Corpo, Território e Resistência • Camila Lobo





No próximo dia 8 de Março, data em que se celebram as lutas e movimentos de libertação de mulheres, com quem estaremos solidárias? Mais do que nunca, é imperativo marchar pelas mulheres palestinianas — as que habitam os territórios ocupados, as que vivem como refugiadas dentro e fora da Palestina histórica, as que compõem a diáspora palestiniana, as que enfrentam o genocídio e limpeza étnica do seu povo. É fundamental centrar as suas vozes. Perante o feminismo liberal ocidental – o feminismo de Hillary Clinton e de Kamala Harris, que declara que «women’s rights are human rights», mas parece excluir a esmagadora maioria das mulheres dessa categoria —, as mulheres palestinianas impõem-se como personificação da resistência ao mais vil regime colonial.

O estado sionista, como qualquer estado colonial, depende de uma lógica eminentemente patriarcal para a sua sobrevivência. Em Greater Than the Sum of Our Parts (2023), Nada Elia argumenta que as autoridades sionistas encaram as mulheres palestinianas como uma «ameaça demográfica», relatando, em detalhe, o modo como os seus direitos reprodutivos são sistematicamente violados e como a própria «maternidade é politizada».

Em 1967, aquando da ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, Israel deixou de emitir licenças para as dayat, parteiras palestinianas, forçando as mulheres grávidas a recorrer aos hospitais israelitas. Longe de melhorar a qualidade dos cuidados de saúde maternos e infantis, esta imposição resultou numa perda de autonomia, de segurança e de dignidade no parto. As palestinianas passam a ser detidas nos checkpoints israelitas em pleno trabalho de parto, multiplicam-se as histórias de mulheres que dão à luz ali mesmo ou na berma da estrada, somam-se vidas perdidas por falta de cuidados neonatais.

A política reprodutiva de Israel é só uma face da natureza patriarcal da ocupação colonial. São bem conhecidos os casos de violação por milícias armadas aquando da Nakba de 1948 — é o próprio David Ben-Gurion quem o relata nos seus diários de guerra, mas veja-se a este respeito também o documentário «Tantura» de 2022 – e, desde então, acumulam-se relatos de violência e abuso sexual nas prisões israelitas.

Menos conhecida é a forma como as autoridades sionistas mobilizam fantasias e ansiedades patriarcais para chantagear, manipular e controlar a população palestiniana, procurando quebrar laços comunitários e familiares. Os mesmos laços que sustentam décadas de resistência. O livro de Elia descreve alguns destes casos: sob ameaça de denúncia de crimes de “honra” — ou seja, sob chantagem —, mulheres e pessoas queer vêem-se forçadas a tornar-se colaboradoras do regime, sujeitas a posições de vulnerabilidade acrescida.

Que as autoridades sionistas não hesitem em mobilizar ferramentas sexistas e homofóbicas em benefício do regime é tão mais bizarro quanto Israel se autoproclama o último reduto de progressismo, defensor das mulheres e da comunidade LGBTQI+. As campanhas de pinkwashing da «única democracia do Médio Oriente» são bem conhecidas. Trata-se de uma nova versão da antiga narrativa colonial que contrapunha civilizados a bárbaros, i.e. amigos a inimigos, numa tentativa de branquear os seus crimes e ocultar o seu próprio papel na perpetuação de lógicas patriarcais.

Até Outubro de 2023, as mulheres de Gaza viviam sob um bloqueio económico e militar que lhes negava cuidados de saúde adequados, as impedia de alimentar e educar as suas filhas e filhos com dignidade, e as privava de liberdade. Desde então, enfrentam a mais cruel forma de violência às mãos do estado de Israel — um genocídio que, à data do frágil cessar-fogo acordado em Janeiro, tinha matado mais de 62.000 pessoas (uma estimativa que não inclui mortes indirectas).

Durante os últimos dezassete meses, cerca de dois milhões de seres humanos viveram sob a ameaça constante de novo bombardeamento, novo massacre, nova deslocação forçada, a que se somaram condições de crescente insalubridade, de doença e de fome. As mulheres de Gaza continuam hoje sem acesso a produtos menstruais e a cuidados hospitalares na gravidez e no parto, estando por isso desproporcionalmente expostas ao risco de doenças e infecções, e forçadas a fazer cesarianas sem recurso a anestesia. Entretanto, somam-se testemunhos de abusos contra mulheres palestinianas nas prisões coloniais, bem como relatos de negligência médica, revistas íntimas, privação alimentar e violência psicológica. Contra todas as probabilidades, elas resistem.

No contexto hipermilitarizado do regime colonial sionista, raras vezes ouvimos falar do papel central das mulheres na resistência palestiniana. E, no entanto, elas estiveram na linha da frente da luta anticolonial desde os protestos contra o Mandato Britânico da Palestina nos anos 20 do século passado. Durante a Primeira Intifada, entre 1987 e 1993, elas foram o epicentro das redes de resistência clandestina, assumindo responsabilidades pelos cuidados de saúde, pela educação e alimentação dos jovens em protesto.

Perante tentativas sistemáticas de subjugação, elas continuam a resistir até aos dias de hoje, defendendo a sua terra e as suas casas das forças ocupantes e coloniais, defendendo as suas filhas, filhos e comunidades alargadas. Perante o espectro da putrefacção e da morte, e parafraseando a poeta Rafeef Ziadah, as mulheres palestinianas «ensinam vida».

Desengane-se quem pensa que esta é uma forma de resistência puramente auto-sacrificial. É também por si e pela sua libertação que as mulheres palestinianas lutam. Em 2019, o grupo feminista Tal’at saía às ruas sob o slogan «A nossa terra não será livre sem a libertação das mulheres». Herdeiro de uma tradição feminista internacionalista e revolucionária, o colectivo insiste na importância de reconhecer a intersecção de lógicas coloniais, patriarcais e capitalistas num mesmo sistema que oprime o povo palestiniano e, em particular, as mulheres palestinianas. É na revolução feminista que Tal’at deposita a esperança para a construção de um novo mundo, livre e descolonizado.

Em vez de reproduzir estereótipos orientalistas, saibamos também nós imaginar o que esse mundo novo pode ser. Sejamos capazes de escutar as mulheres palestinianas, de apoiar as reivindicações das feministas que aí se organizam. Antes de fazermos justiça à palavra de ordem «Ninguém Será Livre Até Todas Sermos Livres», possamos compreendê-la. O que exige de nós?

Perante o discurso pseudo-feminista das porta-vozes do colonialismo contemporâneo — que também infestam o nosso burgo —, saibamos impor uma força feminista anti-imperialista, anti-racista e decolonial. A libertação das mulheres, na Palestina e em Portugal, não é possível sem o desmantelamento do capitalismo global que explora as suas capacidades reprodutivas, que as empurra para a invisibilidade do espaço doméstico, que as discrimina nos sectores produtivos e no espaço público, que incita a sua subjugação e tolera a violação dos seus corpos.

No próximo dia 8 de Março, saímos à rua para reafirmar um compromisso feminista fundamental: nem uma a menos. Honrá-lo significa não deixar ninguém para trás, observar cuidadosamente a forma como diferentes regimes de dominação se interseccionam, tomar consciência do verdadeiro significado das nossas reivindicações, e apoiar a resistência feminista, onde quer que ela surja. Que fique então claro para quem gostaria que o feminismo fosse uma força dócil e conivente: quando saímos à rua por todas nós, saímos em solidariedade com as mulheres palestinianas. Posicionamo-nos, por isso, pelo fim do regime colonial sionista e por uma Palestina livre.

 

 

Camila Lobo

Camila Lobo é activista e investigadora em Filosofia no IFILNOVA (Universidade Nova de Lisboa). Trabalha em epistemologia social e filosofia da linguagem e interessa-se pelo modo como formas dominantes de organização social moldam processos de formação de linguagem e de produção de conhecimento. Procura as brechas e as lacunas.

 

Imagem

Jocelyne Saab, imagem do documentário «Palestinian women», 1974.

 

Ficha Técnica

«Corpo, Território e Resistência» • Camila Lobo

Data de publicação: 05.03.2025

Edição #43 • Inverno 2025 •