2. O
Estado de Israel nunca se constituiu como um Estado laico multiétnico: este é a
unidade indesdobrável da máquina biopolítica e tanatopolítica da figura
do Estado Moderno, da ordem legitimadora e agregadora de uma Religião e do
destino histórico de um Povo.
3. O
Estado de Israel é um Estado Colonial: assenta, desde logo, na colonização
intensiva e progressiva de todo um território e, consequentemente, num racismo
de Estado que incorpora a figura do palestiniano como inimigo único e total,
precisamente na medida em que o sub-humaniza. O paradoxo constitutivo do
Estado de Israel é precisamente esse: «Toda a política
israelita revolve em torno da afirmação e da negação dessa figura, dessa mesma
entidade [o palestiniano] que só pode existir não existindo, mas de cuja
existência depende a própria identidade lógica do Estado de Israel,
enquanto máquina de guerra infinita e perpétua». [Pedro Levi Bismarck, O Estado
Colonial]
4. É,
portanto, como máquina de guerra que o Estado de Israel encontra um dos seus
últimos elementos constituintes: ele nasce da guerra e faz da guerra o seu modus
vivendi permanente. Para este, tudo está em vias de se constituir como objecto
e alvo militar. É por isso que se pode falar de uma Guerra Civil: primeiro,
porque esta é uma guerra que acontece no interior de um Estado-Nação — porque Israel
coloniza efectivamente o território dos palestinianos e administra tecnicamente
mesmo aqueles territórios que se mantêm no limiar do seu exterior —, mas também
porque esta é uma guerra que se instala no domínio do civil: ela visa
e generaliza-se a todos os aspectos da vida dos palestinianos. Trata-se de
uma guerra militar, social, económica, biológica, tecnologicamente sofisticada
e altamente cruel na sua permanência e na sua omnipresença, na sua estratégia
dissimuladora e invasiva: as colheitas palestinianas que são envenenadas e destruídas
com herbicidas, as crianças palestinianas que são assassinadas
indiscriminadamente, a construção ilegal dos colonatos na Cisjordânia, os
processos sumários de despejo dos palestinianos em Jerusalém, já para não falar
em todo o tipo de restrições à liberdade de movimentos e em todo o tipo de
estratégias de segregação que fazem de Israel um apartheid colonial. É uma
guerra total e sem tréguas que tem como objecto a gestão da vida na sua
dimensão biopolítica, sonegando e minando as condições de vida dos
palestinianos. Este é o ponto inescapável: não há nesta guerra nenhuma distinção
possível entre o militar e o civil, foi sempre a população
palestiniana, a gestão do seu corpo colectivo e da sua vida individual, que se
constituiu como objecto militar da máquina de guerra do Estado israelita.
5. Ora,
por mais cruéis que os ataques do Hamas possam ser, e são-no de facto, eles não
fazem mais nada do que continuar a lógica de guerra israelita: a guerra civil,
a guerra contra civis, a guerra contra os palestinianos como cidadãos
sem direitos e como povo sem existência ou em sub-existência. É condenável
o ataque do Hamas, como são condenáveis todas as formas de violência que Israel
tem exercido incessantemente. O cinismo ocidental está precisamente aí: condenar
o Hamas por fazer aquilo que Israel não cessa de fazer. Ora, isto não
significa legitimar a acção do Hamas, significa situá-la no contexto de uma
guerra que fez da vida civil uma vida nua — para tomar de
empréstimo o conceito cunhado por Giorgio Agamben —, uma vida sem direitos reduzida
ao limiar da subsistência e que está sempre perante a possibilidade de ser
tomada enquanto objecto da violência militar, vida exposta à morte. Um
Estado que lança herbicida sobre as colheitas de um outro «território», um
Estado que mata sumariamente, ao arrepio de qualquer legalidade, crianças,
mulheres, jornalistas, é um Estado que mobiliza tácticas de terror, é um Estado
terrorista. Terrorismo de Estado não deixa de ser terrorismo. E é isso que a «comunidade
internacional» prefere não ver, tem pudor em aceitar.
6. Neste
sentido, aquilo que é exasperante no acompanhamento por parte dos media deste
conflito é toda uma leitura enviesada da História e da realidade: é esse jogo
de linguagem subtil e permanente que estabelece uma diferença ética e um grau
de valor entre uns e os outros: os «ataques» do Hamas são «cruéis», «brutais», «carnificina»,
enquanto sobre as «acções militares de Israel» cai o poder de sublimação do
eufemismo e são apenas caracterizadas como «injustificadas» e «problemáticas». As
cerca de 50 crianças palestinianas assassinadas desde 1 de Janeiro até 7 de
Outubro deste ano de 2023 não mereceram a indignação generalizada dos media.
De acordo com as Nações Unidas, são 6407 os palestinianos mortos desde 2008 até
ao final de Setembro (308 é o número de israelitas).
7. E
aqui impõe-se uma outra reflexão: os media transformaram-se, eles
próprios, em instrumentos de guerra e assumiram — com a morte do jornalismo — a
função de autoridade moral e policial da sociedade, definindo todos os limites
a partir dos quais um problema é efectivamente apresentado como passível de ser
discutido. Não se trata apenas de «construir opinião pública» ou de construir
uma narrativa onde se joga o círc(ul)o da legitimidade política, mas porque ao
fazê-lo são as próprias condições de possibilidade dos valores que os media
reclamam como seus — a liberdade de expressão e a democracia — que são postos definitivamente
em causa. Não há democracia sem a possibilidade de constituir com a informação
e o conhecimento uma relação crítica. O pathos emocional trágico-thriller
do noticiário é a negação do jornalismo, que qualquer jornalista digno deste
nome se deveria recusar a fazer, é a negação da própria democracia como
possibilidade de instauração de um regime de racionalidade mínimo sobre o mundo
das coisas. Os media, enquanto complexo político-ideológico-mediático, são
o não-lugar onde se consuma o êxtase e a morte da política ocidental europeia.
8. Mas
o cinismo ideológico não está apenas na ignorância da história ou na forma como
a política ocidental transforma sublimemente os seus objectivos económicos
estratégicos e militares em valores ou imperativos morais, ele está igualmente
na mobilização desta tragédia para tentar encurralar a própria esquerda. É a
esta que se apontam todos os danos morais, todas as contradições políticas, todas
as falhas éticas, apenas porque afirma o óbvio: é primeiro que tudo a
violência do Estado de Israel — o aprisionamento sumário de dois
milhões de habitantes num «campo de concentração» onde os direitos de
existência humana básicos são negados — que gera e mobiliza todas as outras
formas de violência, sobretudo quando, como bem refere Tariq
Ali,
todas as formas de resistência não-violentas que foram tentadas nos últimos
anos — e décadas — não receberam
qualquer atenção por parte das instituições políticas ocidentais. Onde estava a
direita e a sua autoridade moral no dia 6 de Outubro? Enfim, qualquer discussão
sobre Israel e sobre a Palestina tem de partir deste ponto: Israel é uma
potência colonial e a Palestina é um território ocupado e é sobre este que Israel
administra uma guerra civil permanente.
9. A
ambiguidade moral não está à esquerda, mas sim à direita: é esta última que
escolhe selectivamente onde estão as formas de violência e de injustiça
que a chocam. Para a direita, a violência do Estado de Israel é apenas a luta
pela sua sobrevivência legitimada pelo seu destino e pelo seu Capital —
aqui no duplo sentido da palavra. Para a esquerda, a violência do Estado de
Israel não justifica, não pode justificar, o assassínio e a limpeza étnica de
todo um outro povo que não por acaso é, ele próprio, também semita.
10. Mas
numa altura em que se fala tanto de descolonização, em que se discute a
responsabilidade histórica das potências imperiais, é ainda mais vergonhoso o
grau de alienação do Ocidente relativamente às suas próprias responsabilidades históricas
em todo este processo. Escrevia Gideon
Levy,
no diário israelita Haaretz, não há muito tempo: «Um império
[britânico] prometeu uma terra que ainda não tinha conquistado a um povo que
não vivia lá, sem nada perguntar aos seus habitantes. Não há outra forma de
descrever a inacreditável temeridade colonialista que clama de cada letra da
Declaração Balfour». Quem esteve no Médio Oriente sabe que há um ódio ao Ocidente
e que este tem raízes históricas bem justificadas. É todo um ódio a um passado —
e a um presente — colonial que faz da Palestina não apenas a terra devastada
do Estado israelita, mas de todo o imperialismo ocidental.
Aquilo que as declarações de grande parte dos líderes europeus, após o dia 7 de Outubro — particularmente de Ursula von der Leyen — exprimem com perturbável clareza não é apenas marasmo diplomático ou cinismo político, nem mesmo ignorância histórica, mas a substância de uma política que é, e continuará a ser, enquanto política externa do Capital, essencialmente colonial, racial e militar, sempre vestida, no entanto, com as roupas do Humanismo e da Humanidade. Nakba!
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Imagem
Imagens
do documentário de Scenes of the Occupation from Gaza (1973) de Mustafa
Abu Ali. O Palestine Film
Institut
disponibilizou no seu site entretanto uma série de documentários e filmes sobre
Gaza.
Ficha
técnica
«Palestina:
terra devastada» • Pedro Levi Bismarck
Data de
publicação • 18.10.2023
Edição #40 • Outono 2023