boa
sorte às oligarquias que promovem a mobilização total para a guerra que querem
travar contra três quartos da humanidade, e que certamente perderão, como estão
a perder no Médio Oriente e na Europa de Leste. É apenas uma questão de tempo.
•
Maurizio
Lazzarato
Maurizio
Lazzarato é um sociólogo e filósofo italiano residente em Paris, onde
desenvolve pesquisas sobre a ontologia do trabalho, biopolítica, trabalho
imaterial e capitalismo cognitivo.
Nota
da edição
O
texto de Maurizio Lazzarato foi publicado em italiano na Derive Approdi, e em
inglês no Ill Will.
A
tradução é de Paulo Ávila.
Imagem
Miríades
de luzes na fábrica de Long Beach, Califórnia, da Douglas Aircraft Company
formam padrões estelares agradáveis nas janelas de plexiglas à prova de
estilhaços dos narizes dos bombardeiros de ataque A-20. Wikimedia.
Ficha
técnica
«Porquê a Guerra?» • Maurizio
Lazzarato
Data de publicação • 03.11.2024
Edição #43 • Outono 2024