A recente
sabotagem dos nordstreams russos que, como escreve Viriato Soromenho Marques,
«cortou brutalmente o cordão umbilical energético da Alemanha com a Rússia» — obrigando
assim a que qualquer reabastecimento hipotético futuro passe pelos gasodutos
controlados pela Polónia e Ucrânia — marca
um novo momento da actual guerra em curso na Europa. Em pano de fundo, o desconforto
político na Alemanha relativamente aos efeitos económicos e sociais que parecem
confirmar a profecia de uma conhecida série segundo a qual o Inverno está mesmo
a chegar e será longo. Mas também a convicção de que esta foi uma acção realizada com a «conivência
ou mesmo a autoria» dos EUA, como descreve o economista Ricardo Cabral,
algo admitido por vários comentadores e analistas, entre os quais, Albrecht
Müller, antigo conselheiro de Willy Brandt e Helmut Schmidt, escrevendo mesmo
que «o nosso principal aliado, que a maioria dos alemães e da Alemanha oficial
consideram um amigo na política e nos media, destruiu a infraestrutura de
transporte da nossa fonte de energia mais importante e com isso uma importante
base da atividade industrial no nosso país. E fez isso por transparente
interesse próprio!»
Ora, desde o
início da guerra na Ucrânia que se começou a compreender que havia uma parte que
parecia sair beneficiada deste conflito: os EUA. Esta parte foi também aquela
que mais se esforçou por mobilizar e escalar a guerra, ignorando os apelos a
uma mediação de paz e defendendo a aniquilação da Rússia. Simultaneamente,
a retórica humanitária dos valores ocidentais da liberdade e da democracia
contra os valores da tirania revelou-se uma poderosa força mobilizadora da opinião
pública no sentido de isolar e diabolizar a Rússia, mais do que legitimar uma
resposta militar capaz de defender os ucranianos da invasão do seu território —
e que muitos europeus viam como o corolário natural desse posicionamento ético
da União Europeia. O estado de choque — ver o artigo Guerra e Choque — que foi lançado
pela cobertura mediática deu muito pouco espaço de análise às razões histórico-políticas
e geoestratégicas do conflito mas em contrapartida, foi bastante eficaz em
reduzir este conflito a uma batalha pela «civilização» e pela «democracia», entre
«bons» e «maus».
Os eixos
fundamentais dessa retórica foram lançados desce cedo: como é que a Europa
podia continuar a comprar petróleo e gás ao senhor Putin? A estratégia das
sanções foi, por isso, fundamental. Mas longe de danificar a economia de guerra
da Rússia, as sanções atingiram a Europa no seu ponto mais débil: a sua autonomia
energética e a sua dependência de combustíveis fósseis. As contradições cedo se
começaram a sentir, entre as exigências de um bloqueio total ao gás russo e os
efeitos sociais e económicos devastadores que uma medida desse calibre poderia
causar. A Europa fez aquela política que tão bem sabe fazer: por um lado,
exacerbou na televisão a retórica do grande compromisso contra Putin em nome
dos grandes valores europeus, por outro lado, conduziu um intenso e dissimulado
jogo de bastidores para que o petróleo e o gás russo fossem chegando onde fosse
preciso sem levantar atenções desnecessárias. Mas as ambiguidades e
contradições foram sendo demasiado evidentes. Além disso, a Comissão Europeia
não se coibiu de negociar contratos de fornecimento com outros países
igualmente governados por ditadores pouco recomendáveis, como o Azerbaijão.
Foram os EUA que,
desde cedo, se posicionaram para ocupar o lugar anteriormente ocupado pela
Rússia e serem os maiores fornecedores de gás da Europa. Várias notícias foram
avançando consistentemente, algumas chegaram mesmo a contemplar, para gáudio de
António Costa, uma hipótese que passaria por construir um gasoduto a partir de Sines,
um porto de águas profundas capaz de receber grandes navios com o precioso gás
liquefeito. No entanto, fruto do processo de extracção mas também do transporte,
o gás americano implica um custo bastante mais acentuado, pondo em causa não
apenas as necessidades de aquecimento dos europeus, mas a própria sobrevivência
e competitividade internacional das empresas europeias. E aqui estamos na
frente derradeira de uma guerra que é sobretudo económica e que não visa apenas
a Ucrânia, nem a Rússia, mas a Europa.
Como explica Ricardo Cabral, num outro
artigo do Público, «No caso da Área do Euro e do Japão, a depreciação das
respetivas moedas face ao dólar explica-se em parte pela evolução negativa das
suas balanças comerciais no último ano. Como se sabe, as economias da Área do
Euro e do Japão são fortemente dependentes de importações de combustíveis
fósseis e a alta dos preços dessas mercadorias resultou numa deterioração tal
dos termos de troca que os excedentes das respetivas balanças comerciais
passaram a défices, colocando as respetivas moedas sob pressão. Em contraste,
como se sabe, os EUA são o maior país produtor de petróleo e de gás natural,
pelo que não sofre no mesmo grau da deterioração dos termos de troca em
resultado do choque energético. E, ao contrário do esperado por alguns
analistas, o dólar tem sido capaz de se manter a moeda de recurso e de refúgio,
no contexto do aumento das tensões geopolíticas.»
A guerra na Ucrânia
foi o ponto estratégico que colocou em crise o modelo de suficiência energética
baseado na importação russa de gás e petróleo, obrigando a Europa a encontrar
outras fontes de fornecimento, nomeadamente os EUA. Mas não só, a guerra criou além
disso uma instabilidade no mercado da energia, como explica Ricardo Cabral, subindo
os preços das matérias-primas e invertendo os termos das balanças comerciais,
penalizando países importadores, como os Europeus, e privilegiando países
exportadores, como os EUA. É precisamente a partir deste ponto que devemos
compreender a subida agressiva das taxas de juro por parte da Reserva Federal
Americana e que se pode apelidar de um verdadeiro «ataque ao euro». Esta subida,
corresponde, na verdade, a uma política económica estratégica que procura
acentuar ainda mais o fortalecimento do dólar face ao euro, que se vê numa
posição de maior debilidade, fruto do défice das suas balanças comercias e da
pressão a que está sujeito pela inflação (que é já maior que nos EUA).
Ora, fortalecer
o dólar e enfraquecer o euro significa que as exportações americanas são mais
caras, isto é, que para os europeus é mais caro comprar matérias-primas ou
produtos provenientes dos EUA. E esta é a questão fundamental. Uma tal política
só é possível e só pode ter sucesso na medida em que se retiram do tabuleiro de
jogo as alternativas e os concorrentes que existiam no fornecimento de combustíveis
fósseis, isto é, a Rússia, colocando a Europa entre a espada e a parede, e obrigando-a
a importar a altos custos aquilo que antes conseguia a um preço relativamente
acessível. Dessa forma, beneficia-se duplamente a economia americana: primeiro,
porque os EUA são agora um parceiro estratégico na provisão de gás para a
Europa, segundo, porque fortaleceu o dólar face ao euro, numa política
agressiva de subida de taxas de juro, aumentando e duplicando os rendimentos das
suas exportações. Mas não só, como explica ainda Ricardo Cabral: «A
resultante subida do preço do gás natural ou o racionamento desta fonte de
energia irá traduzir-se na destruição de capacidade industrial e na diminuição
das exportações e aumento das importações da Alemanha, da Holanda e da Itália,
contribuindo para uma depreciação mais acentuada do euro, para um aumento da
taxa de inflação na área do euro e para uma política monetária do BCE mais
restritiva».
A tempestade
perfeita, demasiada perfeita até!: (1) uma guerra em território europeu que põe
um fim à aliança estratégico-económica entre a Europa e a Rússia, ao mesmo
tempo que incendeia as lutas internas entre facções nacionalistas
dentro da União Europeia; (2) um impasse no modelo europeu de importação de combustíveis
fósseis e no seu modelo de produção económica e industrial; (3) uma crise energética
na Europa, que faz subir os preços dos combustíveis fósseis e coloca as
balanças comerciais dos importadores em déficit; e, por fim, (4) subida das taxas de juro americanas — que o BCE não
pode senão acompanhar — para fortalecer ainda mais o dólar numa política
económica agressiva, mas que a todos os níveis responde às actuais necessidades
da economia americana. Precisamente, essa mesma economia que vive há vários
anos em crise existencial pela perda do papel motor da globalização nos
últimos anos para a China, mas também fortemente abalada pelas políticas
neoliberais das últimas décadas, com o acentuar de uma extrema desigualdade
económica e de um clima social de instabilidade, precariedade e pobreza.
Esta é, como
escrevi em Março, em Guerra e Choque, uma guerra no fim da globalização, pelo
controlo do seu processo por parte daqueles blocos que perderam a capacidade de
o dirigir e de com ele lucrar: «uma guerra pelo controlo militar e económico
das fontes de energia, dos locais de produção e das suas fronteiras; uma guerra
que resulta da consciência da incapacidade em controlar estas cadeias
logísticas de extracção e produção e da necessidade de as trazer para o
controlo da soberania dos Estados (Ocidentais)». Desde o início que parecia
claro que havia muito mais em jogo do que simplesmente o Donbass e o direito
dos ucranianos a escolherem o seu destino. Nada disto serve para legitimar a
invasão russa. Mas serve para compreender que os tão chamados valores
ocidentais raramente trazem apenas liberdade. Os sinais e indícios sucedem-se,
mesmo na difícil tarefa de compreender a racionalidade estratégica desta
guerra. A sabotagem do nordstream, a confirmar-se a autoria, mostra mais
uma vez que há muita coisa em jogo nesta guerra. De uma maneira ou de outra, têm
sido os EUA a tirar partido dos efeitos desta guerra, numa política que aparece,
cada vez mais, de forma concertada e cujo collateral damage parece ser o
de colocar a Europa e o Euro numa profunda crise económica. As notícias da
morte dos EUA eram manifestamente exageradas, dirá agora o velho Biden. Uma
lição de como conduzir uma guerra no século XXI, foi aquilo que os EUA
ofereceram, subtilmente e indelevelmente, à história da Humanidade, nos últimos
meses. São eles, por agora, os grandes
vencedores desta guerra. Resta saber quais vão ser os custos.
•
Pedro Levi Bismarck
Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
«O rapto de Europa», Rembrandt van
Rijn. 1632.
Ficha Técnica
Data de publicação: 04.10. 2022
Edição #36 • Outono 2022 •