A dissolução dos Soulèvements de la Terre • Christophe Laurens




Aí está. Aquilo a que poderíamos chamar o momento Darmanin, em França, é a continuação lógica do momento Trump, nos Estados Unidos, e do momento Bolsonaro, no Brasil. São as primeiras ocorrências de uma longa sequência ainda por vir em que os políticos e os industriais já não se contentam em fazer a escolha cínica de uma economia capitalista injusta contra a da economia ecológica e social necessária; encurralados pela situação, um após o outro declaram abertamente guerra a todos os movimentos ambientais que, de uma forma ou de outra, estão a tentar preservar uma Terra habitável para todas e para todos.

Acabado de sair da pandemia de Covid-19 e menos de cinco anos após os primeiros sinais tangíveis e recorrentes do aquecimento global na Europa, o Governo francês deu um passo decisivo com o seu projecto de dissolução do movimento Soulèvements de la Terre. [1] Com esta decisão, junta-se explicitamente à linha da frente da guerra mundial aberta contra os movimentos ecologistas pelas multinacionais, pelos bancos e pelos políticos da maioria dos países industrializados. Esta decisão, que parece precipitada e tomada sob pressão dessas lutas ecologistas, de facto, inscreve-se numa agenda muito mais vasta e cada vez mais clara dos “decisores” e “decisoras” do século XXI.

1. [N.T.] Os Soulèvements de la Terre [Sublevações da Terra] é um movimento ecologista iniciado em 2021 por membros da ZAD [Zone-À-Defendre] de Notre-Dames-des-Landes, França. Em Junho de 2023, o Ministro do Interior francês decretou a dissolução forçada do movimento, ao qual   o movimento respondeu afirmando: “Erguermo-nos a partir de cada lugar, cada uma à sua maneira. O movimento dos Soulèvements de la Terre não pode ser dissolvido porque é múltiplo e vivo. Não se pode dissolver um movimento, não se pode dissolver uma revolta. Apelamos a todas e a todos para que se juntem a nós nesta tentativa de asfixiar o movimento. Nós somos, todas e todos juntos, os Soulèvements de la Terre”.

“A era da desordem está provavelmente diante de nós…”, escreveu o Deutsche Bank num relatório privado de Setembro de 2020 [2] sobre a rentabilidade de activos a longo prazo, realizado para orientar os investimentos dos seus principais clientes. E prossegue: “Nos próximos anos, olhar para o futuro prolongando as curvas do passado poderá ser o seu maior erro”. Fomos avisados e, sem surpresa, a chave para essas convulsões esperadas reside nas consequências ecológicas, sociais e políticas da destruição acelerada da vida na Terra em curso [3], a que chamamos agora aquecimento global. O último capítulo deste estudo pode ser lido como uma boa antecipação, mas também como uma boa explicação, da situação que estamos actualmente a viver com os Soulèvements de la Terre. Fala da preocupação crescente dos investidores com as expectativas políticas e existenciais dos jovens do futuro. “À medida que esta geração jovem pró-clima cresce naturalmente, (…) a pressão para agir aumentará e as implicações para a economia global poderão ser significativas.”

2. Publicado pela revista Terrestres, a 17 de Maio de 2021.

3. Cf. Baptiste Lanaspeze (2022). Nature. Ed. Anamosa.

Mas aqui está o ponto crucial da análise dos investigadores do Deutsche Bank sobre o conflito entre economia e ecologia. “Quando a Covid-19 se espalhou pelo mundo, alguns meses depois muitos esperavam que os ecologistas fossem relegados para a sombra. (…). Não foi o caso. Na verdade, muitos ecologistas consideram o vírus não como um obstáculo à realização dos seus objectivos, mas pelo contrário como a sua maior oportunidade. Este abriu caminho a anos de conflito agressivo entre quem coloca a economia em primeiro lugar e quem luta pelo ambiente. Este conflito irá alastrar-se pelos círculos políticos e estender-se à sociedade em geral.”

E finalmente, na última página deste relatório: “(…) A principal conclusão a retirar deste debate deveria já ser óbvia. Ambos os lados estão a tornar-se cada vez mais inflexíveis na sua posição e ambos têm inúmeras provas e a lógica do seu lado. No fim de contas, o que está em causa é a ideologia – e essa é uma divisão que pode ser impossível de ultrapassar. Por esse motivo, temos de estar preparados”.

Tudo isto tem o mérito de ser claro e de nos explicar o que os governos, os bancos e as grandes empresas estão a preparar para as próximas décadas: uma guerra aberta contra os jovens e todos os movimentos ecologistas, a fim de proteger a rentabilidade dos seus activos, sobre os quais compreendem agora com clareza que a ideia de longo prazo é mais do que incerta.

Por seu lado, o que os movimentos de ecologia política de todo o mundo compreenderam há várias décadas foi precisamente que o rendimento a longo prazo de toda a actividade humana e de toda a biosfera estava a ser destruído pela prioridade, constante e cegamente renovada, de desenvolver o sistema colonial capitalista. Agora estamos a entrar na tempestade e as posições estão a tomar forma. Séculos de dominação foram apanhados por secas, ondas de calor e inundações, séculos em que os blocos de gelo derretem e que, em breve, serão varridos pelos ciclones da revolta.

Das especulações metafísicas às fundações, das fundações precárias aos andaimes e dos andaimes às escadas rolantes, o grande bazar ecocida da modernidade subiu muito depressa, e subiu muito alto desde a escravatura e a utilização massiva de combustíveis fósseis (828m para a torre Burj Khalifa, coração e alma da cidade do Dubai, oito mil milhões de habitantes na Terra e 415ppm de CO2 na nossa atmosfera comum). Em menos de dois séculos, “nós, os ocidentais”, urbanizámos esta Terra sem qualquer limite, fazendo da expansão das cidades e da urbanidade globalizada dos modos de vida que a acompanha o cerne de um crescimento económico que despreza a autonomia rural dos nossos antepassados; porque o rural é o rústico!

Mas lá está, depois de alguns séculos dedicados à construção de uma civilização de alta potência e à destruição de todas as formas de subsistência ligadas ao seu meio, ou seja, de todas as economias locais verdadeiramente sustentáveis, agora é preciso voltar a descer. Os escravos abandonaram a plantação e a extracção de combustíveis fósseis está a tornar-se cada vez mais cara. Apesar das numerosas premonições e avisos que nos foram dirigidos desde o século XIX, apesar de Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Aldo Léopold, Rachel Carson, Édouard Glissant, Vandana Shiva e mil outros... (quantas mais inteligências brilhantes e singulares precisamos de citar para sermos ouvidos por estes decisores que não lêem?), apesar do número crescente de avisos, nenhum foi ouvido e o grande parque temático da modernidade está agora em falência.

Com os efeitos concretos do aquecimento global a começarem a fazer-se sentir mesmo nos países com ar condicionado, toda a gente sabe, tal como o Deutsche Bank, que a era da desordem está provavelmente a chegar. Inevitavelmente, alguma coisa vai ter de mudar e, para usar as palavras de James Baldwin, estamos envolvidos numa “vingança histórica e cósmica, baseada na lei que reconhecemos quando dizemos: ‘Tudo o que sobe tem de descer’. (…). E aqui estamos nós, a meio da curva, presos no escorrega mais conspícuo, mais dispendioso e mais impraticável que o mundo alguma vez conheceu.” [4]

4. James Baldwin (2018). La prochaine fois le feu (1962). Ed. Gallimard.

O escorrega evocado por James Baldwin não é outro senão o da modernidade e da sua inversão, na qual a destruição acelerada da vida na Terra já nos embarcou a todos. A descida energética em que nos encontramos não acontecerá sem grandes transformações políticas, sociais e ecológicas. É claro que várias opções são ainda possíveis, mas declarar abertamente guerra aos jovens e aos movimentos ecologistas no meio desta curva é uma forma clara e determinada para os políticos, os bancos e as empresas globalizadas nos dizerem que vão cumprir o seu programa. Simplesmente, porque não conhecem outro modo de fazer, continuarão a privilegiar a economia em detrimento da ecologia e, enquanto puderem, o retorno dos seus activos em detrimento da juventude; isto é, até afundarem a nossa arca comum, porque por falta de imaginação não há outra perspectiva mais interessante a desenhar-se nas suas mentes.

Perante o cinismo de quem opta por continuar a construir aeroportos, comboios de alta velocidade, auto-estradas, turbinas eólicas industriais, centrais nucleares, redes 5G, satélites, armas, inteligência artificial, datacenters, pesticidas, fertilizantes químicos e mega-bacias para si próprios, para o seu próprio uso e lucro, mas com os nossos braços, a nossa energia e contra o futuro das comunidades humanas – por outras palavras, um mundo sem futuro, porque é literalmente insustentável e ecocida – precisamos de nos organizar.

A outra grande alternativa para abrandar a descida e amortecer a queda é aquela que é alimentada pelo movimento dos Soulèvements de la Terre, juntamente com muitos outros movimentos anti-racistas, decoloniais, ecofeministas e ecologistas, a do cuidado. Cuidar da Terra e da diversidade dos seus meios ambientais, cuidar das comunidades vivas e de todos os seres que as habitam, cuidar das nossas almas e das nossas crenças, cuidar de todas as tecnologias vivas à nossa disposição, cuidar de todas as alternativas vivas que se ligam à Terra e ao céu numa lógica de permacultura, tanto na cidade como no campo. E se necessário, o desarmamento progressivo e o desmantelamento de todas as infra-estruturas ecocidas.

Senhor Presidente [Macron], o projecto de dissolução do movimento dos Soulèvements de la Terre produziu uma enorme deflagração; uma explosão tão forte que despertou em nós algo de irreprimível. Reacendeu em nós esse algo que se recusa a participar no vasto projecto industrial moderno, cuja consequência mais decisiva não é a melhoria do conforto e da saúde para algumas e alguns de nós, mas sim, a curto prazo, a conclusão da destruição dos ambientes vivos e dos seus habitantes. Nós somos esses habitantes e qualquer coisa em nós indigna-se, exigindo uma vida decente, uma vida com sentido, uma vida justa e bela, nada mais, nada menos. A partir de agora, há qualquer coisa em nós que se recusa obstinadamente a participar na destruição da vida na Terra.

Não estamos aqui na Terra para matar pobres e destruir mundos vivos. Amanhã, de manhã cedo, fecharemos a porta no nariz dos anos mortos, sairemos para as estradas, da Bretanha à Provença, e diremos às pessoas: recusem-se a obedecer, recusem-se a fazê-lo, não participem na guerra que estamos a travar contra a Terra.

Senhor Presidente, se vierem atrás de nós, avisem os vossos polícias que não teremos armas e que eles podem disparar sobre nós. Mas se vierem atrás de nós, avisem os vossos polícias que um dia estarão a disparar contra os vossos filhos.

 

 

Christophe Laurens

Praticou arquitectura e paisagem durante mais de vinte anos, antes de co-fundar o mestrado Alternativa Urbanas em Vitry/Seine. Desenvolve trabalho sobre a emergência de urbanidades alternativas conviviais e populares. Publicou o livro Notre-Dame-des-Landes ou Le métier de vivre (Éditions Loco, 2018).

 

Nota da edição

Este texto foi originalmente publicado em francês na edição #380 do semanário lundimatin, a 27 de Abril de 2023. A 21 de Junho de 2023, o Conselho de Ministros do Governo francês decretou a dissolução do colectivo “Les Soulèvements de la Terre”, constituído nos finais de Janeiro de 2021. Entretanto, por apelo do colectivo, assim como de outras associações, partidos políticos e diversas personalidades, essa decisão foi provisoriamente suspensa pelo Conselho de Estado, enquanto procede a uma análise profunda relativa à legalidade da decisão. Em primeira instância, o Conselho de Estado decidiu suspender a decisão por considerar, por um lado, que a dissolução do colectivo põe em causa a liberdade de associação; e, por outro lado, por considerar que a qualificação das suas acções por parte do governo, enquanto ameaça grave à ordem pública, levanta sérias dúvidas.

 

Imagem

Projecção do artista Joanie Lemercier sobre a fachada da Assembleia Nacional em Paris, a 20 de Junho de 2023, foto ©Stéphane Burlot.

 

Ficha Técnica

«A dissolução dos Soulèvements de la Terre» • Christophe Laurens

Data de publicação: 14.09.2023

Edição #39 • Verão 2023 •