A moralização da política • Pedro Levi Bismarck





1. Num outro texto, escrito na sequência da «Operação Influencer», procurei situar este caso a partir de dois aspectos que apareciam já como fundamentais: a figura do lobby no quadro da democracia liberal e o problema do lítio nas novas «economias verdes». Mas o debate que entretanto foi suscitado, torna oportuno acrescentar mais algumas notas de reflexão relativamente ao primeiro aspecto.

Podemos dizer que o lobby — ou lobbying — é uma espécie de princípio constitutivo da democracia liberal, ao instaurar um espaço onde o domínio do público e do privado se tornam indistintos e intercambiáveis, isto é, onde os interesses do privado se tornam os interesses do público e os interesses do público se tornam os interesses do privado. A constituição do Estado moderno liberal assenta numa operação que consiste em fazer do interesse económico privado do capitalismo o interesse público da sociedade no seu todo. O Estado é o meio que legitima a vontade do capital enquanto vontade geral — não por meio da violência — que seria apanágio de um regime ditatorial — mas através desse jogo que dá pelo nome de lobby e que define, com a ideia de consenso, o espaço político da governação.

Daí a grande atracção do capitalismo pela figura arquitectónica do lobby (átrio). Walter Benjamin notara já que o centro da Ópera de Paris não era o palco, mas o grande átrio onde a nova burguesia recém-chegada ao poder observava e era observada. E, no entanto, a especificidade desse lobby não estava apenas na capacidade de constituir um regime de representação individual e colectivo da burguesia enquanto classe, mas de instaurar um tipo específico de espaço — nem público nem privado — onde a máxima visibilidade, longe de corresponder a um desejo de transparência, fixava-se num jogo oblíquo de luzes e sombras, silêncios e murmúrios.

 

2. Ora, o que a «Operação Influencer» coloca como problema não é exactamente aquilo a que se tem vindo a chamar uma «politização da justiça» ou uma «judicialização da política», mas algo mais fundamental: é o paradoxo fundador de todo um modelo de democracia que se legitima, na teoria, enquanto representação política de todos, mas que, na prática, é a representação económica dos interesses privados do capitalismo. A acusação segundo a qual o Ministério Público «não compreende a dinâmica da governação» é interessante, porque aquilo que ela subentende é que a governação só é possível na medida em que existe num espaço de indistinção que não está nem dentro nem fora da legalidade: está para além de. E, de facto, como poderia estar, se a governação assenta precisamente nessa transubstanciação divina, nesse comércio, entre privado e público, obscurecendo a categorização formal do espírito da lei? Se estamos numa «crise de regime» é porque aquilo que se expõe neste caso é a contradição, de facto, entre a teoria e a prática da democracia liberal, onde o «power of the people for the people» é, na verdade, consumado como o «power of the money for the money».

E, no entanto, aquilo que, também aqui, se expõe irremediavelmente é a própria condição paradoxal de uma justiça que ao interpelar directamente o poder que a legisla não pode senão deparar-se com o vulto melancólico da sua sombra. A justiça, ainda antes de se fundar numa ordem legal, funda-se num princípio de ordem moral. Ela é a consciência moral da sociedade: garante o policiamento moral da ordem através da legalidade. Aquilo que ela não pode é realizar um juízo crítico sobre o princípio de instauração da lei, apenas a sua verificação tout court. E, por isso, está condenada à esfera da moral: é certo que ela tem a função de verificar a relação entre prática e teoria do quadro institucional democrático, mas apenas o pode fazer do ponto de vista interno, isto é, do ponto de vista moral.

 

3. Chegamos, então, ao entrelaçamento decisivo desta crise: constituir a política como um campo estritamente moral e não ideológico tem sido a tarefa fundamental da extrema-direita nos últimos anos, não apenas em Portugal. Mas isso só é possível aí onde toda a política foi já desideologizada e transformada na gestão técnica e colectiva dos interesses privados do capitalismo enquanto interesse geral de todos. Não foi o discurso de António Costa de sábado, dia 11 de Novembro, uma eloquente lição sobre esse desígnio nacional?

Dizer isto não significa estabelecer uma simetria de interesses entre justiça e extrema-direita, significa, por um lado, que ambos encontram a sua génese nesse paradoxo constituinte da democracia liberal, mas, por outro, que estes só podem aparecer plenamente na força da ordem moral, aí onde toda a política, toda a sociedade, se encontra no momento da sua desideologização absoluta.

Ora, mais do que o desmantelamento das instituições sociais do Estado, o grande princípio que tem estruturado o programa neoliberal tem sido a dissolução das instituições democráticas, isto é, a neutralização da potência de dissenso que a democracia guarda em si: algo que é visível, por exemplo, na função a que as Universidades foram hoje consignadas enquanto peças positivas estratégicas da optimização do mercado, perdendo a sua função crítica e negativa — a este propósito vale a pena ler a entrevista de Terry Eagleton ao jornal Público. Mas não só: estabelece-se no princípio de anulação de toda e qualquer ideia de cisão política relativamente aos princípios do mercado; estabelece-se no princípio de impossibilidade de qualquer outra política senão aquela definida pela União Europeia. Em suma: trata-se de anular os atritos, os obstáculos, que impedem a expansão financeira dos mercados: quer seja ao nível da habitação, da saúde ou das energias verdes e da economia digital — lítio, hidrogénio e data center.

O neoliberalismo não consuma apenas a figura do lobbying, nem a violência do consenso, ele impõe o princípio absoluto de uma dominação do mercado sobre a própria democracia: aí onde todos os sujeitos políticos se tornam sujeitos económicos. E esse não é um problema moral, mas político e ideológico. Ou, melhor, ele só pode surgir na ordem da moral aí onde a democracia se tornou, arquitectonicamente falando, o lobby do mercado.

Uma reflexão que talvez valesse a pena fazer nos cinquenta anos do 25 de Abril.


 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Georg Grosz, Demokratie (1919)

 

Ficha técnica

«A moralização da política» • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 23.11.2023

Edição #40 • Outono 2023