Quase
tudo foi já dito sobre os recentes acontecimentos no Bairro do Zambujal. Um
homem morreu às mãos de um polícia de giro, o que não é uma novidade neste
local, para estas famílias, para estas pessoas. Para mim, nada foi novidade no
dia em que, zangadas com a impunidade e a leviandade com que se tira a vida a
um homem por motivos estruturalmente conhecidos e, contudo, não suficientemente
debatidos, algumas pessoas decidiram queimar um autocarro e alguns caixotes do
lixo.
Já
tudo se disse e, no entanto, ainda ninguém descreveu algo que ocorreu naquela
tarde e que, não sendo para mim novidade, será refrescante como uma outra ponta
deste grande e confuso novelo de narrativas, causas e efeitos. Estava no Bairro
do Zambujal porque sou trabalhadora social, sou educadora e desde 2023 que
integro uma equipa de primeira linha de apoio a famílias que têm processos de
promoção e protecção a decorrer a favor dos seus filhos. Sempre trabalhei com
crianças, conheço-lhes o génio, aprendi com esmero a respeitar profundamente o
seu espaço de desenvolvimento e as suas capacidades. As conversas visionárias
que fui tendo com elas fizeram-me, enquanto pessoa e necessariamente enquanto
profissional. Estava no Bairro do Zambujal porque acompanho uma família que lá
mora e fui, como sou sempre, bem-recebida.
Vou
apressar-me na parte dos elogios às pessoas que, apesar das perseguições a que
se viram sempre sujeitas, continuam a receber qualquer um com a horizontalidade
e o respeito devidos, no sítio onde moram. Naquele dia as pessoas estavam
tristes, estavam também zangadas e íamos trocando olhares cúmplices porque
sabíamos todas que dificilmente se viria a fazer justiça, se viriam a
esclarecer cabalmente os factos sobre a morte de Odair Moniz, sobre a estrutura
social que subjuga, põe e dispõe, sobre a passagem inevitável do tempo e o
encrostar de feridas que vão ficando.
O
dia era de luto, mas alguma coisa muito viva aconteceu. Alguns jovens do bairro
não puderam engolir, pela enésima vez, aquela raiva, tão natural. Arrancaram
alguns sinais de trânsito, recolheram umas madeiras podres, umas garrafas
vazias e lixo que nunca é totalmente levado daquelas ruas, trouxeram uns
caixotes da reciclagem e fizeram uma barricada, como puderam. Dei-me conta de
que eles tinham um plano, porque foram tapando a cara, foram chamando os
amigos, foram atirando ao chão petardos, como um aviso.
A
maravilha deu-se, para mim, quando vi que um grupo de crianças pequenas se
aproximou do local, com um caixote enorme cheio de folhetos de publicidade.
Espalharam os papéis e desenharam neles, fizeram aviões e flores, atiraram-nos
ao ar e voltaram a apanhá-los. Depois levaram os desenhos, os aviões e flores,
aos magotes, para as barricadas, preenchendo os espaços vazios. Não paravam de
aparecer papéis e crianças que mais do que lágrimas, traziam gargalhadas.
Meninos e meninas da Terra do Nunca, preparados para o que desse e viesse.
Muitas
daquelas famílias têm histórias que nos paralisariam, de um cerco permanente e
disfarçado de ajuda, que as encurrala na impossibilidade, que lhes impinge uma
forma de socialização que nos falhou a todos e na qual teimamos em insistir.
Atiramos-lhes com objectivos, tabelas e acordos, com processos judiciais e
pilhas de papéis, timbres, assinaturas, requerimentos, audiências, equipas técnicas
que se sobrepõem e se contradizem. Ao contrário de um mapa, damos-lhes um
desmapa, um desnorte, um descaso e raramente um descanso.
Debruçou-se
sobre tudo isto Jacques Donzelot, na sua extensa análise sobre a construção do
social, a sua consequente mistificação e
a ideologia que exprime. Em A Polícia das Famílias, perguntou-se sobre a
formação dessa ideia de social e sobre as consequências que dela decorrem no
que concerne as relações entre o público e o privado, entre o
judiciário e o administrativo e tudo quanto é estabelecido pelos costumes: a
riqueza, a pobreza, a cidade e o campo, a medicina, a escola e a família.
Ao
contrário de outros problemas, que têm sido amplamente analisados, a
participação destas crianças neste momento de relevo para a vida naquele local
suscitou em mim uma enorme alegria. Trata-se, a meu ver, da hipótese de
contrariar e interromper uma certa ideia de normalidade - interromper um
padrão comportamental, socialmente consubstanciado e amplamente aceite de que
uma criança se educa para vir a cumprir determinado papel social, inserida na
sua classe (obviamente perpetuando este lugar de classe), determinado papel de
género, boas maneiras, no fundo, para se tornar uma peça funcional a ser
integrada (ou desintegrada) da grande engrenagem que nos contém, ou que nos
atira para a margem, só para poder continuar a funcionar como tem funcionado.
Nas
mais duras batalhas laborais, nos momentos de maior fragilidade pessoal, as
crianças sempre me estenderam o braço e disseram: vamos contigo! ou anda
connosco! – conforme melhor se aplicasse. Aportam, não raras vezes, a
audácia de virar a realidade do avesso e imaginar outro modo, outra forma,
outro mundo, outra maneira de o fazer.
Do
fogo que se ateou naquela tarde, dos vidros do autocarro fragmentados pelas
explosões, da grande nuvem de fumo, também se ergueram as cinzas dos desenhos a
lápis de cor, as proas dos barcos de papel, as asas daqueles aviões, feitos por
cima dos folhetos que anunciavam os grandes descontos de fim-de-semana na maior
das superfícies comerciais de retalho, que ali, naquele bairro, nem existe.
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Maria Lis
Maria Lis vive em Lisboa onde brinca, troca às voltas ao
tempo, escreve e desenha. Licenciada em Educação Social com Mestrado em
Filosofia Política, é trabalhadora social e autora de Turbulenta Forma
(Língua Morta, 2023) e Enclave (Língua Morta, 2024)..
Ficha Técnica
«Um fogo a lápis» • Maris Lis
Data de publicação: 27.11.2024
Edição #42 • Outono 2024 •