Aí
está. Aquilo a que poderíamos chamar o momento Darmanin, em França, é a
continuação lógica do momento Trump, nos Estados Unidos, e do momento
Bolsonaro, no Brasil. São as primeiras ocorrências de uma longa sequência ainda
por vir em que os políticos e os industriais já não se contentam em fazer a
escolha cínica de uma economia capitalista injusta contra a da economia
ecológica e social necessária; encurralados pela situação, um após o outro
declaram abertamente guerra a todos os movimentos ambientais que, de uma forma
ou de outra, estão a tentar preservar uma Terra habitável para todas e para
todos.
Acabado
de sair da pandemia de Covid-19 e menos de cinco anos após os primeiros sinais
tangíveis e recorrentes do aquecimento global na Europa, o Governo francês deu
um passo decisivo com o seu projecto de dissolução do movimento Soulèvements
de la Terre. [1] Com esta
decisão, junta-se explicitamente à linha da frente da guerra mundial aberta
contra os movimentos ecologistas pelas multinacionais, pelos bancos e pelos
políticos da maioria dos países industrializados. Esta decisão, que parece
precipitada e tomada sob pressão dessas lutas ecologistas, de facto,
inscreve-se numa agenda muito mais vasta e cada vez mais clara dos “decisores”
e “decisoras” do século XXI.
1. [N.T.] Os Soulèvements
de la Terre [Sublevações da Terra] é um movimento
ecologista iniciado em 2021 por membros da ZAD [Zone-À-Defendre] de Notre-Dames-des-Landes,
França. Em Junho de 2023, o Ministro do Interior francês decretou a dissolução
forçada do movimento, ao qual o
movimento respondeu afirmando: “Erguermo-nos a partir de cada lugar, cada uma à
sua maneira. O movimento dos Soulèvements de la Terre não pode ser
dissolvido porque é múltiplo e vivo. Não se pode dissolver um movimento, não se
pode dissolver uma revolta. Apelamos a todas e a todos para que se juntem a nós
nesta tentativa de asfixiar o movimento. Nós somos, todas e todos juntos, os Soulèvements
de la Terre”.
“A
era da desordem está provavelmente diante de nós…”, escreveu o Deutsche Bank
num relatório privado de Setembro de 2020 [2] sobre a
rentabilidade de activos a longo prazo, realizado para orientar os
investimentos dos seus principais clientes. E prossegue: “Nos próximos anos,
olhar para o futuro prolongando as curvas do passado poderá ser o seu maior
erro”. Fomos avisados e, sem surpresa, a chave para essas convulsões esperadas
reside nas consequências ecológicas, sociais e políticas da destruição
acelerada da vida na Terra em curso [3], a que chamamos
agora aquecimento global. O último capítulo deste estudo pode ser lido
como uma boa antecipação, mas também como uma boa explicação, da situação que
estamos actualmente a viver com os Soulèvements de la Terre. Fala da
preocupação crescente dos investidores com as expectativas políticas e
existenciais dos jovens do futuro. “À medida que esta geração jovem pró-clima
cresce naturalmente, (…) a pressão para agir aumentará e as implicações para a
economia global poderão ser significativas.”
2. Publicado pela revista
Terrestres, a 17 de Maio de 2021.
3. Cf. Baptiste
Lanaspeze (2022). Nature. Ed. Anamosa.
Mas
aqui está o ponto crucial da análise dos investigadores do Deutsche Bank sobre
o conflito entre economia e ecologia. “Quando a Covid-19 se espalhou pelo
mundo, alguns meses depois muitos esperavam que os ecologistas fossem relegados
para a sombra. (…). Não foi o caso. Na verdade, muitos ecologistas consideram o
vírus não como um obstáculo à realização dos seus objectivos, mas pelo
contrário como a sua maior oportunidade. Este abriu caminho a anos de conflito
agressivo entre quem coloca a economia em primeiro lugar e quem luta pelo
ambiente. Este conflito irá alastrar-se pelos círculos políticos e estender-se
à sociedade em geral.”
E
finalmente, na última página deste relatório: “(…) A principal conclusão a
retirar deste debate deveria já ser óbvia. Ambos os lados estão a tornar-se
cada vez mais inflexíveis na sua posição e ambos têm inúmeras provas e a lógica
do seu lado. No fim de contas, o que está em causa é a ideologia – e essa é uma
divisão que pode ser impossível de ultrapassar. Por esse motivo, temos de estar
preparados”.
Tudo
isto tem o mérito de ser claro e de nos explicar o que os governos, os bancos e
as grandes empresas estão a preparar para as próximas décadas: uma guerra
aberta contra os jovens e todos os movimentos ecologistas, a fim de proteger a
rentabilidade dos seus activos, sobre os quais compreendem agora com clareza
que a ideia de longo prazo é mais do que incerta.
Por
seu lado, o que os movimentos de ecologia política de todo o mundo
compreenderam há várias décadas foi precisamente que o rendimento a longo prazo
de toda a actividade humana e de toda a biosfera estava a ser destruído pela
prioridade, constante e cegamente renovada, de desenvolver o sistema colonial
capitalista. Agora estamos a entrar na tempestade e as posições estão a tomar
forma. Séculos de dominação foram apanhados por secas, ondas de calor e
inundações, séculos em que os blocos de gelo derretem e que, em breve, serão
varridos pelos ciclones da revolta.
Das
especulações metafísicas às fundações, das fundações precárias aos andaimes e
dos andaimes às escadas rolantes, o grande bazar ecocida da modernidade subiu
muito depressa, e subiu muito alto desde a escravatura e a utilização massiva
de combustíveis fósseis (828m para a torre Burj Khalifa, coração e alma da
cidade do Dubai, oito mil milhões de habitantes na Terra e 415ppm de CO2 na
nossa atmosfera comum). Em menos de dois séculos, “nós, os ocidentais”,
urbanizámos esta Terra sem qualquer limite, fazendo da expansão das cidades e
da urbanidade globalizada dos modos de vida que a acompanha o cerne de um
crescimento económico que despreza a autonomia rural dos nossos antepassados;
porque o rural é o rústico!
Mas
lá está, depois de alguns séculos dedicados à construção de uma civilização de
alta potência e à destruição de todas as formas de subsistência ligadas ao seu
meio, ou seja, de todas as economias locais verdadeiramente sustentáveis, agora
é preciso voltar a descer. Os escravos abandonaram a plantação e a extracção de
combustíveis fósseis está a tornar-se cada vez mais cara. Apesar das numerosas
premonições e avisos que nos foram dirigidos desde o século XIX, apesar de
Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Aldo Léopold, Rachel
Carson, Édouard Glissant, Vandana Shiva e mil outros... (quantas mais
inteligências brilhantes e singulares precisamos de citar para sermos ouvidos
por estes decisores que não lêem?), apesar do número crescente de avisos,
nenhum foi ouvido e o grande parque temático da modernidade está agora em
falência.
Com
os efeitos concretos do aquecimento global a começarem a fazer-se sentir mesmo
nos países com ar condicionado, toda a gente sabe, tal como o Deutsche Bank,
que a era da desordem está provavelmente a chegar. Inevitavelmente, alguma
coisa vai ter de mudar e, para usar as palavras de James Baldwin, estamos
envolvidos numa “vingança histórica e cósmica, baseada na lei que reconhecemos
quando dizemos: ‘Tudo o que sobe tem de descer’. (…). E aqui estamos nós, a
meio da curva, presos no escorrega mais conspícuo, mais dispendioso e mais
impraticável que o mundo alguma vez conheceu.” [4]
4. James Baldwin
(2018). La prochaine fois le feu (1962). Ed. Gallimard.
O
escorrega evocado por James Baldwin não é outro senão o da modernidade e da sua
inversão, na qual a destruição acelerada da vida na Terra já nos embarcou a
todos. A descida energética em que nos encontramos não acontecerá sem grandes
transformações políticas, sociais e ecológicas. É claro que várias opções são
ainda possíveis, mas declarar abertamente guerra aos jovens e aos movimentos
ecologistas no meio desta curva é uma forma clara e determinada para os
políticos, os bancos e as empresas globalizadas nos dizerem que vão cumprir o
seu programa. Simplesmente, porque não conhecem outro modo de fazer,
continuarão a privilegiar a economia em detrimento da ecologia e, enquanto
puderem, o retorno dos seus activos em detrimento da juventude; isto é, até
afundarem a nossa arca comum, porque por falta de imaginação não há outra
perspectiva mais interessante a desenhar-se nas suas mentes.
Perante
o cinismo de quem opta por continuar a construir aeroportos, comboios de alta
velocidade, auto-estradas, turbinas eólicas industriais, centrais nucleares,
redes 5G, satélites, armas, inteligência artificial, datacenters,
pesticidas, fertilizantes químicos e mega-bacias para si próprios, para o seu
próprio uso e lucro, mas com os nossos braços, a nossa energia e contra o
futuro das comunidades humanas – por outras palavras, um mundo sem futuro,
porque é literalmente insustentável e ecocida – precisamos de nos organizar.
A
outra grande alternativa para abrandar a descida e amortecer a queda é aquela
que é alimentada pelo movimento dos Soulèvements de la Terre, juntamente
com muitos outros movimentos anti-racistas, decoloniais, ecofeministas e
ecologistas, a do cuidado. Cuidar da Terra e da diversidade dos seus meios
ambientais, cuidar das comunidades vivas e de todos os seres que as habitam,
cuidar das nossas almas e das nossas crenças, cuidar de todas as tecnologias
vivas à nossa disposição, cuidar de todas as alternativas vivas que se ligam à
Terra e ao céu numa lógica de permacultura, tanto na cidade como no campo. E se
necessário, o desarmamento progressivo e o desmantelamento de todas as
infra-estruturas ecocidas.
Senhor
Presidente [Macron], o projecto de dissolução do movimento dos Soulèvements
de la Terre produziu uma enorme deflagração; uma explosão tão forte que
despertou em nós algo de irreprimível. Reacendeu em nós esse algo que se recusa
a participar no vasto projecto industrial moderno, cuja consequência mais
decisiva não é a melhoria do conforto e da saúde para algumas e alguns de nós,
mas sim, a curto prazo, a conclusão da destruição dos ambientes vivos e dos
seus habitantes. Nós somos esses habitantes e qualquer coisa em nós indigna-se,
exigindo uma vida decente, uma vida com sentido, uma vida justa e bela, nada
mais, nada menos. A partir de agora, há qualquer coisa em nós que se
recusa obstinadamente a participar na destruição da vida na Terra.
Não
estamos aqui na Terra para matar pobres e destruir mundos vivos. Amanhã, de
manhã cedo, fecharemos a porta no nariz dos anos mortos, sairemos para as
estradas, da Bretanha à Provença, e diremos às pessoas: recusem-se a obedecer,
recusem-se a fazê-lo, não participem na guerra que estamos a travar contra a
Terra.
Senhor
Presidente, se vierem atrás de nós, avisem os vossos polícias que não teremos
armas e que eles podem disparar sobre nós. Mas se vierem atrás de nós, avisem
os vossos polícias que um dia estarão a disparar contra os vossos filhos.
•
Christophe Laurens
Praticou arquitectura e paisagem durante mais de vinte anos, antes de
co-fundar o mestrado Alternativa Urbanas em Vitry/Seine. Desenvolve trabalho
sobre a emergência de urbanidades alternativas conviviais e populares. Publicou
o livro Notre-Dame-des-Landes ou Le métier de vivre (Éditions
Loco, 2018).
Nota da edição
Este texto foi originalmente publicado em francês na edição #380 do
semanário lundimatin, a 27 de Abril de 2023. A 21
de Junho de 2023, o Conselho de Ministros do Governo francês decretou a
dissolução do colectivo “Les Soulèvements de la Terre”, constituído nos
finais de Janeiro de 2021. Entretanto, por apelo do colectivo, assim como de
outras associações, partidos políticos e diversas personalidades, essa decisão foi provisoriamente suspensa pelo Conselho
de Estado, enquanto procede a uma análise profunda relativa à
legalidade da decisão. Em primeira instância, o Conselho de Estado decidiu
suspender a decisão por considerar, por um lado, que a dissolução do colectivo
põe em causa a liberdade de associação; e, por outro lado, por considerar que a
qualificação das suas acções por parte do governo, enquanto ameaça grave à
ordem pública, levanta sérias dúvidas.
Imagem
Projecção do artista Joanie Lemercier sobre a fachada da Assembleia
Nacional em Paris, a 20 de Junho de 2023, foto ©Stéphane Burlot.
Ficha Técnica
«A dissolução dos Soulèvements de la Terre» • Christophe
Laurens
Data de publicação: 14.09.2023
Edição #39 • Verão 2023 •