«Dizem-me que sou estúpido porque peguei fogo à mediateca» — Uma resposta a Carmo Afonso • Luhuna Carvalho





Um artigo recente de Carmo Afonso sobre os enésimos motins em França, desta vez após mais um assassinato de um jovem às mãos da polícia, contém uma frase que poderia servir de resumo à crise da esquerda. Carmo Afonso analisa os excessos da acção policial explicando a raiva aparentemente selvagem e irracional dos insurrectos à luz da violência que lhes é infligida quotidianamente. Até aqui tudo bem.  Mas Carmo Afonso não resiste a acrescentar que “O instinto revolucionário que [os manifestantes] demonstram ter peca por excesso na actuação e por defeito no pensamento ideológico. É por isso que não conseguem fazer uma verdadeira revolução, apenas motins.” Se a direita observa os motins e vê apenas “selvagens” e “criminosos”, há uma certa esquerda que parece ver apenas “ignorantes”, demonstrando que não basta usar terminologia “descolonizante” para evitar um certo paternalismo. A raiva, não obstante ser justa e compreensível, é primária, porque se expressa de uma forma destrutiva e não através do repertório político e organizativo que a esquerda tem enquanto eficaz.

Vale a pena atentar com demora na frase. As acções pecam “por excesso”, ou seja, a destruição e as pilhagens são contraproducentes. Antes de perguntar qual seria a medida razoável da expressão da raiva cabe olhar para as últimas décadas, onde uma e outra vez segmentos significantes das populações racializadas escolhem confrontar a violência a que são sujeitas através de motins e pilhagens. Watts em 1965, Newark em 1967, Brixton em 1981, Los Angeles em 1992, Paris em 2005, Estados Unidos em 2021. Revoltas históricas que obrigaram as suas sociedades a confrontar o seu racismo, que produziram formas de solidariedade comunitária que persistiram para além delas, que criaram imaginários artísticos que são ainda hoje hegemónicos. Todas elas foram na sua altura consideradas irrupções da barbárie na racionalidade do discurso político, todas elas foram na sua altura consideradas excessivas pela esquerda do seu tempo.

Comparemos a inteligência colectiva e histórica que se expressa nessas explosões sociais com a da esquerda contemporânea, incapaz de se expressar para além do ultraje e da indignação nas redes sociais, ancorada a partidos que lutam para sobreviver, a uma ideia de participação e representatividade hiper-institucional e a um folclore activista auto-referencial e impotente. O pensamento conservador, e também o progressista, sempre olhou com desconfiança para as insurreições. Vê nelas a concretização da ameaça sempre presente da dissolução da ordem e do regresso a um selvagem estado de natureza. É esse olhar que impede a apreensão do que ocorre nesses momentos, na compreensão da filigrana de solidariedades, cumplicidades, conspirações, decisões tácticas, e encontros que ocorre dentro deles. Que as acções sejam “excessivas” não é sinal de ignorância, é sinal de inteligência, de uma inteligência que parece ser hoje impossível de compreender.

Continuando, Carmo Afonso refere que os manifestantes pecam também por defeito no “pensamento ideológico”. Aqui o paternalismo latente torna-se ainda mais evidente. Não é claro a que “pensamento ideológico” se refere Carmo Afonso. Devia o proletariado racializado dos banlieues ler as sebentas amareladas do materialismo dialéctico, as únicas onde ainda se usa a expressão “pensamento ideológico”? Como sempre a afirmação da ignorância dos outros serve apenas para deixar explícita a nossa própria ignorância. Todas estas formas de espontaneismo proletário foram tema central da filosofia política dos últimos 50 anos. Toda a filosofia política de esquerda do pós-guerra teve, de um modo ou de outro, de se confrontar com o aumento das explosões sociais não mediadas por instituições, ou seja, teve de encontrar modos de conceptualizar a inteligência colectiva que surge nestes momentos de revolta.

É natural que para a esquerda portuguesa, cuja especificidade histórica e política é a sua absoluta devoção anacrónica à ideia de estado e de progresso, a destruição de equipamentos municipais seja vista enquanto um acto de niilismo absoluto. É por isso que Carmo Afonso termina o seu artigo dizendo que é esta ignorância plebeia a impedir “uma verdadeira revolução”. Resta perguntar o que seria essa “verdadeira revolução”. Carmo Afonso é omissa, mas podemos presumir que esta passaria por um exercício mais humano e mais eficaz da função repressiva do Estado. Lamentamos, mas se a “verdadeira revolução” é pedir a regularização ética do funcionamento do capitalismo então que venham os motins, as suas contradições, os seus perigos e os seus excessos — porque é dentro das revoltas que são engendrados os caminhos de superação do presente. A esquerda contemporânea, em geral, tem uma enorme simpatia pelos danados da terra mas não consegue entender porque é que essa simpatia não é retribuída, ou seja, não consegue compreender porque é que esse proletariado periférico permanece absolutamente indiferente aos bons sentimentos da pequeno-burguesia cosmopolita.

Um livro recente ajuda a compreender o que se passa entre as ruas barricadas e as bibliotecas em chamas. O filósofo Dinamarquês Søren Mau publicou este ano “Mute Compulsion” na editora britânica Verso, um resumo competente dos debates contemporâneos sobre o exercício de um poder especificamente capitalista. O capitalismo reproduz-se utilizando a violência, a alienação e a exploração, certo, mas há um outro elemento que lhe é historicamente específico. O capital perpetua-se criando infra-estruturas e meios que dirigem, controlam e organizam a reprodução social dos sujeitos que nelas vivem. O que obriga cada um de nós a apresentar-se cada manhã no seu local de trabalho não é uma arma apontada à nuca mas a impossibilidade material de sobreviver fora do sistema capitalista, é essa a “obrigação silenciosa” que dá título ao livro. Se esta infra-estrutura de estradas, polícia, bibliotecas e planificação urbana serve a organizar a exploração, ela serve também a organizar a exclusão. Se ela serve para gerir a população activa, ela serve também para gerir a população excedentária. O que isto quer dizer é que a polícia e as bibliotecas municipais fazem parte do mesmo aparato estatal de gestão das populações excedentárias. São duas faces de um mesmo estado, de um mesmo sistema, de uma mesma organização sistemática da repressão e da exploração.

Sobre isto cabe mencionar um artigo saído no mesmo dia do de Carmo Afonso, chamado Porque é que queimei a mediateca, assinado por Heitor O’dwyer Macedo, psicanalista e encenador franco-brasileiro, onde este cita um participante nas revoltas:

“Dizem-me que queimar a mediateca foi um acto autodestrutivo. Dizem-me que sou estúpido. Dizem-me que sou capitalista porque parti as vitrines da NIKE e porque roubei uma dúzia de pares de ténis. Sou estúpido porque peguei fogo à Mediateca, mas se o ministro do interior que já visitou certamente muitas mediatecas e muitas bibliotecas em resposta à indignação da juventude nacional, dos pobres, do árabes, dos negros, dos generosos, indignados contra a polícia que matou outro miúdo, não tem nada a dizer senão que vai meter mais 45000 polícias na rua, mais os blindados, mais o armamento pesado, mais os seus snipers, ele que já foi a muitas bibliotecas e mediatecas, então de que serve ir à mediateca?”

A racionalidade dos motins, a sua inteligência colectiva, torna-se então evidente. Trata-se de intervenções directas sobre esses aparatos de controle social, que apontam a uma apropriação imediata do espaço. Não concretizam a revolução? Claro que não, mas é intelectualmente desonesto exigir que as expressões políticas de quem se subleva cumpram os requisitos que toda a política de esquerda se demitiu de pensar nas últimas décadas.

O que Mau expressa na linguagem rarefeita do materialismo histórico e da crítica da economia política é evidente para qualquer proletário que habite os limites do capitalismo moderno, mas não para grande parte da esquerda contemporânea. Resta saber de que lado está então a ignorância, os defeitos e os excessos. Os proletários não votam na esquerda, não se sindicalizam, não se inscrevem no micro-colectivo marxista, não assinam o jornal Público? Talvez isso diga mais sobre cada uma dessas instituições do que sobre eles. Talvez essa recusa seja o primeiro sinal de inteligência e de consistência de “pensamento ideológico”, para usar os termos de Carmo Afonso.

 

 

Luhuna Carvalho

Lisboa (1980). Estudou Cinema em Barcelona. Fez um estágio em Nova Iorque. Mestrado na FCSH. Universidade Nova de Lisboa. Doutoramento no Centre for Research on Modern European Philosophy, Kingston University, Londres. Autor de Depois da Lei, Língua Morta, 2022.

 

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Remi Moons

 

Ficha técnica

«Dizem-me que sou estúpido porque peguei fogo à mediateca» — Uma resposta a Carmo Afonso» • Luhuna Carvalho

Data de publicação • 04.07.2023

Edição #39 • Verão 2023