A Ruptura do confinamento de Gaza, o Cadáver Israelita e a Esquerda perante a Palestina • Daniel Lobato Bellido




As imagens do dia 7 de Outubro de 2023, com os nativos palestinianos a derrubarem a cerca do gueto de Gaza onde estão confinados à força há 75 anos — após terem sido desapossados de tudo — terão um efeito histórico na aceleração do colapso do regime colonial, que já era inevitável. Entretanto, nos últimos meses, têm surgido alguns novos termos no discurso estagnado que a esquerda vinha utilizando há décadas sobre a Palestina. Resta ainda saber qual será o efeito do histórico Prison Break do mega-campo de confinamento de Gaza nesse discurso, mas os primeiros sintomas são de confusão na esquerda institucional. Têm os palestinianos direito a escapar ao seu confinamento? Apoiamos a causa palestiniana mas ao mesmo tempo classificamo-los como terroristas? Sofrem com o apartheid e o colonialismo, mas devíamos limitar-nos a conceder-lhes leite e açúcar através das nossas ONGs? Seria compreensível, mesmo que não desejável, que os nativos americanos atacassem e até sequestrassem as caravanas de colonos brancos que avançavam pelas suas pradarias do oeste americano? E o que dizer então dos nativos palestinianos que raptaram colonos israelitas quando estes dançavam numa rave techno nas terras dos que estão encarcerados no gueto de Gaza?

A esquerda europeia e latino-americana, salvo raras excepções, reproduziu a linguagem confusa imposta pelos opressores do povo palestiniano: o vocabulário contido nos Acordos de Oslo de há 30 anos. Acordos fraudulentos, como se explicará mais adiante. Este discurso fossilizado parecia estar a mudar nalguns sectores da esquerda, com a precipitação dos acontecimentos na Palestina. Uma parte da esquerda parecia estar a ser capaz de reconhecer o aceleramento do tempo histórico. Outra parte, não. Não associava os elementos: a intensificação da opressão desde 2021 e, especialmente, o resultado do confronto com Gaza em Maio deste ano, a multiplicação das acções da resistência armada palestiniana e o terror crescente no seio do regime face a um confronto total com o Líbano e com outras forças regionais. E, no entanto, tudo faz parte de um processo rumo a um horizonte. O derrube da jaula de Gaza no sábado de 7 de Outubro deixou uma boa parte da esquerda ainda mais deslocada e desarticulada na linguagem, facto que será analisado mais adiante neste artigo.

Tudo isto ocorre em simultâneo com a crise interna do aparelho israelita: convulsões e espasmos sob a forma de repetidas eleições antecipadas, grandes manifestações da facção da sociedade colonizadora que defende uma democracia supremacista contra aquela que defende a autocracia supremacista de Netanyahu, o autogolpe institucional, etc. Tudo isto já demonstrava o início da decomposição do regime israelita, arrastando consigo a elite do seu departamento indígena subcontratado, chamado Autoridade Palestiniana. Na realidade, estará a Palestina em contagem decrescente, tal como a Argélia colonizada das décadas de 40 ou 50, ou a África do Sul da década de 70? A uma geração de distância – ou menos – do fim da sua opressão?

 

O cadáver israelita que ainda caminha

O regime israelita aparenta manter um papel de protagonismo na Ásia Ocidental, assinando acordos com os regimes árabes circundantes, até ao último dia, continuará a contar com o apoio dos EUA e da UE, e possui um exército muito poderoso e, inclusive, dezenas de bombas nucleares. Poderia pensar-se que a actual crise institucional israelita não é diferente das de muitos países ocidentais. Cinco eleições em quatro anos, ou grandes manifestações contra um governo que propõe reformas institucionais, não deveriam ser um alarme quanto à solidez de um regime. É significativo que a disputa política entre as facções israelitas resida na preservação ou na supressão do verniz de democracia liberal do seu Estado, mas ambos os sectores partilham um consenso na continuação da limpeza étnica e do apartheid dos povos indígenas. O assassinato de crianças palestinianas – como reflectiu o autor Yossi Klein no jornal israelita Haaretz em Maio passado – produz uma geminação na sociedade dos colonos israelitas, e este pilar ideológico comum proporciona, teoricamente, maior robustez ao aparelho israelita. Democratas supremacistas versus autocratas supremacistas, com os nativos nos seus guetos correspondentes.

No entanto, há vários muros intransponíveis que cercam Israel, muros que o impedirão de se ser uma entidade colonial triunfante contra os nativos, do tipo que evolui para a “democracia liberal”, como a Austrália, o Canadá ou os Estados Unidos, após terem conseguido saquear todo o território aos seus donos indígenas. Este não será o seu destino e, por isso, o que observamos é uma sociedade colonial israelita consciente disso e que se revolta contra si mesma.

O projecto supremacista dos colonos na Palestina está destinado a ser um empreendimento falhado em menos de duas décadas, tal como foram a Argélia, Rodésia, Angola ou África do Sul. As bases desse triunfo palestiniano remontam à Nakba de 1948, quando a população palestiniana foi forçada a um êxodo massivo, sofrendo despossessão e limpeza étnica. No entanto, a grande maioria dos nativos, ainda que desapossados e deslocados, conseguiu permanecer no território palestiniano e lançar as bases para a actual vitória demográfica. Este é o primeiro e mais decisivo muro: o da demografia. Apesar das sucessivas vagas de imigração judaica ao longo de cem anos para a Palestina, rebaptizada como Israel nessas décadas, os povos nativos representam hoje 52% da população, frente aos 48% da sociedade colonizadora israelita. Somando a estes os nativos que possuem cidadania israelita de terceira classe, e os que sobrevivem sob ditaduras militares de diferentes graus em Jerusalém, nos guetos da Cisjordânia e em Gaza, esse número supera a totalidade dos colonos. Aceitando o melhor censo-ficção israelita, que continua a incluir centenas de milhares de colonos que já voltaram para o Ocidente, 7,6 milhões de palestinianos (38% com menos de 15 anos de idade) excedem os 7,1 milhões de judeus israelitas (28% com menos de 15 anos de idade). Até os demógrafos israelitas falam de um rácio inferior a 47%. Em menos de duas gerações, será atingida a proporção de dois terços para os palestinianos. Estes números demográficos nunca são mencionados nos meios de comunicação ocidentais, pois são um retrato que permite compreender instantaneamente o que está a acontecer e o que vai acontecer. Perante estes números, é óbvio que o regime entrará em colapso, a menos que leve a cabo um genocídio em massa ou uma limpeza étnica de milhões de palestinianos.

Para além da fuga de colonos, a fuga de capitais israelitas para os bancos ocidentais atingiu níveis recorde. É sabido que o dinheiro é o elemento mais cobarde. No futuro, será alcançado um ponto crítico de pânico, multiplicando ambas as fugas: a económica e a demográfica.

Há ainda outros muros que aprisionam o regime israelita. A sua superioridade militar não é suficiente para proteger as suas frágeis infra-estruturas vitais e a sua sociedade de colonos, que vive concentrada e vulnerável numa faixa limitada entre Acre e Jerusalém. Em 2021, Israel levou a cabo um ataque de grande escala contra Gaza e ao décimo dia teve de anunciar um cessar-fogo. Em 2022 e 2023, novos ataques foram reduzidos a escassos dias, apesar de famílias inteiras terem sido intencionalmente despedaçadas enquanto dormiam. Pelo contrário, há quase dez anos, em 2014, Israel não teve necessidade de suspender os seus bombardeamentos sobre Gaza durante dois meses de massacre e 2.300 pessoas assassinadas (500 crianças). A diferença dos últimos anos face a 2014 explica-se pelas maiores capacidades da resistência palestiniana. Em 2021, as defesas aéreas israelitas foram esgotadas em dez dias contra os rockets de Gaza, e os EUA tiveram de as reabastecer meses mais tarde. O espaço aéreo controlado por Israel foi encerrado e os portos, aeroportos e zonas industriais foram atingidos por rockets palestinianos. Por outro lado, desde 2014 que os tanques e os soldados israelitas não ousavam entrar em Gaza.

Agora, a contra-ofensiva da resistência palestiniana, rompendo o cerco de Gaza, mostrou, não apenas que os tanques israelitas já estavam a ser destruídos dentro do gueto, mas que os palestinianos os estão a destruir também do lado de fora, com mísseis e drones. Tudo mudou em relação a 2014. É claro que os palestinianos e os seus rockets não podem derrotar militarmente o exército israelita, mas podem provocar custos exorbitantes à sociedade colonizadora, que os próprios israelitas não estão dispostos a suportar, o que equivale de facto a uma derrota.

É por isso que Israel tem tentado manter a frente de Gaza adormecida, enquanto dirige o seu foco para o seu sonho de expulsar os quase quatro milhões de palestinianos de Jerusalém e da Cisjordânia. Esta tem sido a sua estratégia: elevar ao máximo a opressão na Cisjordânia e em Jerusalém e controlar a frente norte do Líbano. A tentativa de deixar eternamente congelado o campo de confinamento de Gaza falhou: os nativos confinados em Gaza derrubaram o tabuleiro, e aos deputados do partido de Netanyahu só lhes resta o clamor desesperado por outra Nakba impossível, outra limpeza étnica em massa impossível como em 1948.

No passado sábado [7 de Outubro], Netanyahu afirmou que Israel estava em guerra, embora tenha omitido que está em guerra há 75 anos contra os nativos palestinianos, e revelou os três pontos da sua retaliação: encerrar de novo no gueto os nativos armados que conseguiram humilhar Israel, arrasar Gaza como vingança, e advertir o Líbano para não se envolver. O segundo e o terceiro pontos são mais a expressão de um desejo do que da realidade, o que revela a sua fraqueza. Exigiu então que os palestinianos do gueto abandonassem Gaza se não quisessem morrer todos. Uma promessa de genocídio aceitável para a Europa e para os Estados Unidos, que também não será cumprida, mesmo perante a necessidade de aliviar a sua aterrorizada sociedade colonizadora.

Se Israel já não consegue lançar um confronto total com o campo de concentração de Gaza, menos ainda o pode fazer com o Líbano. Os túneis libaneses de centenas de quilómetros escondem um poder de fogo em rockets, mísseis, drones e anti-tanques milhares de vezes superior ao de Gaza. Estas ameaças a poucos quilómetros das urbes coloniais israelitas não se podem resolver com bombas atómicas. Um dos momentos mais reveladores desta incapacidade contra a frente norte ocorreu em Abril de 2023, quando foi alvo de vários rockets do Líbano em resposta à opressão em Jerusalém. Israel não se atreveu a culpar o Hezbollah e, ​​portanto, não se atreveu a iniciar um confronto de grande escala contra o Líbano devido ao preço a pagar pelos israelitas. Levou a cabo uma manobra de distracção, bombardeando de forma limitada o gueto de Gaza e não o Líbano.

Na próxima retaliação do regime contra Gaza, durante os próximos dias, na qual certamente serão assassinados centenas de palestinianos, o limite será ditado pelos mísseis e drones lançados desde o Líbano na direcção da sociedade colonizadora israelita. O impasse israelita é irresolúvel e não será possível apaziguar o terror dos israelitas. Cada rocket e cada míssil palestiniano com impacto significará um incremento no número de colonos que desejam fugir para outro país. Considerando ainda o lançamento de mísseis desde o Líbano, isto levará ao pânico entre os colonos. Uma escalada para uma via militar desenfreada só poderá conduzir a uma dor desconhecida para a sociedade colonizadora israelita, que nunca pagou o preço do sofrimento que os civis dos países da região pagaram pelas agressões israelitas. As estratégias militares falharam, assim como as estratégias para isolar e fragmentar os palestinianos. Em 2021, a opressão em Jerusalém provocou, não só a resistência armada de Gaza, mas uma resistência civil global em toda a Palestina em mobilizações e greves gerais, incluindo os dois milhões de palestinianos com a cidadania de terceira classe do regime.

 

O impasse israelita

Israel está num impasse militar e tem optado por estratégias de fio da navalha: massacres selectivos de líderes da resistência em Gaza e das suas famílias sem entrar numa guerra total (Agosto de 2022, Maio de 2023) e execuções incessantes de combatentes na Cisjordânia. Tudo calculado para não provocar demasiado a resistência armada palestiniana. Paralelamente, há a tentativa de impedir o reforço militar regional, através do bombardeamento do território sírio. A geopolítica também não é favorável a Israel, com o progressivo enfraquecimento dos EUA-UE na Ásia Ocidental e no resto do mundo, ao qual acresce o reposicionamento dos actores regionais. Apesar de serem cúmplices na opressão do povo palestiniano, os regimes árabes não são estúpidos. Embora os seus regimes estabeleçam relações oportunistas com Israel e lhe concedam oportunidades fotográficas nos enterrados e vazios Acordos de Abraão. Os regimes árabes não receberão os F35 e os mísseis dos EUA que esperavam com estes acordos, e o dispositivo colonial não conseguiu criar uma NATO árabe-israelita que funcionasse como escudo protector de Israel. Mais ainda, as oligarquias árabes historicamente subordinadas aos Estados Unidos e a Israel estão agora a reposicionar-se umas contra as outras a nível regional e global.

Aos gigantescos acordos económicos assinados com a China e a Rússia, junta-se a diplomacia destes dois países, que já concretizou o impensável reencontro entre a Arábia Saudita e o Irão. A Liga Árabe tem tido um papel infame nas últimas décadas, mas as declarações, as palavras e os termos podem mudar de um dia para o outro. Isto pôde ser reconhecido no comunicado do regime saudita sobre a operação palestiniana que rompeu o cerco de Gaza, em que culpa inequivocamente Israel pela sua política de opressão e colonização: “É o resultado da ocupação contínua e da privação do povo palestiniano dos seus direitos legítimos por Israel.” Nestas voltas e reviravoltas da história, as mesmas oligarquias árabes que têm sido inimigas do povo palestiniano e de outros povos da região serão as primeiras a apresentar-se em Jerusalém no futuro para felicitar os palestinianos no dia seguinte à queda do regime. Os EUA e o Reino Unido também o fizeram com Mandela, depois de o terem considerado terrorista até 2008 e apoiado o regime do apartheid sul-africano durante décadas.

 

O extremismo israelita é a natureza de um regime colonial

Finalmente, há que compreender que tudo isto não resultou de uma deriva de Israel rumo a um extremismo descarado, conduzida por Netanyahu ou por Ben Gvir. Toda a colonização de colonos contra nativos na sua terra é extremista e fascista, ainda que se disfarce de democracia, como os EUA do século XIX. A despossessão e expulsão pelas armas é fascismo. Que se revele a autêntica ideologia fascista de um regime colonial é a consequência, e não a causa, do seu fracasso. Este não é diferente do extremismo tardio dos colonos franceses na Argélia (OEA) ou da sociedade de colonos europeus brancos na África do Sul (Movimento de Resistência Afrikaner). A Argélia e a África do Sul padeceram de colonizações muito mais extensas do que a Palestina, e nos últimos anos de opressão, os seus povos indígenas sofreram uma violência acrescida por parte de grupos para-estatais, como a nova milícia de colonos extremistas do ministro Ben Gvir.

 

A encruzilhada da resistência palestiniana

A resistência palestiniana também se debateu com dilemas até à secreta e massiva operação militar de ruptura do cerco de Gaza. O maior deles é como minimizar o custo humano. Embora um povo determinado a descolonizar-se, como os palestinianos, os argelinos ou os vietnamitas, não calcule qual será a conta final do seu sofrimento nesta luta de décadas, é óbvio que tentam sempre minimizar esse preço. Não se deve cair no extremo de fetichizar a resistência do povo palestiniano nem, desde a nossa zona de conforto, pensar que os palestinianos são irresponsáveis ​​e loucos pelas vidas palestinianas que agora se vão perder.

Até agora, o objectivo foi forçar a sociedade colonial a tomar consciência da sua fragilidade e de induzi-la a pensar, a temer, que essa guerra total e o preço que terá de pagar se aproximam cada vez mais. Que isto aumente o pânico, para que prossiga a sua decomposição, multiplicando a fuga dos colonos e ao mesmo tempo tentando pagar o menor preço possível em sangue palestiniano. Dentro da tragédia e da raiva provocada pelos massacres israelitas, há também estratégia. A operação de ruptura da prisão de Gaza elevará a níveis nunca antes vistos a sensação de fragilidade e de terror entre os israelitas, embora implique um custo muito elevado.

 

A esquerda e a sua linguagem face à Palestina

Este cenário do declínio israelita e da histórica operação de resistência em Gaza coincide com o desmoronamento do cenário e da linguagem construída há 30 anos através dos fraudulentos Acordos de Oslo. No início dos anos 90, nos primeiros anos da efémera hegemonia global dos Estados Unidos, ocorreram três derrotas simultâneas das lutas de descolonização: os Acordos de Oslo para a Palestina, o incumprimento da autodeterminação do povo saharaui, e a solução negociada de não-descolonização da África do Sul, na medida em que nela são mantidas a forma estatal e as estruturas económicas e de propriedade herdadas do apartheid branco. A esquerda ocidental não analisou devidamente o caso palestiniano, mantendo um apoio aparente à descolonização do Sahara.

 

Os acordos de Oslo atrofiam o discurso da esquerda

O flagrante processo de colonialismo através do povoamento de colonos e a substituição demográfica forçada dos indígenas palestinianos foram transformados pelos Acordos de Oslo num falso acordo entre supostas partes iguais. Com isto, transformou-se também a linguagem internacionalmente empregue para definir a relação entre opressor e oprimido. Todo o vocabulário da esquerda utilizado na segunda metade do século XX, como invasão, libertação nacional, descolonização, luta, apartheid, despossessão, substituição demográfica forçada, limpeza étnica, resistência, combatentes, confinamento em guetos, tortura, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, direito de regresso e até direito internacional foram largamente abandonados. Estes conceitos foram substituídos por outros, como reconhecimento, ambas as partes, mesa de negociações, diálogos, acordos, processo de paz, dois Estados, governo palestiniano, compromisso, garantias de segurança para o colonizador, pedido de moderação ao colonizador e ao colonizado, coordenação, terrorismo, islamismo, anti-semitismo, direito de Israel a existir e a defender-se, ocupação que se refere apenas à Cisjordânia e a Gaza, foco exclusivo nos direitos humanos, omissão sistemática do direito ao regresso de milhões de palestinianos, etc.

Para impor a nova linguagem, os Acordos de Oslo contaram com a cumplicidade da elite política palestiniana, que tentava reerguer-se após ter sido destituída de toda a liderança durante a Primeira Intifada, exilando-se, a milhares de quilómetros, na Tunísia, entre outros factores. O partido signatário palestiniano tinha um histórico que aparentemente o legitimava para assinar esta traição aos direitos do povo palestiniano. Esta elite política palestiniana da OLP era apoiada, ou pressionada, pela oligarquia interna palestiniana, ansiosa por normalizar as transacções económicas e os negócios com os colonizadores israelitas. A conjunção de ambas as oligarquias palestinianas – a política, ausente do território, e a económica, presente – assegurou o consentimento gramsciano dos povos subjugados. Ghassan Kanafani determinou que a oligarquia indígena reaccionária era um dos três inimigos do povo palestiniano, porque a colonização também tem uma dimensão interna de luta de classes. Como resultado desta análise errónea, a esquerda concedeu à elite nativa e ao departamento subcontratado que foi criado, a Autoridade Palestiniana, uma legitimidade que nunca foi dada à camarilha indígena sul-africana que sustentava o apartheid de Pretória, que governava os bantustões criados pelo regime supremacista branco.

A sofisticação dos guetos palestinianos é maior do que a dos guetos da África do Sul, com ministérios, embaixadas, empregos que proporcionam alívio económico a uma multidão de palestinianos, e uma virtual estatalidade internacional. Além disso, este departamento dos guetos, cuja principal função é a repressão interna, com custos superiores ao da agricultura, da educação e da saúde juntas, incorpora um certo nível de denúncia e crítica ao regime israelita, e possui inclusivamente um departamento para prisioneiros e prisioneiras palestinianos. Isto aumenta a confusão sobre o que é realmente a Autoridade Palestiniana. Gramsci analisou estes processos de submissão há muito tempo, situando o elemento da corrupção entre a força e o consentimento para neutralizar, neste caso, o povo palestiniano. E esta confusão é a que persiste até hoje na esquerda, quanto ao tipo de relação a ser mantida com a estrutura colonial chamada Autoridade Palestiniana, embora a representação dos oprimidos deva estar naqueles que resistem à opressão, e não nos que se sujeitam a ela ou nos intermediários. O exemplo claro viu-se em Gaza. Quem representa os oprimidos? Os resistentes que romperam o cerco ou a camarilha de Mahmoud Abbas? Na Argélia e na África do Sul a esquerda foi clara.

 

O discurso humanitarista e a aceitação dos guetos

Outro elemento que reforçou a adopção deste vocabulário pela esquerda foi a transformação da economia colonial na Palestina decorrente dos Acordos de Oslo. A partir desse momento, um exército de ONGs dos Estados Unidos e da Europa irrompeu na sociedade nativa, organizações cujas actividades e programas foram financiados pelos mesmos países que patrocinam a colónia israelita. As ajudas tiveram como condição a supressão, por parte dos palestinianos, da sua linguagem de libertação, e até da simples linguagem da legalidade internacional, em troca da concessão de alguns direitos humanos através dessas ONGs. Esta lei do silêncio imposta pelo Ocidente aos nativos inclui a UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinianos. Para receber os fundos, teve de mutilar a sua linguagem que era, inclusive, a da mera legalidade internacional, e o seu mandato existencial para ajudar os refugiados palestinianos está agora condicionado pela posição política dos nativos sobre se querem receber leite ou tratamento médico.

Muitos dos membros europeus destas ONGs financiadas participaram, por sua vez, no Ocidente, em redes de solidariedade com a Palestina, ou até fizeram parte de partidos de esquerda. Portanto, estas pessoas ligadas às ONGs trouxeram de volta para a Europa ou para os EUA a linguagem que impunham aos palestinianos no terreno, e tem sido o vocabulário que têm utilizado no Ocidente em artigos, relatórios ou reuniões relacionadas com a Palestina.

 

O medo da acusação de anti-semitismo

Outro elemento que tem manietado a esquerda ocidental relativamente à Palestina tem sido o medo de uma possível acusação de judeofobia ou, mais frequentemente, do termo manipulado de anti-semitismo. À insegurança discursiva de muitos partidos de esquerda sobre a causa palestiniana, devido à confusão, à ignorância ou à crença em que a questão colonial foi resolvida no século XX, acresce o sentimento de culpa culturalmente inoculado em cada uma das pessoas ocidentais, e não só nelas, pelo genocídio alemão contra o povo judeu há 80 anos. Um sentimento selectivo de culpa que foi imposto universalmente e com o seu termo próprio, Holocausto.

Isto não acontece no caso do mesmo genocídio perpetrado pela Alemanha contra milhões de civis soviéticos ou ciganos, por exemplo, apesar de estes três grupos sociais (soviéticos, ciganos e judeus) terem ocupado o mesmo nível de infra-humanidade e de extermínio máximo para os dirigentes alemães. Israel sabe obviamente como esta acusação opera no subconsciente ocidental e estabeleceu o anti-semitismo como a sua última trincheira defensiva. Lançou os seus lobbies em todo o mundo para tentar impor um contrato de lealdade com o regime israelita. Instituições, parlamentos, governos, câmaras municipais, administrações públicas e até a própria ONU estão a ser pressionados por agentes israelitas para adoptarem a definição de anti-semitismo da IHRA, que nada mais é do que a tentativa de censurar e perseguir a solidariedade com a Palestina e de blindar o regime contra os crimes que comete.

Os últimos trinta anos foram um longo período de retrocesso nas posições da esquerda ocidental, que aceitou os quadros de referência impostos pelo poder, também em relação à questão palestiniana. Não se trata apenas de ter de explicar sucessivamente que não é anti-semitismo ou judeofobia combater o sionismo e o seu artefacto colonial na Palestina. É ainda pior. Passámos do ponto em que a Assembleia Geral da ONU declarava o sionismo como uma ideologia criminosa e racista, à possibilidade de esta adoptar o sionismo através da IHRA e de alargar a proibição da solidariedade com a causa palestiniana que já foi adoptada pela Alemanha. A esquerda ocidental é a esquerda da metrópole colonial da Palestina. A Europa e os EUA são a metrópole do regime israelita e isso obriga-nos a ter uma responsabilidade maior na análise e na linguagem.

 

O uso do quadro narrativo imposto pelos colonizadores

A social-democracia já se tinha rendido ao colonialismo israelita na conferência internacional da Internacional Socialista de 1960, na cidade de Haifa. A cidade tinha sido alvo de uma limpeza étnica doze anos antes, com massacres terríveis e os poucos palestinianos indígenas que restavam em Haifa a viver sob uma ditadura militar a poucos metros do conclave. Nesse evento, a Internacional Socialista emitiu uma declaração final defendendo as descolonizações em todo mundo, mas legitimando a colonização da Palestina. É por isso que, no sábado passado, Pedro Sánchez chamou repetidamente terroristas aos nativos palestinianos que ousaram forçar a saída do gueto de Gaza, pisando de novo as terras que lhes foram roubadas.

Além dessa social-democracia que hoje se tornou social-liberal, todo o espaço à sua esquerda caiu, em maior ou menor grau, no erro ou na ignorância de usar grande parte do vocabulário dos Acordos de Oslo ou daquele forjado pela hegemonia mediática e cultural ocidental, que inclui conceitos fraudulentos e mitológicos como o de povo judeu. Pior ainda é a narrativa adoptada por alguns sectores da esquerda ocidental, com um sucessivo lamento trágico e doloroso pelas crianças palestinianas massacradas, mas desprovido de qualquer denúncia colonial. É uma narrativa idêntica à das ONGs que tentam proporcionar algum alívio em matéria de direitos humanos dos povos indígenas. Igualmente prejudicial é o abuso do termo “ocupação”, já que o mesmo se devia referir a algo temporário, evidenciando uma incompreensão, ou uma ocultação, do processo gradual de invasão permanente de toda a Palestina.

Para além disto, na infinidade de proclamações da esquerda ocidental que reclamam ser o culminar da reivindicação, ouvimos a exigência do “fim da ocupação” e do “reconhecimento do Estado da Palestina”. Quem diz isto nunca explica em que consistiria este Estado da Palestina: se seriam centenas de guetos nativos desconexos, ou no máximo, um Estado baseado em dois macro-guetos como a Cisjordânia e Gaza, se ocorresse um improvável abandono da Cisjordânia pelos 600.000 colonos. Ou seja, o que ouvimos nestes discursos é a petição da esquerda para que os guetos menores ou os guetos maiores, em suma, os guetos, sejam identificados como o Estado da Palestina, como enclaves indígenas dentro do regime que colonizou toda a Palestina. Isto significa que se perdeu a noção essencial de que a Palestina continua a ser todo o território desde o Rio Jordão até ao Mar Mediterrâneo, mesmo que durante algumas décadas tenha sido rebaptizada pelos colonos como Israel, tal como o Zimbabué foi renomeado pelos colonos como Rodésia.

Por estas razões, é vergonhoso que as ONGs israelitas e ocidentais tenham ultrapassado vários sectores da esquerda ocidental na definição do artefacto israelita como um regime de apartheid e, portanto, um crime contra a humanidade. A denominação apartheid é inclusive insuficiente para descrever Israel, e chega demasiado tarde, quando os palestinianos já a utilizam há muitas décadas e, no entanto, a esquerda não a utiliza massivamente.

 

A não-violência como axioma absoluto

Estes impasses da esquerda continuam a operar noutras categorias. Um deles é a acção de boicote total ao Estado israelita, que muitas organizações de esquerda ainda têm pavor de considerar, admitindo apenas de forma muito concreta. É claro que deve haver um boicote, não apenas a um grupo restrito de empresas, mas a todo o artefacto colonial. É uma exigência que as mulheres palestinianas já lançaram em 1929 e que até nasceu antes, mas que continua a ser ignorada no Ocidente. Por exemplo, os partidos políticos e os sindicatos mantêm fóruns e reuniões conjuntas com organizações racistas israelitas equivalentes.

Outro impasse é o totem da não-violência, enraizado há décadas no Ocidente. Mas as guerras capitalistas são uma coisa e as lutas de libertação e a auto-defesa são outra. A isto soma-se o conceito do white savior, que mantemos, por exemplo, ao acreditar que foi o nosso boicote ao povo europeu branco que conseguiu derrubar o regime do apartheid na África do Sul. Trata-se de um desprezo pela resistência indígena na África do Sul, Palestina, Vietname, Angola, etc., e de uma amnésia perante as lições do século XX. Foi esquecido que toda a colonização é violenta e que, como tal, o processo histórico de descolonização também é violento. É preciso recuperar a compreensão de que a ingovernabilidade de um regime colonial diante da resistência em todas as suas formas por parte de uma maioria nativa é o que derruba essas construções em terras do ultramar. Não se trata de uma sublimação ou de um fascínio pela violência, trata-se de compreender que a violência é a linguagem da realidade quotidiana que os colonizadores israelitas impuseram com a ajuda dos EUA e da UE. Trata-se de compreender que, se a sociedade colonial israelita não pagar um preço com o medo e não for forçada a tal, não renunciará ao seu privilégio nem à sua supremacia.

A resistência sob todas as formas por parte dos palestinianos nativos é um exercício legítimo que a esquerda não ousa proclamar, apesar de ter aplaudido Zelensky e apoiado o envio de armas para a Ucrânia. A luta armada contra a opressão e a colonização é reconhecida no direito internacional, implicitamente no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e explicitamente em diferentes textos, como a Resolução 3070 da ONU. Dos três níveis de resistência do povo palestiniano – a exigência de direitos humanos, a mobilização não violenta e a resistência armada –, apenas os dois primeiros foram manifestamente apoiados pela maior parte da esquerda ocidental nas últimas décadas. Declarar apoio à luta armada significava cair no trompe l'oeil do terrorismo. Há que recordar que o regime israelita declarou como terrorismo todos os três níveis de resistência, incluindo as ONGs palestinianas de direitos humanos. A esquerda da metrópole colonial entrou numa contradição com a luta armada indígena na Palestina que ainda não foi resolvida, paralisada na teia do “terrorismo”.

Foi por isso que os Verdes europeus fizeram uma declaração infame sobre a operação a partir de Gaza, chamando-lhe terrorismo. Já era de esperar, já que se converteram no braço esquerdo da NATO. O Podemos cedeu no uso de uma equivalência horrível entre os actores (Israel e Hamas) e da equidistância na “escalada de violência” que mais tarde quis corrigir noutras declarações. A tibieza do Sumar ou da CCOO nas suas contas no X/Twitter foi ainda mais transgressora. O PCE oscilou entre a mensagem clara anticolonial da sua juventude e a vaga mensagem humanitária do seu Secretário-Geral.

No entanto, como referi no início do artigo, a linguagem parece ter começado a mudar, tanto em espaços como o Parlamento Europeu, como nos novos meios de comunicação social. A linguagem da esquerda relativamente à Palestina tem de ser redireccionada para este quadro, para a recuperação da narrativa anti-colonial. Até agora, grande parte da esquerda ocidental silenciou os nativos palestinianos e a sua mensagem política ao aceitar, durante 30 anos, o quadro narrativo de Oslo estabelecido pelos colonizadores da Palestina, e legitimando a Autoridade Palestiniana como representação dos colonizados, isto é, naqueles que se submeteram, e não nos que resistem. A esquerda da metrópole ocidental tem uma obrigação ainda maior de situar o discurso anticolonial no centro das explicações sobre a Palestina e, portanto, das acções a levar a cabo. É imprescindível retomar a radicalidade, nas suas raízes, na compreensão e na expressão de apoio à causa palestiniana.

A esquerda ocidental deve assumir que a última colónia europeia no mundo árabe, depois da Líbia, da Argélia, de Marrocos ou da Tunísia, onde milhões de colonos europeus se fixaram durante várias gerações, não tem o direito de existir. E os cidadãos israelitas não-indígenas continuarão a ser colonos enquanto continuarem a apoiar o seu artefacto colonial contra os nativos, independentemente das suas disputas políticas internas, enquanto a grande maioria não questionar o seu regime supremacista. Os Estados não têm o direito intrínseco a existir, e os regimes coloniais ainda menos. São as pessoas que habitam um território, juntamente com a que dele foram expulsas, que têm direito a uma existência com direitos e obrigações iguais. Se os actuais colonos assumirem direitos iguais aos dos palestinianos nativos, terão um lugar na futura Palestina com as estruturas coloniais desmanteladas. Tal como fizeram os poucos colonos franceses, Pieds Noirs, que decidiram renunciar ao seu supremacismo e permanecer na Argélia independente face à maioria dos colonos, que os consideraram intoleráveis ​​e decidiram regressar à metrópole francesa.

 

 

 

Daniel Lobato Bellido

Daniel Lobato Bellido é ativista pelos Direitos Humanos especializado na Causa Palestiniana, comentador na Hispan TV, colunista e brigadista internacional da Unadikum.

 

Nota de Edição

O texto original, em castelhano, foi publicado no jornal espanhol El Salto a 9 de Outubro de 2023, sob o título La ruptura del confinamiento de Gaza, el cadáver israelí, y la izquierda ante la Palestina. A tradução para português é de Paulo Ávila.

 

 

Imagens

Tala, de 7 anos, brinca à “princesa adormecida” numa saliência deixada por um trator nas terras agrícolas da sua família. Imagem da série The Sacred Space Odity, da fotógrafa palestiniana Tanya Habjouqa.

 

Ficha técnica

«A Ruptura do confinamento de Gaza, o Cadáver Israelita e a Esquerda perante a Palestina» • Daniel Lobato Bellido

Data de publicação • 26.10.2023

Edição #40 • Outono 2023