Futuros-outros • Godofredo Enes Pereira





Tendo em conta as bem conhecidas estruturas políticas e financeiras que subjazem ao mundo das bienais e trienais de arquitectura, é impossível tentar uma reflexão sobre os conteúdos de qualquer um destes eventos sem considerar as suas condições de produção. São frequentes as contradições entre compromissos ético-políticos patentes nas peças e discursos expositivos, e os processos que lhes subjazem, quer seja ao nível laboral, de remuneração, práticas de curadoria ou políticas das instituições que as promovem. Sendo que tais contradições revelam uma boa dose de cinismo ou ‘elite capture’, não deixa de ser verdade que as bienais são também palco de importantes lutas pelo futuro do campo, pois tendo uma grande visibilidade pública, tornam-se espaços a partir dos quais se podem promover mudanças alargadas. A mais recente Bienal de Veneza de Arquitectura, inaugurada a 17 de Maio, é nesse sentido, um interessante exemplo.

Com curadoria de Leslie Lokko, a Bienal focou pela primeira vez a produção arquitectónica africana e da diáspora africana, através do tema Laboratório do Futuro. A ideia era que África é o continente com uma população mais nova, assim como aquele a partir do qual se pode melhor pensar como enfrentar as principais lutas do futuro, nomeadamente anti-racismo, descolonização e justiça climática. E desde logo, por quase todos os espaços da bienal — desde exposição principal a pavilhões nacionais — claramente se evidenciou uma atenção à dimensão política e social da arquitectura. Se pelo mundo fora se reconhece uma ressurgência da extrema-direita, há que notar que esta tem dedicado crescente atenção ao campo da produção cultural, da academia, da investigação e da arte, enquanto locais centrais de disputa sobre as subjectividades, sobre o senso-comum, e sobre o futuro. Neste contexto, muitas das contribuições para a bienal posicionaram-se directamente com estas lutas em mente. Não faltaram reflexões e investigações sobre a participação histórica da arquitectura em processos coloniais, de segregação e exploração racista, em diversos sistemas prisionais, sobre o impacto ambiental negativo do planeamento urbano moderno ou sobre a sua dependência da extracção de recursos florestais e minerais, entre outros. E não apenas de uma perspectiva crítica, reconhecendo impactos passados, mas principalmente através de especulações e reflexões sobre a possível participação da arquitectura em processos com vista a gerar um outro tipo de futuros.

A bienal pautou-se pela presença de arquitectos e artistas de gerações mais novas, assim como de grupos tipicamente desconsiderados enquanto agentes de pensamento arquitectónico ou artístico legítimo, nomeadamente comunidades indígenas, organizações populares, artesãos, agricultores, ou claro, as mais diversas diásporas, não só africanas, mas de todo o sul global. Talvez devido a escolhas ditadas pela temática específica desta bienal, ou reflexo de uma real mudança no campo da arquitectura, a maioria das propostas demonstraram estar pouco interessadas em obedecer aos limites da encomenda pública e do mercado imobiliário. Ao invés do discurso de ‘prestação de serviços’, notou-se a vontade de pensar modos de coexistência neste planeta. Veja-se a colaboração da Forensic Architecture com David Wengrow, a Nebelivka Hypothesis, que continua o trabalho que este desenvolveu com David Graeber em The Dawn of Everything investigando a arqueologia de povoados de grandes dimensões que aparentemente conseguiram evitar a formação de hierarquias sociais ou de uma classe administrativa. Ou vejam-se as reflexões sobre a dependência extractivista do mundo da arquitectura patentes no pavilhão Espanhol e Alemão ou nos trabalhos de Thandi Loewenson e Margarida Waco. Ou ainda as explorações de ecologias colectivas, patentes nos trabalhos de Dele Adeyemo, de Arinjoy Sen ou de Ibyie Camp, para referir apenas algumas das múltiplas linhas de fuga ao que mais comumente se vê em exposições de arquitectura. A exibição da revista The Funambulist, editada por Léopold Lambert, que tem nos últimos anos servido como a principal infra-estrutura de apoio a pensamento e práticas anticoloniais na arquitectura, captura muito do contexto e das tentativas de mudança de paradigma que subjazem a esta exposição.

Também o pavilhão de Portugal, que sob o título de Futuros Férteis foi comissariado por Andreia Garcia, Ana Neiva e Diogo Aguiar, reconheceu a importância de olhar para o território e para conflitos em torno da água e dos solos, o que, do ponto de vista do que deveria ser o futuro da profissão, é fulcral. Só que no melhor pano cai a nódoa, e neste caso, foi problemática a decisão de convidar o ex-ministro do ambiente e clima João Pedro Matos Fernandes para participar numa das equipas. Matos Fernandes foi o ministro que promoveu o plano de fomento mineiro em Portugal, abrindo todo o país a mineração do lítio. A sua actuação deixou poucos amigos em populações e grupos ambientalistas. Mas, se esta escolha foi problemática, pior mesmo, foi a recusa da equipa de curadoria em explicar a decisão, depois de ter sido informada por múltiplas pessoas — incluindo o autor deste artigo e representantes de movimentos populares — sobre o modo como tal decisão estava a ser recebida pelas populações que há tantos anos estão em luta pela defesa de territórios e ecossistemas (como são as populações do Barroso que estão a enfrentar dezenas de projectos de mineração na região). Se remover a participação do ex-ministro não era possível, ou não desejado (?), seria pelo menos possível reconhecer e dignar aqueles cujas vidas vão ser dramaticamente afectadas, com uma resposta ou uma declaração. Construir futuros férteis em arquitectura deveria implicar reconhecer as comunidades em luta pela defesa dos territórios. Assobiar para o lado quando não dá jeito chamar atenção negativa para uma exposição, não é sinal de real interesse em mudar o modo como se fazem as coisas.

Não se trata só deste caso no pavilhão português. Por toda a Bienal de Veneza não será difícil encontrar exemplos de cinismo ou de apropriação de temáticas ‘políticas’ sem dedicação real às causas que lhes subjazem. Contudo, ressalto que a atribuição dos dois prémios principais, não pode senão ser vista como o reconhecimento de lutas reais, que existem muito para além do campo da arquitectura. Ao nível do melhor projecto expositivo foi premiado o projecto Ente di Decolonizzazione — Borgo Rizza de DAAR, de Sandi Hilal e Alessandro Petti. DAAR, que tem vindo há mais de uma década a explorar pedagogias anticoloniais na Palestina, e tendo-se mantido sempre fora dos principais circuitos mediáticos, apresentam aqui um projecto no sul de Itália, onde exploram a descolonização da arquitectura fascista, através da sua profanação e reuso. No contexto do actual governo de extrema-direita em Itália, a atribuição deste prémio não passou despercebida. Já o prémio para melhor pavilhão nacional foi dado ao Brasil, com curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares, que sob o tema de Terra, expôs as práticas espaciais e territorialidades dos muitos mundos que fazem o Brasil, desde as arquitecturas dos povos originários, aos quilombos e terreiros do candomblé de populações escravizadas, partindo da terra para trazer para o mesmo palco lutas ecológicas e urbanas do Brasil, do terreiro à terra preta, alianças estas necessárias para um futuro que se quer ancestral — tal como enunciado por Ailton Krenak. Ao contrário do que muitas vezes acontece, quando a arte e a academia desenvolvem uma relação extractiva com o mundo, pouco depois da entrega dos prémios em Veneza este mesmo Leão de Ouro foi apresentado ao Terreiro da Casa Branca, em Salvador, entregue a Iyá Neuza de Xangô. Desta maneira se homenageou quem, no seu dia-a-dia, luta pela possibilidade de outros mundos.

Bienais e trienais de arquitectura, apesar de todos os seus problemas, permitem um espaço de disputa sobre ideias e praticas que de outra maneira teriam mais dificuldades em ser vistas, reconhecidas e por isso mesmo, em fazer comunidade com tantas outras. Como sempre, os projectos mais interessantes são aqueles que já estavam em andamento muito antes, e continuaram muito depois, da exposição ela mesma: lutas por modos de existência, na sua dimensão ético-estética. Isto porque no mundo, não faltam futuros férteis, futuros outros. Mas é preciso querer vê-los, demonstrando humildade, no sentido original do termo, de uma proximidade ao húmus, isto é, às pessoas e a todas as outras entidades, humanas ou não, que cuidam a capacidade reprodutiva e criativa da terra.

 

 

Godofredo Enes Pereira

Godofredo Enes Pereira é arquitecto e investigador. É director do MA Environmental Architecture no Royal College of Art, em Londres.

 

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João Veloso

 

Ficha técnica

Futuros-outros • Godofredo Enes Pereira

Data de publicação • 17.07.2023

Edição #39 • Verão 2023