1. Num outro texto, escrito na sequência
da «Operação Influencer», procurei situar este caso a partir de dois
aspectos que apareciam já como fundamentais: a figura do lobby no quadro
da democracia liberal e o problema do lítio nas novas «economias verdes». Mas o
debate que entretanto foi suscitado, torna oportuno acrescentar mais algumas
notas de reflexão relativamente ao primeiro aspecto.
Podemos dizer que o lobby — ou lobbying
— é uma espécie de princípio constitutivo da democracia liberal, ao instaurar
um espaço onde o domínio do público e do privado se tornam indistintos e
intercambiáveis, isto é, onde os interesses do privado se tornam os interesses
do público e os interesses do público se tornam os interesses do privado. A
constituição do Estado moderno liberal assenta numa operação que consiste em
fazer do interesse económico privado do capitalismo o interesse público da
sociedade no seu todo. O Estado é o meio que legitima a vontade do capital
enquanto vontade geral — não por meio da violência — que seria apanágio de um
regime ditatorial — mas através desse jogo que dá pelo nome de lobby e
que define, com a ideia de consenso, o espaço político da governação.
Daí a grande atracção do capitalismo
pela figura arquitectónica do lobby (átrio). Walter Benjamin notara já
que o centro da Ópera de Paris não era o palco, mas o grande átrio onde a nova
burguesia recém-chegada ao poder observava e era observada. E, no entanto, a
especificidade desse lobby não estava apenas na capacidade de constituir
um regime de representação individual e colectivo da burguesia enquanto classe,
mas de instaurar um tipo específico de espaço — nem público nem privado — onde
a máxima visibilidade, longe de corresponder a um desejo de transparência,
fixava-se num jogo oblíquo de luzes e sombras, silêncios e murmúrios.
2. Ora, o que a «Operação Influencer»
coloca como problema não é exactamente aquilo a que se tem vindo a chamar
uma «politização da justiça» ou uma «judicialização da política», mas algo mais
fundamental: é o paradoxo fundador de todo um modelo de democracia que se
legitima, na teoria, enquanto representação política de todos, mas que,
na prática, é a representação económica dos interesses privados do
capitalismo. A acusação segundo a qual o Ministério Público «não compreende
a dinâmica da governação» é interessante, porque aquilo que ela subentende é que
a governação só é possível na medida em que existe num espaço de indistinção que
não está nem dentro nem fora da legalidade: está para além de. E, de facto, como
poderia estar, se a governação assenta precisamente nessa transubstanciação divina,
nesse comércio, entre privado e público, obscurecendo a categorização
formal do espírito da lei? Se estamos numa «crise de regime» é porque aquilo
que se expõe neste caso é a contradição, de facto, entre a teoria e a prática
da democracia liberal, onde o «power of the people for the people» é, na
verdade, consumado como o «power of the money for the money».
E, no entanto, aquilo que, também aqui,
se expõe irremediavelmente é a própria condição paradoxal de uma justiça que ao
interpelar directamente o poder que a legisla não pode senão deparar-se com o
vulto melancólico da sua sombra. A justiça, ainda antes de se fundar numa ordem
legal, funda-se num princípio de ordem moral. Ela é a consciência moral da
sociedade: garante o policiamento moral da ordem através da legalidade. Aquilo
que ela não pode é realizar um juízo crítico sobre o princípio de instauração da
lei, apenas a sua verificação tout court. E, por isso, está condenada
à esfera da moral: é certo que ela tem a função de verificar a relação entre
prática e teoria do quadro institucional democrático, mas apenas o pode fazer do
ponto de vista interno, isto é, do ponto de vista moral.
3. Chegamos, então, ao entrelaçamento decisivo
desta crise: constituir a política como um campo estritamente moral e
não ideológico tem sido a tarefa fundamental da extrema-direita nos últimos
anos, não apenas em Portugal. Mas isso só é possível aí onde toda a política
foi já desideologizada e transformada na gestão técnica e colectiva dos
interesses privados do capitalismo enquanto interesse geral de todos. Não foi o
discurso de António Costa de sábado, dia 11 de Novembro, uma eloquente lição sobre
esse desígnio nacional?
Dizer isto não significa estabelecer
uma simetria de interesses entre justiça e extrema-direita, significa, por um
lado, que ambos encontram a sua génese nesse paradoxo constituinte da democracia
liberal, mas, por outro, que estes só podem aparecer plenamente na força da ordem
moral, aí onde toda a política, toda a sociedade, se encontra no momento da sua
desideologização absoluta.
Ora, mais do que o desmantelamento das
instituições sociais do Estado, o grande princípio que tem estruturado o
programa neoliberal tem sido a dissolução das instituições democráticas, isto
é, a neutralização da potência de dissenso que a democracia guarda em si: algo
que é visível, por exemplo, na função a que as Universidades foram hoje
consignadas enquanto peças positivas estratégicas da optimização do mercado,
perdendo a sua função crítica e negativa — a este propósito vale a pena ler a entrevista
de Terry Eagleton ao jornal Público. Mas não só: estabelece-se no princípio de anulação de toda
e qualquer ideia de cisão política relativamente aos princípios do mercado;
estabelece-se no princípio de impossibilidade de qualquer outra política senão
aquela definida pela União Europeia. Em suma: trata-se de anular os atritos, os
obstáculos, que impedem a expansão financeira dos mercados: quer seja ao nível
da habitação, da saúde ou das energias verdes e da economia digital — lítio,
hidrogénio e data center.
O neoliberalismo não consuma apenas a figura
do lobbying, nem a violência do consenso, ele impõe o princípio absoluto
de uma dominação do mercado sobre a própria democracia: aí onde todos os
sujeitos políticos se tornam sujeitos económicos. E esse não é um problema
moral, mas político e ideológico. Ou, melhor, ele só pode surgir na ordem da
moral aí onde a democracia se tornou, arquitectonicamente falando, o lobby
do mercado.
Uma reflexão que talvez valesse a pena
fazer nos cinquenta anos do 25 de Abril.
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Imagem
Georg
Grosz, Demokratie (1919)
Ficha
técnica
«A
moralização da política» • Pedro Levi Bismarck
Data de
publicação • 23.11.2023
Edição #40 • Outono 2023