Uma
a uma, Rui Moreira tem vindo a desmantelar algumas das instituições ou
formações culturais mais desafiantes que o Porto viu nascer nos últimos anos: o Fórum do Futuro, a Galeria Municipal,
o Museu da Cidade, o Centro Comercial STOP.
Desde
o dia um do mandato de Rui Moreira que a cultura foi um sector chave da sua
política de financeirização da cidade, isto é, de rentabilização máxima da
forma-urbana a partir da economia do turismo. A cultura assumiu um valor
político-económico fundamental: por um lado, como linha de força de
gentrificação da Baixa, trazendo para edifícios ou áreas à espera da
especulação imobiliária actividades culturais e artísticas, por outro lado,
como linha de legitimação política, ao afirmar um consenso entre elites
artísticas e políticas em torno de um Porto cosmopolita. Esse pacto em torno da
cultura tem uma explicação: na feroz competição pelo turismo mundial era crucial
afirmar uma especificidade cultural própria do Porto que fugisse do popularismo
kitsch e baratucho de Rui Rio. A reabilitação desse tecido cultural era
necessária na construção da marca «Porto Ponto» mesmo que isso implicasse abrir
concessões temporárias a um campo geralmente habitado pela «esquerda» e por
práticas artísticas e culturais «alternativas». Este foi um processo cirúrgico
que foi tolerando algumas presenças, mas basta lembrar os episódios em torno do
Quiosque do Piorio para reconhecer que
houve, desde o início, um profundo mal-estar relativamente a discursos e
práticas que punham em causa a política imobiliária da Câmara Municipal.
Ora,
o encerramento compulsivo do STOP assinala de forma evidente o fim desse pacto
cultural, isto é, o fim da função que foi consignada ao sector da cultura e da
arte no processo de gentrificação e turistificação da cidade, enquanto
gestores temporários da cidade no seu devir-mercadoria. Num momento em que a especulação imobiliária
cobre gloriosamente a totalidade da cidade, tornou-se redundante seguir uma
política desse tipo. Será de recordar que mesmo ali ao lado do centro comercial
STOP, o quarteirão do Palácio Ford tem já em
cima da mesa a construção de uma unidade hoteleira de luxo e habitação
turística, com as habituais quotas mínimas éticas de «habitação
acessível» e «espaços públicos».
Mas
há um outro aspecto que deve ser considerado. O facto de Rui Moreira se manter como
vereador da cultura desde a morte de Paulo Cunha e Silva revela a necessidade deste
em dominar de forma directa as políticas da cultura, mas sobretudo revela um
complexo de inferioridade que se exprime na vontade de encontrar aquilo que se
poderia chamar uma «cultura de direita». Neste sentido, a transmutação do Museu
da Cidade em Museu do Porto — com a saída de Nuno Faria — é paradigmática: ao
manter uma forma (um design) cosmopolita e liberal num conteúdo marcadamente
provinciano e conservador, o liberalismo portuense de Rui Moreira encontra um
modelo de expressão que permite superar todas as contradições ideológicas da
sua própria política urbana. Ora, quanto maior a exaltação soberana da história
da cidade e dos seus valores invictos, mais esta se reduz à condição
anedótica de um parque temático para turistas. Não deixa de ser irónico que aqueles
que abriram a cidade à tabula rasa da especulação imobiliária, que
destruíram quarteirões atrás de quarteirões de património da humanidade, que
fizeram do centro histórico uma colecção kitsch de fachadas desmembradas,
se consignem hoje à posição de arautos da história e dos valores da cidade.
A
história, como a cultura, tem para a direita apenas uma função: a de ser um mito.
E ser um mito significa transfigurar as condições reais da produção num
horizonte simbólico e transcendente. E é precisamente enquanto mito que a
cultura e a história permitem à burguesia do Porto — abusando de uma célebre
formulação de Walter Benjamin — ver a sua própria decadência como um prazer
estético, sonhando com um estatuto social e histórico que já não detém. Que
ambição cultural, aliás, poderia restar a uma classe que está hoje consignada à
condição de arrendatária local do grande capital universal, vivendo e
respirando ignorantemente os slogans da Iniciativa Liberal como a sua
mais magnífica hipótese de redenção?
Mas
não há mito sem violência. E, neste sentido, a utilização soberana do
dispositivo legal e policial no encerramento do Centro Comercial STOP exprime
bem o outro lado de uma certa cultura de direita. Não deixa de ser curioso, também aqui, que sejam aqueles que mais falam de liberdade os primeiros a
outorgar-se ao direito de exercer a violência simbólica e física do Estado; os
primeiros a horrorizarem-se perante práticas culturais que escapam a uma certa
ordenação, a uma certa classificação, a um certo espaço-tempo, como de resto
escrevi a propósito do modelo rizomático do Museu da Cidade.
Muitas
lições num único acontecimento onde aquilo que está em causa não é apenas o
encerramento de umas quantas salas de ensaio para músicos, mas uma luta por
um certo modelo de cidade, ou melhor, por um certo modo de poder fazer cidade —
de poder estar-junto em cidade — e que a todos os títulos parece cada
vez mais incompatível com a gigantesca máquina financeira especulativa que
tomou conta não apenas da cidade, mas da totalidade dos espaços da nossa existência:
da habitação à saúde, da educação à cultura e à música.
•
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Texto
publicado originalmente no Jornal Público.
Imagem
Manifestação
em defesa do Centro Comercial Stop. Via Luís Monteiro.
Ficha
Técnica
Cultura
de direita• Pedro Levi Bismarck
Data
de publicação: 20.07.2023
Edição
#37 • Inverno 2023 •