Palestina: terra devastada • Pedro Levi Bismarck




1. O Estado de Israel funda-se, em 1948, enquanto gesto violento de ocupação de um território com o assassínio e expulsão dos seus habitantes palestinianos. Este evento tem um nome: a Nakba [Catástrofe].

2. O Estado de Israel nunca se constituiu como um Estado laico multiétnico: este é a unidade indesdobrável da máquina biopolítica e tanatopolítica da figura do Estado Moderno, da ordem legitimadora e agregadora de uma Religião e do destino histórico de um Povo.

3. O Estado de Israel é um Estado Colonial: assenta, desde logo, na colonização intensiva e progressiva de todo um território e, consequentemente, num racismo de Estado que incorpora a figura do palestiniano como inimigo único e total, precisamente na medida em que o sub-humaniza. O paradoxo constitutivo do Estado de Israel é precisamente esse: «Toda a política israelita revolve em torno da afirmação e da negação dessa figura, dessa mesma entidade [o palestiniano] que só pode existir não existindo, mas de cuja existência depende a própria identidade lógica do Estado de Israel, enquanto máquina de guerra infinita e perpétua». [Pedro Levi Bismarck, O Estado Colonial]

4. É, portanto, como máquina de guerra que o Estado de Israel encontra um dos seus últimos elementos constituintes: ele nasce da guerra e faz da guerra o seu modus vivendi permanente. Para este, tudo está em vias de se constituir como objecto e alvo militar. É por isso que se pode falar de uma Guerra Civil: primeiro, porque esta é uma guerra que acontece no interior de um Estado-Nação — porque Israel coloniza efectivamente o território dos palestinianos e administra tecnicamente mesmo aqueles territórios que se mantêm no limiar do seu exterior —, mas também porque esta é uma guerra que se instala no domínio do civil: ela visa e generaliza-se a todos os aspectos da vida dos palestinianos. Trata-se de uma guerra militar, social, económica, biológica, tecnologicamente sofisticada e altamente cruel na sua permanência e na sua omnipresença, na sua estratégia dissimuladora e invasiva: as colheitas palestinianas que são envenenadas e destruídas com herbicidas, as crianças palestinianas que são assassinadas indiscriminadamente, a construção ilegal dos colonatos na Cisjordânia, os processos sumários de despejo dos palestinianos em Jerusalém, já para não falar em todo o tipo de restrições à liberdade de movimentos e em todo o tipo de estratégias de segregação que fazem de Israel um apartheid colonial. É uma guerra total e sem tréguas que tem como objecto a gestão da vida na sua dimensão biopolítica, sonegando e minando as condições de vida dos palestinianos. Este é o ponto inescapável: não há nesta guerra nenhuma distinção possível entre o militar e o civil, foi sempre a população palestiniana, a gestão do seu corpo colectivo e da sua vida individual, que se constituiu como objecto militar da máquina de guerra do Estado israelita.

5. Ora, por mais cruéis que os ataques do Hamas possam ser, e são-no de facto, eles não fazem mais nada do que continuar a lógica de guerra israelita: a guerra civil, a guerra contra civis, a guerra contra os palestinianos como cidadãos sem direitos e como povo sem existência ou em sub-existência. É condenável o ataque do Hamas, como são condenáveis todas as formas de violência que Israel tem exercido incessantemente. O cinismo ocidental está precisamente aí: condenar o Hamas por fazer aquilo que Israel não cessa de fazer. Ora, isto não significa legitimar a acção do Hamas, significa situá-la no contexto de uma guerra que fez da vida civil uma vida nua — para tomar de empréstimo o conceito cunhado por Giorgio Agamben —, uma vida sem direitos reduzida ao limiar da subsistência e que está sempre perante a possibilidade de ser tomada enquanto objecto da violência militar, vida exposta à morte. Um Estado que lança herbicida sobre as colheitas de um outro «território», um Estado que mata sumariamente, ao arrepio de qualquer legalidade, crianças, mulheres, jornalistas, é um Estado que mobiliza tácticas de terror, é um Estado terrorista. Terrorismo de Estado não deixa de ser terrorismo. E é isso que a «comunidade internacional» prefere não ver, tem pudor em aceitar.

6. Neste sentido, aquilo que é exasperante no acompanhamento por parte dos media deste conflito é toda uma leitura enviesada da História e da realidade: é esse jogo de linguagem subtil e permanente que estabelece uma diferença ética e um grau de valor entre uns e os outros: os «ataques» do Hamas são «cruéis», «brutais», «carnificina», enquanto sobre as «acções militares de Israel» cai o poder de sublimação do eufemismo e são apenas caracterizadas como «injustificadas» e «problemáticas». As cerca de 50 crianças palestinianas assassinadas desde 1 de Janeiro até 7 de Outubro deste ano de 2023 não mereceram a indignação generalizada dos media. De acordo com as Nações Unidas, são 6407 os palestinianos mortos desde 2008 até ao final de Setembro (308 é o número de israelitas).

7. E aqui impõe-se uma outra reflexão: os media transformaram-se, eles próprios, em instrumentos de guerra e assumiram — com a morte do jornalismo — a função de autoridade moral e policial da sociedade, definindo todos os limites a partir dos quais um problema é efectivamente apresentado como passível de ser discutido. Não se trata apenas de «construir opinião pública» ou de construir uma narrativa onde se joga o círc(ul)o da legitimidade política, mas porque ao fazê-lo são as próprias condições de possibilidade dos valores que os media reclamam como seus — a liberdade de expressão e a democracia — que são postos definitivamente em causa. Não há democracia sem a possibilidade de constituir com a informação e o conhecimento uma relação crítica. O pathos emocional trágico-thriller do noticiário é a negação do jornalismo, que qualquer jornalista digno deste nome se deveria recusar a fazer, é a negação da própria democracia como possibilidade de instauração de um regime de racionalidade mínimo sobre o mundo das coisas. Os media, enquanto complexo político-ideológico-mediático, são o não-lugar onde se consuma o êxtase e a morte da política ocidental europeia.

8. Mas o cinismo ideológico não está apenas na ignorância da história ou na forma como a política ocidental transforma sublimemente os seus objectivos económicos estratégicos e militares em valores ou imperativos morais, ele está igualmente na mobilização desta tragédia para tentar encurralar a própria esquerda. É a esta que se apontam todos os danos morais, todas as contradições políticas, todas as falhas éticas, apenas porque afirma o óbvio: é primeiro que tudo a violência do Estado de Israel o aprisionamento sumário de dois milhões de habitantes num «campo de concentração» onde os direitos de existência humana básicos são negados — que gera e mobiliza todas as outras formas de violência, sobretudo quando, como bem refere Tariq Ali, todas as formas de resistência não-violentas que foram tentadas nos últimos anos — e décadas —  não receberam qualquer atenção por parte das instituições políticas ocidentais. Onde estava a direita e a sua autoridade moral no dia 6 de Outubro? Enfim, qualquer discussão sobre Israel e sobre a Palestina tem de partir deste ponto: Israel é uma potência colonial e a Palestina é um território ocupado e é sobre este que Israel administra uma guerra civil permanente.

9. A ambiguidade moral não está à esquerda, mas sim à direita: é esta última que escolhe selectivamente onde estão as formas de violência e de injustiça que a chocam. Para a direita, a violência do Estado de Israel é apenas a luta pela sua sobrevivência legitimada pelo seu destino e pelo seu Capital — aqui no duplo sentido da palavra. Para a esquerda, a violência do Estado de Israel não justifica, não pode justificar, o assassínio e a limpeza étnica de todo um outro povo que não por acaso é, ele próprio, também semita.

10. Mas numa altura em que se fala tanto de descolonização, em que se discute a responsabilidade histórica das potências imperiais, é ainda mais vergonhoso o grau de alienação do Ocidente relativamente às suas próprias responsabilidades históricas em todo este processo. Escrevia Gideon Levy, no diário israelita Haaretz, não há muito tempo: «Um império [britânico] prometeu uma terra que ainda não tinha conquistado a um povo que não vivia lá, sem nada perguntar aos seus habitantes. Não há outra forma de descrever a inacreditável temeridade colonialista que clama de cada letra da Declaração Balfour». Quem esteve no Médio Oriente sabe que há um ódio ao Ocidente e que este tem raízes históricas bem justificadas. É todo um ódio a um passado — e a um presente — colonial que faz da Palestina não apenas a terra devastada do Estado israelita, mas de todo o imperialismo ocidental.

Aquilo que as declarações de grande parte dos líderes europeus, após o dia 7 de Outubro — particularmente de Ursula von der Leyen — exprimem com perturbável clareza não é apenas marasmo diplomático ou cinismo político, nem mesmo ignorância histórica, mas a substância de uma política que é, e continuará a ser, enquanto política externa do Capital, essencialmente colonial, racial e militar, sempre vestida, no entanto, com as roupas do Humanismo e da Humanidade. Nakba!



 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Imagens do documentário de Scenes of the Occupation from Gaza (1973) de Mustafa Abu Ali. O Palestine Film Institut disponibilizou no seu site entretanto uma série de documentários e filmes sobre Gaza.

 

Ficha técnica

«Palestina: terra devastada» • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 18.10.2023

Edição #40 • Outono 2023