Tendo
em conta as bem conhecidas estruturas políticas e financeiras que subjazem ao
mundo das bienais e trienais de arquitectura, é impossível tentar uma reflexão
sobre os conteúdos de qualquer um destes eventos sem considerar as suas
condições de produção. São frequentes as contradições entre compromissos
ético-políticos patentes nas peças e discursos expositivos, e os processos que
lhes subjazem, quer seja ao nível laboral, de remuneração, práticas de
curadoria ou políticas das instituições que as promovem. Sendo que tais
contradições revelam uma boa dose de cinismo ou ‘elite capture’, não
deixa de ser verdade que as bienais são também palco de importantes lutas pelo
futuro do campo, pois tendo uma grande visibilidade pública, tornam-se espaços
a partir dos quais se podem promover mudanças alargadas. A mais recente Bienal
de Veneza de Arquitectura, inaugurada a 17 de Maio, é nesse sentido, um
interessante exemplo.
Com
curadoria de Leslie Lokko, a Bienal focou pela primeira vez a produção arquitectónica
africana e da diáspora africana, através do tema Laboratório do Futuro.
A ideia era que África é o continente com uma população mais nova, assim como
aquele a partir do qual se pode melhor pensar como enfrentar as principais
lutas do futuro, nomeadamente anti-racismo, descolonização e justiça climática.
E desde logo, por quase todos os espaços da bienal — desde exposição principal
a pavilhões nacionais — claramente se evidenciou uma atenção à dimensão
política e social da arquitectura. Se pelo mundo fora se reconhece uma
ressurgência da extrema-direita, há que notar que esta tem dedicado crescente
atenção ao campo da produção cultural, da academia, da investigação e da arte,
enquanto locais centrais de disputa sobre as subjectividades, sobre o
senso-comum, e sobre o futuro. Neste contexto, muitas das contribuições para a
bienal posicionaram-se directamente com estas lutas em mente. Não faltaram
reflexões e investigações sobre a participação histórica da arquitectura em
processos coloniais, de segregação e exploração racista, em diversos sistemas
prisionais, sobre o impacto ambiental negativo do planeamento urbano moderno ou
sobre a sua dependência da extracção de recursos florestais e minerais, entre
outros. E não apenas de uma perspectiva crítica, reconhecendo impactos
passados, mas principalmente através de especulações e reflexões sobre a
possível participação da arquitectura em processos com vista a gerar um outro
tipo de futuros.
A
bienal pautou-se pela presença de arquitectos e artistas de gerações mais
novas, assim como de grupos tipicamente desconsiderados enquanto agentes de
pensamento arquitectónico ou artístico legítimo, nomeadamente comunidades
indígenas, organizações populares, artesãos, agricultores, ou claro, as mais
diversas diásporas, não só africanas, mas de todo o sul global. Talvez devido a
escolhas ditadas pela temática específica desta bienal, ou reflexo de uma real
mudança no campo da arquitectura, a maioria das propostas demonstraram estar
pouco interessadas em obedecer aos limites da encomenda pública e do mercado
imobiliário. Ao invés do discurso de ‘prestação de serviços’, notou-se a
vontade de pensar modos de coexistência neste planeta. Veja-se a colaboração da
Forensic Architecture com David Wengrow, a Nebelivka Hypothesis, que
continua o trabalho que este desenvolveu com David Graeber em The Dawn of
Everything investigando a arqueologia de povoados de grandes dimensões que
aparentemente conseguiram evitar a formação de hierarquias sociais ou de uma
classe administrativa. Ou vejam-se as reflexões sobre a dependência extractivista
do mundo da arquitectura patentes no pavilhão Espanhol e Alemão ou nos
trabalhos de Thandi Loewenson e Margarida Waco. Ou ainda as explorações de
ecologias colectivas, patentes nos trabalhos de Dele Adeyemo, de Arinjoy Sen ou
de Ibyie Camp, para referir apenas algumas das múltiplas linhas de fuga ao que
mais comumente se vê em exposições de arquitectura. A exibição da revista The
Funambulist, editada por Léopold Lambert, que tem nos últimos anos servido
como a principal infra-estrutura de apoio a pensamento e práticas anticoloniais
na arquitectura, captura muito do contexto e das tentativas de mudança de
paradigma que subjazem a esta exposição.
Também
o pavilhão de Portugal, que sob o título de Futuros Férteis foi
comissariado por Andreia Garcia, Ana Neiva e Diogo Aguiar, reconheceu a
importância de olhar para o território e para conflitos em torno da água e dos
solos, o que, do ponto de vista do que deveria ser o futuro da profissão, é
fulcral. Só que no melhor pano cai a nódoa, e neste caso, foi problemática a
decisão de convidar o ex-ministro do ambiente e clima João Pedro Matos
Fernandes para participar numa das equipas. Matos Fernandes foi o ministro que
promoveu o plano de fomento mineiro em Portugal, abrindo todo o país a mineração
do lítio. A sua actuação deixou poucos amigos em populações e grupos
ambientalistas. Mas, se esta escolha foi problemática, pior mesmo, foi a recusa
da equipa de curadoria em explicar a decisão, depois de ter sido informada por
múltiplas pessoas — incluindo o autor deste artigo e representantes de
movimentos populares — sobre o modo como tal decisão estava a ser recebida
pelas populações que há tantos anos estão em luta pela defesa de territórios e
ecossistemas (como são as populações do Barroso que estão a enfrentar dezenas
de projectos de mineração na região). Se remover a participação do ex-ministro
não era possível, ou não desejado (?), seria pelo menos possível reconhecer e
dignar aqueles cujas vidas vão ser dramaticamente afectadas, com uma resposta ou
uma declaração. Construir futuros férteis em arquitectura deveria implicar
reconhecer as comunidades em luta pela defesa dos territórios. Assobiar para o
lado quando não dá jeito chamar atenção negativa para uma exposição, não é
sinal de real interesse em mudar o modo como se fazem as coisas.
Não
se trata só deste caso no pavilhão português. Por toda a Bienal de Veneza não
será difícil encontrar exemplos de cinismo ou de apropriação de temáticas
‘políticas’ sem dedicação real às causas que lhes subjazem. Contudo, ressalto
que a atribuição dos dois prémios principais, não pode senão ser vista como o
reconhecimento de lutas reais, que existem muito para além do campo da arquitectura.
Ao nível do melhor projecto expositivo foi premiado o projecto Ente di Decolonizzazione
— Borgo Rizza de DAAR, de Sandi Hilal e Alessandro Petti.
DAAR, que tem vindo há mais de uma década a explorar pedagogias anticoloniais
na Palestina, e tendo-se mantido sempre fora dos principais circuitos
mediáticos, apresentam aqui um projecto no sul de Itália, onde exploram a
descolonização da arquitectura fascista, através da sua profanação e reuso. No
contexto do actual governo de extrema-direita em Itália, a atribuição deste
prémio não passou despercebida. Já o prémio para melhor pavilhão nacional foi
dado ao Brasil, com curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares, que sob o
tema de Terra, expôs as práticas espaciais e territorialidades dos
muitos mundos que fazem o Brasil, desde as arquitecturas dos povos originários,
aos quilombos e terreiros do candomblé de populações escravizadas, partindo da
terra para trazer para o mesmo palco lutas ecológicas e urbanas do Brasil, do
terreiro à terra preta, alianças estas necessárias para um futuro que se quer
ancestral — tal como enunciado por Ailton Krenak. Ao contrário do que muitas
vezes acontece, quando a arte e a academia desenvolvem uma relação extractiva
com o mundo, pouco depois da entrega dos prémios em Veneza este mesmo Leão de
Ouro foi apresentado ao Terreiro da Casa Branca, em Salvador, entregue a Iyá
Neuza de Xangô. Desta maneira se homenageou quem, no seu dia-a-dia, luta pela
possibilidade de outros mundos.
Bienais
e trienais de arquitectura, apesar de todos os seus problemas, permitem um
espaço de disputa sobre ideias e praticas que de outra maneira teriam mais
dificuldades em ser vistas, reconhecidas e por isso mesmo, em fazer comunidade
com tantas outras. Como sempre, os projectos mais interessantes são aqueles que
já estavam em andamento muito antes, e continuaram muito depois, da exposição
ela mesma: lutas por modos de existência, na sua dimensão ético-estética. Isto
porque no mundo, não faltam futuros férteis, futuros outros. Mas é preciso
querer vê-los, demonstrando humildade, no sentido original do termo, de
uma proximidade ao húmus, isto é, às pessoas e a todas as outras entidades,
humanas ou não, que cuidam a capacidade reprodutiva e criativa da terra.
Godofredo
Enes Pereira
Godofredo
Enes Pereira é arquitecto e investigador. É director do MA Environmental
Architecture no Royal College of Art, em Londres.
Imagem
João Veloso
Ficha
técnica
Futuros-outros
• Godofredo Enes Pereira
Data de
publicação • 17.07.2023
Edição
#39 • Verão 2023