Cultura de direita • Pedro Levi Bismarck




Uma a uma, Rui Moreira tem vindo a desmantelar algumas das instituições ou formações culturais mais desafiantes que o Porto viu nascer nos últimos anos: o Fórum do Futuro, a Galeria Municipal, o Museu da Cidade, o Centro Comercial STOP.

Desde o dia um do mandato de Rui Moreira que a cultura foi um sector chave da sua política de financeirização da cidade, isto é, de rentabilização máxima da forma-urbana a partir da economia do turismo. A cultura assumiu um valor político-económico fundamental: por um lado, como linha de força de gentrificação da Baixa, trazendo para edifícios ou áreas à espera da especulação imobiliária actividades culturais e artísticas, por outro lado, como linha de legitimação política, ao afirmar um consenso entre elites artísticas e políticas em torno de um Porto cosmopolita. Esse pacto em torno da cultura tem uma explicação: na feroz competição pelo turismo mundial era crucial afirmar uma especificidade cultural própria do Porto que fugisse do popularismo kitsch e baratucho de Rui Rio. A reabilitação desse tecido cultural era necessária na construção da marca «Porto Ponto» mesmo que isso implicasse abrir concessões temporárias a um campo geralmente habitado pela «esquerda» e por práticas artísticas e culturais «alternativas». Este foi um processo cirúrgico que foi tolerando algumas presenças, mas basta lembrar os episódios em torno do Quiosque do Piorio para reconhecer que houve, desde o início, um profundo mal-estar relativamente a discursos e práticas que punham em causa a política imobiliária da Câmara Municipal.

Ora, o encerramento compulsivo do STOP assinala de forma evidente o fim desse pacto cultural, isto é, o fim da função que foi consignada ao sector da cultura e da arte no processo de gentrificação e turistificação da cidade, enquanto gestores temporários da cidade no seu devir-mercadoria.  Num momento em que a especulação imobiliária cobre gloriosamente a totalidade da cidade, tornou-se redundante seguir uma política desse tipo. Será de recordar que mesmo ali ao lado do centro comercial STOP, o quarteirão do Palácio Ford tem já em cima da mesa a construção de uma unidade hoteleira de luxo e habitação turística, com as habituais quotas mínimas éticas de «habitação acessível» e «espaços públicos».

Mas há um outro aspecto que deve ser considerado. O facto de Rui Moreira se manter como vereador da cultura desde a morte de Paulo Cunha e Silva revela a necessidade deste em dominar de forma directa as políticas da cultura, mas sobretudo revela um complexo de inferioridade que se exprime na vontade de encontrar aquilo que se poderia chamar uma «cultura de direita». Neste sentido, a transmutação do Museu da Cidade em Museu do Porto — com a saída de Nuno Faria — é paradigmática: ao manter uma forma (um design) cosmopolita e liberal num conteúdo marcadamente provinciano e conservador, o liberalismo portuense de Rui Moreira encontra um modelo de expressão que permite superar todas as contradições ideológicas da sua própria política urbana. Ora, quanto maior a exaltação soberana da história da cidade e dos seus valores invictos, mais esta se reduz à condição anedótica de um parque temático para turistas. Não deixa de ser irónico que aqueles que abriram a cidade à tabula rasa da especulação imobiliária, que destruíram quarteirões atrás de quarteirões de património da humanidade, que fizeram do centro histórico uma colecção kitsch de fachadas desmembradas, se consignem hoje à posição de arautos da história e dos valores da cidade.

A história, como a cultura, tem para a direita apenas uma função: a de ser um mito. E ser um mito significa transfigurar as condições reais da produção num horizonte simbólico e transcendente. E é precisamente enquanto mito que a cultura e a história permitem à burguesia do Porto — abusando de uma célebre formulação de Walter Benjamin — ver a sua própria decadência como um prazer estético, sonhando com um estatuto social e histórico que já não detém. Que ambição cultural, aliás, poderia restar a uma classe que está hoje consignada à condição de arrendatária local do grande capital universal, vivendo e respirando ignorantemente os slogans da Iniciativa Liberal como a sua mais magnífica hipótese de redenção?

Mas não há mito sem violência. E, neste sentido, a utilização soberana do dispositivo legal e policial no encerramento do Centro Comercial STOP exprime bem o outro lado de uma certa cultura de direita. Não deixa de ser curioso, também aqui, que sejam aqueles que mais falam de liberdade os primeiros a outorgar-se ao direito de exercer a violência simbólica e física do Estado; os primeiros a horrorizarem-se perante práticas culturais que escapam a uma certa ordenação, a uma certa classificação, a um certo espaço-tempo, como de resto escrevi a propósito do modelo rizomático do Museu da Cidade.

Muitas lições num único acontecimento onde aquilo que está em causa não é apenas o encerramento de umas quantas salas de ensaio para músicos, mas uma luta por um certo modelo de cidade, ou melhor, por um certo modo de poder fazer cidade — de poder estar-junto em cidade — e que a todos os títulos parece cada vez mais incompatível com a gigantesca máquina financeira especulativa que tomou conta não apenas da cidade, mas da totalidade dos espaços da nossa existência: da habitação à saúde, da educação à cultura e à música.

 

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).


 Nota de edição

Texto publicado originalmente no Jornal Público.


Imagem

Manifestação em defesa do Centro Comercial Stop. Via Luís Monteiro.

 

Ficha Técnica

Cultura de direita• Pedro Levi Bismarck

Data de publicação: 20.07.2023

Edição #37 • Inverno 2023 •