O
antropólogo francês Philippe
Descola, um dos representantes mais prestigiados da sua disciplina, a nível
internacional, professor emérito do Collège de France (pudemos ouvi-lo
recentemente na Culturgest, onde proferiu uma conferência), foi recentemente
incluído pelo governo francês numa lista de suspeitos e indesejáveis cúmplices
dos “ecoterroristas”, por ter apoiado publicamente o movimento chamado Les
Soulèvements de la Terre, que já conta com mais de cem mil
signatários.
A
figura do “ecoterrorista” está em fase adiantada de construção pelo poder
político (que já conseguiu introduzi-la no léxico da nossa época), com a
colaboração de sectores importantes da opinião publicada nos media. O
“ecoterrorista” é um “activista” num grau mais efectivo e radical, alguém que
passa ao acto não apenas discursivo e simbólico. Não foi difícil deslocar para
este campo o conceito de terrorismo porque se trata de um conceito armadilhado,
desde sempre submetido a um uso flutuante e instrumental.
Atente-se
neste facto: mal foi sentida em Portugal a presença dos “ecoterroristas” que
esvaziam os pneus dos SUV (mas não os vandalizam) e deixam um aviso cordial ao
proprietário a explicar porque o fizeram, logo as forças policiais e os
serviços de intelligence entraram em acção e um clamor de perigo público
atravessou a cidade.
As
máquinas predatórias de energia, dos recursos naturais e do espaço público, ao
serviço de prazeres gratuitos, essas, nem por sombras se considera que elas
relevam de um sistema, de uma maneira terrorista de habitar o planeta. Negá-lo,
reivindicar os prazeres mesquinhos e privados como se não houvesse uma
catástrofe ecológica em curso, é ser cúmplice de um crime de massa. Mas para
esses actos não se aplica a noção de terrorismo nem sequer de delinquência.
Haverá
hoje alguém mais terrorista do que o homem mais rico do mundo, Elon Musk,
dotado de um tal poder que convenceu quase o mundo inteiro de que os seus
carros de duas toneladas e umas centenas de quilos de baterias são a coisa mais
ecológica que há? Tal convicção, acrescente-se, ignora ou faz por ignorar,
entre muitas outras coisas, um recente relatório da Academia francesa das
Ciências e Tecnologias que estima que o programa de veículos eléctricos
franceses para as próximas duas décadas – só ele – reclama quantidades de lítio
e de cobalto que excedem as actuais produções mundiais.
Quem não se cansa de denunciar esta impostura universal é o astrofísico francês Aurélien Barrau, que há menos de um mês foi convidado a discursar no Parlamento Europeu e disse, em tom enfático, ao seu selecto auditório: “Imaginem que disporíamos um dia de uma energia quase limpa e quase infinita. Julgo que seria o pior cenário imaginável. Ganhemos um pouco de distância e raciocinemos para além dos nossos reflexos de engenheiros pavlovianos. O problema maior, insisto, tem que ver com o que fazemos da energia, não com a sua origem. Enquanto a destruição sistemática da vida, a devastação dos fundos marítimos e a erradicação das florestas forem o nosso horizonte (e imaginem que essas actividades são designadas como “crescimento” pelas pessoas sérias que se sentam neste Parlamento), continuaremos a transformar este planeta num dejecto inabitável”. Em suma: mais energia limpa e “verde” significa mais destruição.
A
necessidade de colocar a questão dos fins e não apenas dos meios deveria ser
evidente. Mas não é. Veja-se o modo como o projecto de dessalinizar a água do
mar, no Algarve, cria imediatamente a ideia de que um problema (a falta de
água) fica resolvido. Mesmo ignorando que a dessalinização é um processo
altamente poluente, o problema reside no que se faz com a água. E a lição que
podemos apreender é que a utilização que se faz da água, no Algarve em todo o
lado, tem servido em boa parte para destruir a biodiversidade, para fazer
crescer o deserto.
A
água dessalinizada (tal como a extracção do lítio em Trás-os-Montes) seria uma
boa coisa se não servisse para alimentar os delírios da tecnoengenharia e
preservar o sistema de predação necrófila, ou seja, para ampliar tudo aquilo
que provocou o estado de catástrofe: a vida na terra está a desaparecer, dois
terços da população de insectos, dois terços da população de mamíferos
selvagens, dois terços das populações de árvores já desapareceram.
Colocar
o foco, como está a acontecer, nas alterações climáticas e investir tudo nos
meios para prosseguir os mesmos fins, os de uma máquina exterminadora – isso
sim, é obstinação terrorista.
•
António
Guerreiro
É
ensaísta e crítico do Público/Ípsilon e editor da Revista Electra. Publicou um
volume de ensaios, O Acento Agudo do Presente (Cotovia, 2000) e, mais
recentemente, O demónio das imagens. Sobre Aby Warburg (Língua Morta, 2018).
Tem colaboração dispersa em revistas e volumes colectivos e editou, com Olga
Pombo e António Franco Alexandre, Enciclopédia e Hipertexto (Editora Duarte
Reis, 2006). Fundou com José Gil, Silvina Rodrigues Lopes a revista Elipse.
Walter Benjamin e Aby Warburg (sobre os quais tem vários artigos publicados)
são os dois pontos fortes do seu trabalho nos últimos anos.
Nota
da edição
Este
texto de António Guerreiro foi publicado originalmente no Jornal Público a 16 de Junho de 2023.
Imagem
Manifestações
do movimento Les Soulèvements de la Terre. Imagem via Actu.fr.
Ficha
técnica
«“Ecoterroristas”
são os outros» • António Guerreiro
Data
de publicação • 11.07.2023
Edição
#39 • Verão 2023