As
imagens do dia 7 de Outubro de 2023, com os nativos palestinianos a derrubarem a
cerca do gueto de Gaza onde estão confinados à força há 75 anos — após terem
sido desapossados de tudo — terão um efeito histórico na aceleração do colapso
do regime colonial, que já era inevitável. Entretanto, nos últimos meses, têm
surgido alguns novos termos no discurso estagnado que a esquerda vinha
utilizando há décadas sobre a Palestina. Resta ainda saber qual será o efeito
do histórico Prison Break do mega-campo de confinamento de Gaza nesse
discurso, mas os primeiros sintomas são de confusão na esquerda institucional.
Têm os palestinianos direito a escapar ao seu confinamento? Apoiamos a causa
palestiniana mas ao mesmo tempo classificamo-los como terroristas? Sofrem com o
apartheid e o colonialismo, mas devíamos limitar-nos a conceder-lhes leite e
açúcar através das nossas ONGs? Seria compreensível, mesmo que não desejável,
que os nativos americanos atacassem e até sequestrassem as caravanas de colonos
brancos que avançavam pelas suas pradarias do oeste americano? E o que dizer
então dos nativos palestinianos que raptaram colonos israelitas quando estes
dançavam numa rave techno nas terras dos que estão encarcerados no gueto
de Gaza?
A
esquerda europeia e latino-americana, salvo raras excepções, reproduziu a
linguagem confusa imposta pelos opressores do povo palestiniano: o vocabulário
contido nos Acordos de Oslo de há 30 anos. Acordos fraudulentos, como se
explicará mais adiante. Este discurso fossilizado parecia estar a mudar nalguns
sectores da esquerda, com a precipitação dos acontecimentos na Palestina. Uma
parte da esquerda parecia estar a ser capaz de reconhecer o aceleramento do
tempo histórico. Outra parte, não. Não associava os elementos: a intensificação
da opressão desde 2021 e, especialmente, o resultado do confronto com Gaza em
Maio deste ano, a multiplicação das acções da resistência armada palestiniana e
o terror crescente no seio do regime face a um confronto total com o Líbano e
com outras forças regionais. E, no entanto, tudo faz parte de um processo rumo
a um horizonte. O derrube da jaula de Gaza no sábado de 7 de Outubro deixou uma
boa parte da esquerda ainda mais deslocada e desarticulada na linguagem, facto
que será analisado mais adiante neste artigo.
Tudo
isto ocorre em simultâneo com a crise interna do aparelho israelita: convulsões
e espasmos sob a forma de repetidas eleições antecipadas, grandes manifestações
da facção da sociedade colonizadora que defende uma democracia supremacista
contra aquela que defende a autocracia supremacista de Netanyahu, o autogolpe
institucional, etc. Tudo isto já demonstrava o início da decomposição do regime
israelita, arrastando consigo a elite do seu departamento indígena
subcontratado, chamado Autoridade Palestiniana. Na realidade, estará a
Palestina em contagem decrescente, tal como a Argélia colonizada das décadas de
40 ou 50, ou a África do Sul da década de 70? A uma geração de distância – ou
menos – do fim da sua opressão?
O
cadáver israelita que ainda caminha
O
regime israelita aparenta manter um papel de protagonismo na Ásia Ocidental,
assinando acordos com os regimes árabes circundantes, até ao último dia,
continuará a contar com o apoio dos EUA e da UE, e possui um exército muito
poderoso e, inclusive, dezenas de bombas nucleares. Poderia pensar-se que a
actual crise institucional israelita não é diferente das de muitos países
ocidentais. Cinco eleições em quatro anos, ou grandes manifestações contra um
governo que propõe reformas institucionais, não deveriam ser um alarme quanto à
solidez de um regime. É significativo que a disputa política entre as facções israelitas
resida na preservação ou na supressão do verniz de democracia liberal do seu
Estado, mas ambos os sectores partilham um consenso na continuação da limpeza
étnica e do apartheid dos povos indígenas. O assassinato de crianças
palestinianas – como reflectiu o autor Yossi Klein no jornal israelita Haaretz
em Maio passado – produz uma geminação na sociedade dos colonos israelitas, e
este pilar ideológico comum proporciona, teoricamente, maior robustez ao
aparelho israelita. Democratas supremacistas versus autocratas
supremacistas, com os nativos nos seus guetos correspondentes.
No
entanto, há vários muros intransponíveis que cercam Israel, muros que o
impedirão de se ser uma entidade colonial triunfante contra os nativos, do tipo
que evolui para a “democracia liberal”, como a Austrália, o Canadá ou os
Estados Unidos, após terem conseguido saquear todo o território aos seus donos
indígenas. Este não será o seu destino e, por isso, o que observamos é uma
sociedade colonial israelita consciente disso e que se revolta contra si mesma.
O
projecto supremacista dos colonos na Palestina está destinado a ser um
empreendimento falhado em menos de duas décadas, tal como foram a Argélia,
Rodésia, Angola ou África do Sul. As bases desse triunfo palestiniano remontam
à Nakba de 1948, quando a população palestiniana foi forçada a um êxodo
massivo, sofrendo despossessão e limpeza étnica. No entanto, a grande maioria
dos nativos, ainda que desapossados e deslocados, conseguiu permanecer no
território palestiniano e lançar as bases para a actual vitória demográfica. Este
é o primeiro e mais decisivo muro: o da demografia. Apesar das sucessivas vagas
de imigração judaica ao longo de cem anos para a Palestina, rebaptizada como
Israel nessas décadas, os povos nativos representam hoje 52% da população,
frente aos 48% da sociedade colonizadora israelita. Somando a estes os nativos
que possuem cidadania israelita de terceira classe, e os que sobrevivem sob
ditaduras militares de diferentes graus em Jerusalém, nos guetos da Cisjordânia
e em Gaza, esse número supera a totalidade dos colonos. Aceitando o melhor
censo-ficção israelita, que continua a incluir centenas de milhares de colonos
que já voltaram para o Ocidente, 7,6 milhões de palestinianos (38% com menos de
15 anos de idade) excedem os 7,1 milhões de judeus israelitas (28% com menos de
15 anos de idade). Até os demógrafos israelitas falam de um rácio inferior a
47%. Em menos de duas gerações, será atingida a proporção de dois terços para
os palestinianos. Estes números demográficos nunca são mencionados nos meios de
comunicação ocidentais, pois são um retrato que permite compreender
instantaneamente o que está a acontecer e o que vai acontecer. Perante estes
números, é óbvio que o regime entrará em colapso, a menos que leve a cabo um
genocídio em massa ou uma limpeza étnica de milhões de palestinianos.
Para
além da fuga de colonos, a fuga de capitais israelitas para os bancos
ocidentais atingiu níveis recorde. É sabido que o dinheiro é o elemento mais
cobarde. No futuro, será alcançado um ponto crítico de pânico, multiplicando
ambas as fugas: a económica e a demográfica.
Há
ainda outros muros que aprisionam o regime israelita. A sua superioridade
militar não é suficiente para proteger as suas frágeis infra-estruturas vitais
e a sua sociedade de colonos, que vive concentrada e vulnerável numa faixa
limitada entre Acre e Jerusalém. Em 2021, Israel levou a cabo um ataque de
grande escala contra Gaza e ao décimo dia teve de anunciar um cessar-fogo. Em
2022 e 2023, novos ataques foram reduzidos a escassos dias, apesar de famílias
inteiras terem sido intencionalmente despedaçadas enquanto dormiam. Pelo
contrário, há quase dez anos, em 2014, Israel não teve necessidade de suspender
os seus bombardeamentos sobre Gaza durante dois meses de massacre e 2.300
pessoas assassinadas (500 crianças). A diferença dos últimos anos face a 2014
explica-se pelas maiores capacidades da resistência palestiniana. Em 2021, as
defesas aéreas israelitas foram esgotadas em dez dias contra os rockets de
Gaza, e os EUA tiveram de as reabastecer meses mais tarde. O espaço aéreo
controlado por Israel foi encerrado e os portos, aeroportos e zonas industriais
foram atingidos por rockets palestinianos. Por outro lado, desde 2014 que os
tanques e os soldados israelitas não ousavam entrar em Gaza.
Agora,
a contra-ofensiva da resistência palestiniana, rompendo o cerco de Gaza,
mostrou, não apenas que os tanques israelitas já estavam a ser destruídos
dentro do gueto, mas que os palestinianos os estão a destruir também do lado de
fora, com mísseis e drones. Tudo mudou em relação a 2014. É claro que os
palestinianos e os seus rockets não podem derrotar militarmente o exército
israelita, mas podem provocar custos exorbitantes à sociedade colonizadora, que
os próprios israelitas não estão dispostos a suportar, o que equivale de facto
a uma derrota.
É
por isso que Israel tem tentado manter a frente de Gaza adormecida, enquanto
dirige o seu foco para o seu sonho de expulsar os quase quatro milhões de
palestinianos de Jerusalém e da Cisjordânia. Esta tem sido a sua estratégia:
elevar ao máximo a opressão na Cisjordânia e em Jerusalém e controlar a frente
norte do Líbano. A tentativa de deixar eternamente congelado o campo de
confinamento de Gaza falhou: os nativos confinados em Gaza derrubaram o
tabuleiro, e aos deputados do partido de Netanyahu só lhes resta o clamor
desesperado por outra Nakba impossível, outra limpeza étnica em massa
impossível como em 1948.
No
passado sábado [7 de Outubro], Netanyahu afirmou que Israel estava em guerra,
embora tenha omitido que está em guerra há 75 anos contra os nativos
palestinianos, e revelou os três pontos da sua retaliação: encerrar de novo no
gueto os nativos armados que conseguiram humilhar Israel, arrasar Gaza como
vingança, e advertir o Líbano para não se envolver. O segundo e o terceiro
pontos são mais a expressão de um desejo do que da realidade, o que revela a
sua fraqueza. Exigiu então que os palestinianos do gueto abandonassem Gaza se
não quisessem morrer todos. Uma promessa de genocídio aceitável para a Europa e
para os Estados Unidos, que também não será cumprida, mesmo perante a
necessidade de aliviar a sua aterrorizada sociedade colonizadora.
Se
Israel já não consegue lançar um confronto total com o campo de concentração de
Gaza, menos ainda o pode fazer com o Líbano. Os túneis libaneses de centenas de
quilómetros escondem um poder de fogo em rockets, mísseis, drones e
anti-tanques milhares de vezes superior ao de Gaza. Estas ameaças a poucos
quilómetros das urbes coloniais israelitas não se podem resolver com bombas
atómicas. Um dos momentos mais reveladores desta incapacidade contra a frente
norte ocorreu em Abril de 2023, quando foi alvo de vários rockets do Líbano em
resposta à opressão em Jerusalém. Israel não se atreveu a culpar o Hezbollah e,
portanto, não se atreveu a iniciar um confronto de grande escala contra o Líbano devido ao preço a pagar pelos
israelitas. Levou a cabo uma manobra de distracção, bombardeando
de forma limitada o gueto de Gaza e não o Líbano.
Na
próxima retaliação do regime contra Gaza, durante os próximos dias, na qual
certamente serão assassinados centenas de palestinianos, o limite será ditado
pelos mísseis e drones lançados desde o Líbano na direcção da sociedade
colonizadora israelita. O impasse israelita é irresolúvel e não será possível
apaziguar o terror dos israelitas. Cada rocket e cada míssil palestiniano com
impacto significará um incremento no número de colonos que desejam fugir para
outro país. Considerando ainda o lançamento de mísseis desde o Líbano, isto
levará ao pânico entre os colonos. Uma escalada para uma via militar
desenfreada só poderá conduzir a uma dor desconhecida para a sociedade
colonizadora israelita, que nunca pagou o preço do sofrimento que os civis dos
países da região pagaram pelas agressões israelitas. As estratégias militares
falharam, assim como as estratégias para isolar e fragmentar os palestinianos.
Em 2021, a opressão em Jerusalém provocou, não só a resistência armada de Gaza,
mas uma resistência civil global em toda a Palestina em mobilizações e greves
gerais, incluindo os dois milhões de palestinianos com a cidadania de terceira
classe do regime.
O
impasse israelita
Israel
está num impasse militar e tem optado por estratégias de fio da navalha:
massacres selectivos de líderes da resistência em Gaza e das suas famílias sem
entrar numa guerra total (Agosto de 2022, Maio de 2023) e execuções incessantes
de combatentes na Cisjordânia. Tudo calculado para não provocar demasiado a
resistência armada palestiniana. Paralelamente, há a tentativa de impedir o
reforço militar regional, através do bombardeamento do território sírio. A
geopolítica também não é favorável a Israel, com o progressivo enfraquecimento
dos EUA-UE na Ásia Ocidental e no resto do mundo, ao qual acresce o
reposicionamento dos actores regionais. Apesar de serem cúmplices na opressão
do povo palestiniano, os regimes árabes não são estúpidos. Embora os seus
regimes estabeleçam relações oportunistas com Israel e lhe concedam
oportunidades fotográficas nos enterrados e vazios Acordos de Abraão. Os
regimes árabes não receberão os F35 e os mísseis dos EUA que esperavam com
estes acordos, e o dispositivo colonial não conseguiu criar uma NATO
árabe-israelita que funcionasse como escudo protector de Israel. Mais ainda, as
oligarquias árabes historicamente subordinadas aos Estados Unidos e a Israel
estão agora a reposicionar-se umas contra as outras a nível regional e global.
Aos
gigantescos acordos económicos assinados com a China e a Rússia, junta-se a
diplomacia destes dois países, que já concretizou o impensável reencontro entre
a Arábia Saudita e o Irão. A Liga Árabe tem tido um papel infame nas últimas
décadas, mas as declarações, as palavras e os termos podem mudar de um dia para
o outro. Isto pôde ser reconhecido no comunicado do regime saudita sobre a
operação palestiniana que rompeu o cerco de Gaza, em que culpa inequivocamente
Israel pela sua política de opressão e colonização: “É o resultado da ocupação
contínua e da privação do povo palestiniano dos seus direitos legítimos por
Israel.” Nestas voltas e reviravoltas da história, as mesmas oligarquias árabes
que têm sido inimigas do povo palestiniano e de outros povos da região serão as
primeiras a apresentar-se em Jerusalém no futuro para felicitar os
palestinianos no dia seguinte à queda do regime. Os EUA e o Reino Unido também
o fizeram com Mandela, depois de o terem considerado terrorista até 2008 e
apoiado o regime do apartheid sul-africano durante décadas.
O
extremismo israelita é a natureza de um regime colonial
Finalmente,
há que compreender que tudo isto não resultou de uma deriva de Israel rumo a um
extremismo descarado, conduzida por Netanyahu ou por Ben Gvir. Toda a
colonização de colonos contra nativos na sua terra é extremista e fascista,
ainda que se disfarce de democracia, como os EUA do século XIX. A despossessão
e expulsão pelas armas é fascismo. Que se revele a autêntica ideologia fascista
de um regime colonial é a consequência, e não a causa, do seu fracasso. Este
não é diferente do extremismo tardio dos colonos franceses na Argélia (OEA) ou
da sociedade de colonos europeus brancos na África do Sul (Movimento de
Resistência Afrikaner). A Argélia e a África do Sul padeceram de colonizações muito
mais extensas do que a Palestina, e nos últimos anos de opressão, os seus povos
indígenas sofreram uma violência acrescida por parte de grupos para-estatais,
como a nova milícia de colonos extremistas do ministro Ben Gvir.
A
encruzilhada da resistência palestiniana
A
resistência palestiniana também se debateu com dilemas até à secreta e massiva
operação militar de ruptura do cerco de Gaza. O maior deles é como minimizar o
custo humano. Embora um povo determinado a descolonizar-se, como os
palestinianos, os argelinos ou os vietnamitas, não calcule qual será a conta
final do seu sofrimento nesta luta de décadas, é óbvio que tentam sempre
minimizar esse preço. Não se deve cair no extremo de fetichizar a resistência
do povo palestiniano nem, desde a nossa zona de conforto, pensar que os
palestinianos são irresponsáveis e loucos pelas
vidas palestinianas que agora se vão perder.
Até
agora, o objectivo foi forçar a sociedade colonial a tomar consciência da sua
fragilidade e de induzi-la a pensar, a temer, que essa guerra total e o preço
que terá de pagar se aproximam cada vez mais. Que isto aumente o pânico, para
que prossiga a sua decomposição, multiplicando a fuga dos colonos e ao mesmo
tempo tentando pagar o menor preço possível em sangue palestiniano. Dentro da
tragédia e da raiva provocada pelos massacres israelitas, há também estratégia.
A operação de ruptura da prisão de Gaza elevará a níveis nunca antes vistos a
sensação de fragilidade e de terror entre os israelitas, embora implique um
custo muito elevado.
A
esquerda e a sua linguagem face à Palestina
Este
cenário do declínio israelita e da histórica operação de resistência em Gaza
coincide com o desmoronamento do cenário e da linguagem construída há 30 anos
através dos fraudulentos Acordos de Oslo. No início dos anos 90, nos primeiros
anos da efémera hegemonia global dos Estados Unidos, ocorreram três derrotas
simultâneas das lutas de descolonização: os Acordos de Oslo para a Palestina, o
incumprimento da autodeterminação do povo saharaui, e a solução negociada de
não-descolonização da África do Sul, na medida em que nela são mantidas a forma
estatal e as estruturas económicas e de propriedade herdadas do apartheid
branco. A esquerda ocidental não analisou devidamente o caso palestiniano,
mantendo um apoio aparente à descolonização do Sahara.
Os
acordos de Oslo atrofiam o discurso da esquerda
O
flagrante processo de colonialismo através do povoamento de colonos e a
substituição demográfica forçada dos indígenas palestinianos foram
transformados pelos Acordos de Oslo num falso acordo entre supostas partes
iguais. Com isto, transformou-se também a linguagem internacionalmente empregue
para definir a relação entre opressor e oprimido. Todo o vocabulário da
esquerda utilizado na segunda metade do século XX, como invasão, libertação
nacional, descolonização, luta, apartheid, despossessão, substituição
demográfica forçada, limpeza étnica, resistência, combatentes, confinamento em
guetos, tortura, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, direito de
regresso e até direito internacional foram largamente abandonados. Estes
conceitos foram substituídos por outros, como reconhecimento, ambas as partes,
mesa de negociações, diálogos, acordos, processo de paz, dois Estados, governo
palestiniano, compromisso, garantias de segurança para o colonizador, pedido de
moderação ao colonizador e ao colonizado, coordenação, terrorismo, islamismo, anti-semitismo,
direito de Israel a existir e a defender-se, ocupação que se refere apenas à
Cisjordânia e a Gaza, foco exclusivo nos direitos humanos, omissão sistemática
do direito ao regresso de milhões de palestinianos, etc.
Para
impor a nova linguagem, os Acordos de Oslo contaram com a cumplicidade da elite
política palestiniana, que tentava reerguer-se após ter sido destituída de toda
a liderança durante a Primeira Intifada, exilando-se, a milhares de
quilómetros, na Tunísia, entre outros factores. O partido signatário
palestiniano tinha um histórico que aparentemente o legitimava para assinar
esta traição aos direitos do povo palestiniano. Esta elite política
palestiniana da OLP era apoiada, ou pressionada, pela oligarquia interna
palestiniana, ansiosa por normalizar as transacções económicas e os negócios
com os colonizadores israelitas. A conjunção de ambas as oligarquias
palestinianas – a política, ausente do território, e a económica, presente –
assegurou o consentimento gramsciano dos povos subjugados. Ghassan Kanafani
determinou que a oligarquia indígena reaccionária era um dos três inimigos do
povo palestiniano, porque a colonização também tem uma dimensão interna de luta
de classes. Como resultado desta análise errónea, a esquerda concedeu à elite
nativa e ao departamento subcontratado que foi criado, a Autoridade
Palestiniana, uma legitimidade que nunca foi dada à camarilha indígena
sul-africana que sustentava o apartheid de Pretória, que governava os bantustões
criados pelo regime supremacista branco.
A
sofisticação dos guetos palestinianos é maior do que a dos guetos da África do
Sul, com ministérios, embaixadas, empregos que proporcionam alívio económico a
uma multidão de palestinianos, e uma virtual estatalidade internacional. Além
disso, este departamento dos guetos, cuja principal função é a repressão
interna, com custos superiores ao da agricultura, da educação e da saúde
juntas, incorpora um certo nível de denúncia e crítica ao regime israelita, e
possui inclusivamente um departamento para prisioneiros e prisioneiras
palestinianos. Isto aumenta a confusão sobre o que é realmente a Autoridade
Palestiniana. Gramsci analisou estes processos de submissão há muito tempo,
situando o elemento da corrupção entre a força e o consentimento para
neutralizar, neste caso, o povo palestiniano. E esta confusão é a que persiste
até hoje na esquerda, quanto ao tipo de relação a ser mantida com a estrutura
colonial chamada Autoridade Palestiniana, embora a representação dos oprimidos
deva estar naqueles que resistem à opressão, e não nos que se sujeitam a ela ou
nos intermediários. O exemplo claro viu-se em Gaza. Quem representa os
oprimidos? Os resistentes que romperam o cerco ou a camarilha de Mahmoud Abbas?
Na Argélia e na África do Sul a esquerda foi clara.
O
discurso humanitarista e a aceitação dos guetos
Outro
elemento que reforçou a adopção deste vocabulário pela esquerda foi a
transformação da economia colonial na Palestina decorrente dos Acordos de Oslo.
A partir desse momento, um exército de ONGs dos Estados Unidos e da Europa
irrompeu na sociedade nativa, organizações cujas actividades e programas foram
financiados pelos mesmos países que patrocinam a colónia israelita. As ajudas
tiveram como condição a supressão, por parte dos palestinianos, da sua
linguagem de libertação, e até da simples linguagem da legalidade
internacional, em troca da concessão de alguns direitos humanos através dessas
ONGs. Esta lei do silêncio imposta pelo Ocidente aos nativos inclui a UNRWA, a
agência da ONU para os refugiados palestinianos. Para receber os fundos, teve
de mutilar a sua linguagem que era, inclusive, a da mera legalidade
internacional, e o seu mandato existencial para ajudar os refugiados
palestinianos está agora condicionado pela posição política dos nativos sobre
se querem receber leite ou tratamento médico.
Muitos
dos membros europeus destas ONGs financiadas participaram, por sua vez, no
Ocidente, em redes de solidariedade com a Palestina, ou até fizeram parte de
partidos de esquerda. Portanto, estas pessoas ligadas às ONGs trouxeram de
volta para a Europa ou para os EUA a linguagem que impunham aos palestinianos
no terreno, e tem sido o vocabulário que têm utilizado no Ocidente em artigos,
relatórios ou reuniões relacionadas com a Palestina.
O
medo da acusação de anti-semitismo
Outro
elemento que tem manietado a esquerda ocidental relativamente à Palestina tem
sido o medo de uma possível acusação de judeofobia ou, mais frequentemente, do
termo manipulado de anti-semitismo. À insegurança discursiva de muitos partidos
de esquerda sobre a causa palestiniana, devido à confusão, à ignorância ou à
crença em que a questão colonial foi resolvida no século XX, acresce o
sentimento de culpa culturalmente inoculado em cada uma das pessoas ocidentais,
e não só nelas, pelo genocídio alemão contra o povo judeu há 80 anos. Um
sentimento selectivo de culpa que foi imposto universalmente e com o seu termo
próprio, Holocausto.
Isto
não acontece no caso do mesmo genocídio perpetrado pela Alemanha contra milhões
de civis soviéticos ou ciganos, por exemplo, apesar de estes três grupos
sociais (soviéticos, ciganos e judeus) terem ocupado o mesmo nível de
infra-humanidade e de extermínio máximo para os dirigentes alemães. Israel sabe
obviamente como esta acusação opera no subconsciente ocidental e estabeleceu o
anti-semitismo como a sua última trincheira defensiva. Lançou os seus lobbies
em todo o mundo para tentar impor um contrato de lealdade com o regime
israelita. Instituições, parlamentos, governos, câmaras municipais,
administrações públicas e até a própria ONU estão a ser pressionados por
agentes israelitas para adoptarem a definição de anti-semitismo da IHRA, que
nada mais é do que a tentativa de censurar e perseguir a solidariedade com a
Palestina e de blindar o regime contra os crimes que comete.
Os
últimos trinta anos foram um longo período de retrocesso nas posições da
esquerda ocidental, que aceitou os quadros de referência impostos pelo poder,
também em relação à questão palestiniana. Não se trata apenas de ter de
explicar sucessivamente que não é anti-semitismo ou judeofobia combater o
sionismo e o seu artefacto colonial na Palestina. É ainda pior. Passámos do
ponto em que a Assembleia Geral da ONU declarava o sionismo como uma ideologia
criminosa e racista, à possibilidade de esta adoptar o sionismo através da IHRA
e de alargar a proibição da solidariedade com a causa palestiniana que já foi adoptada
pela Alemanha. A esquerda ocidental é a esquerda da metrópole colonial da
Palestina. A Europa e os EUA são a metrópole do regime israelita e isso
obriga-nos a ter uma responsabilidade maior na análise e na linguagem.
O
uso do quadro narrativo imposto pelos colonizadores
A
social-democracia já se tinha rendido ao colonialismo israelita na conferência
internacional da Internacional Socialista de 1960, na cidade de Haifa. A cidade
tinha sido alvo de uma limpeza étnica doze anos antes, com massacres terríveis
e os poucos palestinianos indígenas que restavam em Haifa a viver sob uma
ditadura militar a poucos metros do conclave. Nesse evento, a Internacional
Socialista emitiu uma declaração final defendendo as descolonizações em todo
mundo, mas legitimando a colonização da Palestina. É por isso que, no sábado
passado, Pedro Sánchez chamou repetidamente terroristas aos nativos
palestinianos que ousaram forçar a saída do gueto de Gaza, pisando de novo as
terras que lhes foram roubadas.
Além
dessa social-democracia que hoje se tornou social-liberal, todo o espaço à sua
esquerda caiu, em maior ou menor grau, no erro ou na ignorância de usar grande
parte do vocabulário dos Acordos de Oslo ou daquele forjado pela hegemonia
mediática e cultural ocidental, que inclui conceitos fraudulentos e mitológicos
como o de povo judeu. Pior ainda é a narrativa adoptada por alguns sectores da
esquerda ocidental, com um sucessivo lamento trágico e doloroso pelas crianças
palestinianas massacradas, mas desprovido de qualquer denúncia colonial. É uma
narrativa idêntica à das ONGs que tentam proporcionar algum alívio em matéria
de direitos humanos dos povos indígenas. Igualmente prejudicial é o abuso do
termo “ocupação”, já que o mesmo se devia referir a algo temporário,
evidenciando uma incompreensão, ou uma ocultação, do processo gradual de
invasão permanente de toda a Palestina.
Para
além disto, na infinidade de proclamações da esquerda ocidental que reclamam
ser o culminar da reivindicação, ouvimos a exigência do “fim da ocupação” e do
“reconhecimento do Estado da Palestina”. Quem diz isto nunca explica em que
consistiria este Estado da Palestina: se seriam centenas de guetos nativos
desconexos, ou no máximo, um Estado baseado em dois macro-guetos como a
Cisjordânia e Gaza, se ocorresse um improvável abandono da Cisjordânia pelos
600.000 colonos. Ou seja, o que ouvimos nestes discursos é a petição da
esquerda para que os guetos menores ou os guetos maiores, em suma, os guetos,
sejam identificados como o Estado da Palestina, como enclaves indígenas dentro
do regime que colonizou toda a Palestina. Isto significa que se perdeu a noção
essencial de que a Palestina continua a ser todo o território desde o Rio
Jordão até ao Mar Mediterrâneo, mesmo que durante algumas décadas tenha sido rebaptizada
pelos colonos como Israel, tal como o Zimbabué foi renomeado pelos colonos como
Rodésia.
Por
estas razões, é vergonhoso que as ONGs israelitas e ocidentais tenham
ultrapassado vários sectores da esquerda ocidental na definição do artefacto
israelita como um regime de apartheid e, portanto, um crime contra a
humanidade. A denominação apartheid é inclusive insuficiente para descrever
Israel, e chega demasiado tarde, quando os palestinianos já a utilizam há
muitas décadas e, no entanto, a esquerda não a utiliza massivamente.
A
não-violência como axioma absoluto
Estes
impasses da esquerda continuam a operar noutras categorias. Um deles é a acção
de boicote total ao Estado israelita, que muitas organizações de esquerda ainda
têm pavor de considerar, admitindo apenas de forma muito concreta. É claro que
deve haver um boicote, não apenas a um grupo restrito de empresas, mas a todo o
artefacto colonial. É uma exigência que as mulheres palestinianas já lançaram
em 1929 e que até nasceu antes, mas que continua a ser ignorada no Ocidente.
Por exemplo, os partidos políticos e os sindicatos mantêm fóruns e reuniões
conjuntas com organizações racistas israelitas equivalentes.
Outro
impasse é o totem da não-violência, enraizado há décadas no Ocidente. Mas as
guerras capitalistas são uma coisa e as lutas de libertação e a auto-defesa são
outra. A isto soma-se o conceito do white savior, que mantemos, por
exemplo, ao acreditar que foi o nosso boicote ao povo europeu branco que
conseguiu derrubar o regime do apartheid na África do Sul. Trata-se de um
desprezo pela resistência indígena na África do Sul, Palestina, Vietname,
Angola, etc., e de uma amnésia perante as lições do século XX. Foi esquecido
que toda a colonização é violenta e que, como tal, o processo histórico de
descolonização também é violento. É preciso recuperar a compreensão de que a
ingovernabilidade de um regime colonial diante da resistência em todas as suas
formas por parte de uma maioria nativa é o que derruba essas construções em
terras do ultramar. Não se trata de uma sublimação ou de um fascínio pela
violência, trata-se de compreender que a violência é a linguagem da realidade
quotidiana que os colonizadores israelitas impuseram com a ajuda dos EUA e da
UE. Trata-se de compreender que, se a sociedade colonial israelita não pagar um
preço com o medo e não for forçada a tal, não renunciará ao seu privilégio nem
à sua supremacia.
A
resistência sob todas as formas por parte dos palestinianos nativos é um
exercício legítimo que a esquerda não ousa proclamar, apesar de ter aplaudido
Zelensky e apoiado o envio de armas para a Ucrânia. A luta armada contra a
opressão e a colonização é reconhecida no direito internacional, implicitamente
no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e explicitamente em
diferentes textos, como a Resolução 3070 da ONU. Dos três níveis de resistência
do povo palestiniano – a exigência de direitos humanos, a mobilização não
violenta e a resistência armada –, apenas os dois primeiros foram
manifestamente apoiados pela maior parte da esquerda ocidental nas últimas
décadas. Declarar apoio à luta armada significava cair no trompe l'oeil
do terrorismo. Há que recordar que o regime israelita declarou como terrorismo
todos os três níveis de resistência, incluindo as ONGs palestinianas de
direitos humanos. A esquerda da metrópole colonial entrou numa contradição com
a luta armada indígena na Palestina que ainda não foi resolvida, paralisada na
teia do “terrorismo”.
Foi
por isso que os Verdes europeus fizeram uma declaração infame sobre a operação
a partir de Gaza, chamando-lhe terrorismo. Já era de esperar, já que se
converteram no braço esquerdo da NATO. O Podemos cedeu no uso de uma
equivalência horrível entre os actores (Israel e Hamas) e da equidistância na
“escalada de violência” que mais tarde quis corrigir noutras declarações. A
tibieza do Sumar ou da CCOO nas suas contas no X/Twitter foi ainda mais
transgressora. O PCE oscilou entre a mensagem clara anticolonial da sua
juventude e a vaga mensagem humanitária do seu Secretário-Geral.
No
entanto, como referi no início do artigo, a linguagem parece ter começado a
mudar, tanto em espaços como o Parlamento Europeu, como nos novos meios de
comunicação social. A linguagem da esquerda relativamente à Palestina tem de
ser redireccionada para este quadro, para a recuperação da narrativa
anti-colonial. Até agora, grande parte da esquerda ocidental silenciou os
nativos palestinianos e a sua mensagem política ao aceitar, durante 30 anos, o
quadro narrativo de Oslo estabelecido pelos colonizadores da Palestina, e
legitimando a Autoridade Palestiniana como representação dos colonizados, isto
é, naqueles que se submeteram, e não nos que resistem. A esquerda da metrópole
ocidental tem uma obrigação ainda maior de situar o discurso anticolonial no
centro das explicações sobre a Palestina e, portanto, das acções a levar a
cabo. É imprescindível retomar a radicalidade, nas suas raízes, na compreensão
e na expressão de apoio à causa palestiniana.
A
esquerda ocidental deve assumir que a última colónia europeia no mundo árabe,
depois da Líbia, da Argélia, de Marrocos ou da Tunísia, onde milhões de colonos
europeus se fixaram durante várias gerações, não tem o direito de existir. E os
cidadãos israelitas não-indígenas continuarão a ser colonos enquanto
continuarem a apoiar o seu artefacto colonial contra os nativos,
independentemente das suas disputas políticas internas, enquanto a grande
maioria não questionar o seu regime supremacista. Os Estados não têm o direito
intrínseco a existir, e os regimes coloniais ainda menos. São as pessoas que
habitam um território, juntamente com a que dele foram expulsas, que têm
direito a uma existência com direitos e obrigações iguais. Se os actuais
colonos assumirem direitos iguais aos dos palestinianos nativos, terão um lugar
na futura Palestina com as estruturas coloniais desmanteladas. Tal como fizeram
os poucos colonos franceses, Pieds Noirs, que decidiram renunciar ao seu
supremacismo e permanecer na Argélia independente face à maioria dos colonos,
que os consideraram intoleráveis e decidiram
regressar à metrópole francesa.
Daniel Lobato Bellido
Daniel
Lobato Bellido é ativista pelos Direitos Humanos especializado na Causa
Palestiniana, comentador na Hispan TV, colunista e brigadista internacional da
Unadikum.
Nota de Edição
O texto
original, em castelhano, foi publicado no jornal espanhol El Salto a 9
de Outubro de 2023, sob o título La ruptura del confinamiento de Gaza, el cadáver israelí,
y la izquierda ante la Palestina. A tradução para
português é de Paulo Ávila.
Imagens
Tala,
de 7 anos, brinca à “princesa adormecida” numa saliência deixada por um trator
nas terras agrícolas da sua família. Imagem da série The Sacred Space Odity,
da fotógrafa palestiniana Tanya Habjouqa.
Ficha
técnica
«A
Ruptura do confinamento de Gaza, o Cadáver Israelita e a Esquerda perante a
Palestina» • Daniel Lobato Bellido
Data de
publicação • 26.10.2023
Edição
#40 • Outono 2023