O rapto da Europa • Pedro Levi Bismarck



 

A recente sabotagem dos nordstreams russos que, como escreve Viriato Soromenho Marques, «cortou brutalmente o cordão umbilical energético da Alemanha com a Rússia» — obrigando assim a que qualquer reabastecimento hipotético futuro passe pelos gasodutos controlados pela Polónia e Ucrânia  — marca um novo momento da actual guerra em curso na Europa. Em pano de fundo, o desconforto político na Alemanha relativamente aos efeitos económicos e sociais que parecem confirmar a profecia de uma conhecida série segundo a qual o Inverno está mesmo a chegar e será longo. Mas também a convicção de que  esta foi uma acção realizada com a «conivência ou mesmo a autoria» dos EUA, como descreve o economista Ricardo Cabral, algo admitido por vários comentadores e analistas, entre os quais, Albrecht Müller, antigo conselheiro de Willy Brandt e Helmut Schmidt, escrevendo mesmo que «o nosso principal aliado, que a maioria dos alemães e da Alemanha oficial consideram um amigo na política e nos media, destruiu a infraestrutura de transporte da nossa fonte de energia mais importante e com isso uma importante base da atividade industrial no nosso país. E fez isso por transparente interesse próprio!»

Ora, desde o início da guerra na Ucrânia que se começou a compreender que havia uma parte que parecia sair beneficiada deste conflito: os EUA. Esta parte foi também aquela que mais se esforçou por mobilizar e escalar a guerra, ignorando os apelos a uma mediação de paz e defendendo a aniquilação da Rússia. Simultaneamente, a retórica humanitária dos valores ocidentais da liberdade e da democracia contra os valores da tirania revelou-se uma poderosa força mobilizadora da opinião pública no sentido de isolar e diabolizar a Rússia, mais do que legitimar uma resposta militar capaz de defender os ucranianos da invasão do seu território — e que muitos europeus viam como o corolário natural desse posicionamento ético da União Europeia. O estado de choquever o artigo Guerra e Choque — que foi lançado pela cobertura mediática deu muito pouco espaço de análise às razões histórico-políticas e geoestratégicas do conflito mas em contrapartida, foi bastante eficaz em reduzir este conflito a uma batalha pela «civilização» e pela «democracia», entre «bons» e «maus».

Os eixos fundamentais dessa retórica foram lançados desce cedo: como é que a Europa podia continuar a comprar petróleo e gás ao senhor Putin? A estratégia das sanções foi, por isso, fundamental. Mas longe de danificar a economia de guerra da Rússia, as sanções atingiram a Europa no seu ponto mais débil: a sua autonomia energética e a sua dependência de combustíveis fósseis. As contradições cedo se começaram a sentir, entre as exigências de um bloqueio total ao gás russo e os efeitos sociais e económicos devastadores que uma medida desse calibre poderia causar. A Europa fez aquela política que tão bem sabe fazer: por um lado, exacerbou na televisão a retórica do grande compromisso contra Putin em nome dos grandes valores europeus, por outro lado, conduziu um intenso e dissimulado jogo de bastidores para que o petróleo e o gás russo fossem chegando onde fosse preciso sem levantar atenções desnecessárias. Mas as ambiguidades e contradições foram sendo demasiado evidentes. Além disso, a Comissão Europeia não se coibiu de negociar contratos de fornecimento com outros países igualmente governados por ditadores pouco recomendáveis, como o Azerbaijão.

Foram os EUA que, desde cedo, se posicionaram para ocupar o lugar anteriormente ocupado pela Rússia e serem os maiores fornecedores de gás da Europa. Várias notícias foram avançando consistentemente, algumas chegaram mesmo a contemplar, para gáudio de António Costa, uma hipótese que passaria por construir um gasoduto a partir de Sines, um porto de águas profundas capaz de receber grandes navios com o precioso gás liquefeito. No entanto, fruto do processo de extracção mas também do transporte, o gás americano implica um custo bastante mais acentuado, pondo em causa não apenas as necessidades de aquecimento dos europeus, mas a própria sobrevivência e competitividade internacional das empresas europeias. E aqui estamos na frente derradeira de uma guerra que é sobretudo económica e que não visa apenas a Ucrânia, nem a Rússia, mas a Europa.

Como explica Ricardo Cabral, num outro artigo do Público, «No caso da Área do Euro e do Japão, a depreciação das respetivas moedas face ao dólar explica-se em parte pela evolução negativa das suas balanças comerciais no último ano. Como se sabe, as economias da Área do Euro e do Japão são fortemente dependentes de importações de combustíveis fósseis e a alta dos preços dessas mercadorias resultou numa deterioração tal dos termos de troca que os excedentes das respetivas balanças comerciais passaram a défices, colocando as respetivas moedas sob pressão. Em contraste, como se sabe, os EUA são o maior país produtor de petróleo e de gás natural, pelo que não sofre no mesmo grau da deterioração dos termos de troca em resultado do choque energético. E, ao contrário do esperado por alguns analistas, o dólar tem sido capaz de se manter a moeda de recurso e de refúgio, no contexto do aumento das tensões geopolíticas.»

A guerra na Ucrânia foi o ponto estratégico que colocou em crise o modelo de suficiência energética baseado na importação russa de gás e petróleo, obrigando a Europa a encontrar outras fontes de fornecimento, nomeadamente os EUA. Mas não só, a guerra criou além disso uma instabilidade no mercado da energia, como explica Ricardo Cabral, subindo os preços das matérias-primas e invertendo os termos das balanças comerciais, penalizando países importadores, como os Europeus, e privilegiando países exportadores, como os EUA. É precisamente a partir deste ponto que devemos compreender a subida agressiva das taxas de juro por parte da Reserva Federal Americana e que se pode apelidar de um verdadeiro «ataque ao euro». Esta subida, corresponde, na verdade, a uma política económica estratégica que procura acentuar ainda mais o fortalecimento do dólar face ao euro, que se vê numa posição de maior debilidade, fruto do défice das suas balanças comercias e da pressão a que está sujeito pela inflação (que é já maior que nos EUA).

Ora, fortalecer o dólar e enfraquecer o euro significa que as exportações americanas são mais caras, isto é, que para os europeus é mais caro comprar matérias-primas ou produtos provenientes dos EUA. E esta é a questão fundamental. Uma tal política só é possível e só pode ter sucesso na medida em que se retiram do tabuleiro de jogo as alternativas e os concorrentes que existiam no fornecimento de combustíveis fósseis, isto é, a Rússia, colocando a Europa entre a espada e a parede, e obrigando-a a importar a altos custos aquilo que antes conseguia a um preço relativamente acessível. Dessa forma, beneficia-se duplamente a economia americana: primeiro, porque os EUA são agora um parceiro estratégico na provisão de gás para a Europa, segundo, porque fortaleceu o dólar face ao euro, numa política agressiva de subida de taxas de juro, aumentando e duplicando os rendimentos das suas exportações. Mas não só, como explica ainda Ricardo Cabral: «A resultante subida do preço do gás natural ou o racionamento desta fonte de energia irá traduzir-se na destruição de capacidade industrial e na diminuição das exportações e aumento das importações da Alemanha, da Holanda e da Itália, contribuindo para uma depreciação mais acentuada do euro, para um aumento da taxa de inflação na área do euro e para uma política monetária do BCE mais restritiva».

A tempestade perfeita, demasiada perfeita até!: (1) uma guerra em território europeu que põe um fim à aliança estratégico-económica entre a Europa e a Rússia, ao mesmo tempo que incendeia as lutas internas entre facções nacionalistas dentro da União Europeia; (2) um impasse no modelo europeu de importação de combustíveis fósseis e no seu modelo de produção económica e industrial; (3) uma crise energética na Europa, que faz subir os preços dos combustíveis fósseis e coloca as balanças comerciais dos importadores em déficit; e, por fim, (4) subida  das taxas de juro americanas — que o BCE não pode senão acompanhar — para fortalecer ainda mais o dólar numa política económica agressiva, mas que a todos os níveis responde às actuais necessidades da economia americana. Precisamente, essa mesma economia que vive há vários anos em crise existencial pela perda do papel motor da globalização nos últimos anos para a China, mas também fortemente abalada pelas políticas neoliberais das últimas décadas, com o acentuar de uma extrema desigualdade económica e de um clima social de instabilidade, precariedade e pobreza.

Esta é, como escrevi em Março, em Guerra e Choque, uma guerra no fim da globalização, pelo controlo do seu processo por parte daqueles blocos que perderam a capacidade de o dirigir e de com ele lucrar: «uma guerra pelo controlo militar e económico das fontes de energia, dos locais de produção e das suas fronteiras; uma guerra que resulta da consciência da incapacidade em controlar estas cadeias logísticas de extracção e produção e da necessidade de as trazer para o controlo da soberania dos Estados (Ocidentais)». Desde o início que parecia claro que havia muito mais em jogo do que simplesmente o Donbass e o direito dos ucranianos a escolherem o seu destino. Nada disto serve para legitimar a invasão russa. Mas serve para compreender que os tão chamados valores ocidentais raramente trazem apenas liberdade. Os sinais e indícios sucedem-se, mesmo na difícil tarefa de compreender a racionalidade estratégica desta guerra. A sabotagem do nordstream, a confirmar-se a autoria, mostra mais uma vez que há muita coisa em jogo nesta guerra. De uma maneira ou de outra, têm sido os EUA a tirar partido dos efeitos desta guerra, numa política que aparece, cada vez mais, de forma concertada e cujo collateral damage parece ser o de colocar a Europa e o Euro numa profunda crise económica. As notícias da morte dos EUA eram manifestamente exageradas, dirá agora o velho Biden. Uma lição de como conduzir uma guerra no século XXI, foi aquilo que os EUA ofereceram, subtilmente e indelevelmente, à história da Humanidade, nos últimos meses.  São eles, por agora, os grandes vencedores desta guerra. Resta saber quais vão ser os custos.


 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

«O rapto de Europa», Rembrandt van Rijn. 1632.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 04.10. 2022

Edição #36 • Outono 2022 •