Guerra e choque • Pedro Levi Bismarck

 

  

1. Guerra e verdade

Alguém dizia que a primeira baixa numa guerra é a verdade. Um artigo publicado no jornal Abril verificou a veracidade de um conjunto de notícias que têm passado nos meios de comunicação social repetidamente e sem tréguas: notícias que passam de mão em mão, de canal em canal, que não são verificadas, mas servem para alimentar não só o conflito como uma constante experiência do choque. O tanque russo que tinha atropelado um carro onde seguiam dois idosos, os heróis da ilha ucraniana que sacrificaram a vida pelo país. Tudo isso eram afinal fake news. E, no entanto, nenhuma destas notícias foi corrigida ou rectificada. Não se trata aqui de desculpar a violência da invasão russa. É ponto assente que não há nada que legitime a acção militar de Putin. Mas trata-se da necessidade de sair de um certo estado de choque permanente em que nos encontramos e que parece contribuir muito pouco para uma compreensão objectiva da situação. Os textos publicados recentemente no Jornal Punkto (Luhuna Carvalho, David Harvey e Maurizio Lazzarato) são suficientemente pertinentes no levantamento de um conjunto de questões que permanecem na base deste conflito entre a NATO e a Rússia e que toma forma na Ucrânia.

 

2. A guerra na crise da globalização

A célebre frase de Clausewitz de que «a guerra é a continuação da política por outros meios» é apenas parcialmente verdade. Talvez fosse mais correcto referir que a guerra é a continuação da economia por outros meios, ou melhor, é a continuação do Capital (da acumulação de Capital) por todos os meios. Tudo isto torna-se perceptível quando se ouve falar, em pano de fundo, da «independência energética da Europa», do embargo ao petróleo e ao gás russo, do congelamento das contas e dos activos financeiros do oligarcas russos. Esta guerra que está em curso não começou a 24 de Fevereiro ou em 2014 e não resulta simplesmente da loucura ou do desvario de Putin. Se é verdade que está em causa um choque entre EUA/Europa (na figura da NATO) e a Rússia (entre blocos capitalistas distintos, mas igualmente oligárquicos e rentistas, como escreve Maurizio Lazzarato), também é verdade que esta guerra surge no quadro de uma progressiva perda de poder e domínio tanto económico como político dos EUA e da Europa.

Mas se esta nova realidade multipolar, como tem vindo a ser designada, é um facto inescapável do presente e do futuro, deveríamos acrescentar que o «perigo» que essa multipolaridade coloca para EUA e Europa está na sua profunda consciência de que perderam a liderança do processo da globalização económica do Capital e que este processo se voltou precisamente contra eles, contra aqueles que o iniciaram. E, portanto, a única saída não é senão tentar, por todos os meios possíveis, retomar o controlo desse processo ou mesmo revertê-lo. Reverter esse processo só pode significar encontrar uma condição energética, extractiva e produtiva, capaz  de assegurar a auto-suficiência da Europa e dos EUA, ao mesmo tempo que se contêm as aspirações expansionistas da China e da Rússia, mas também de tantos outros países que, desde os anos 60 e 70, têm em mãos uma parte considerável das indústrias energéticas e extractivistas mundiais.

Não haja dúvidas: o discurso em torno do resgate urgente do planeta Terra e das alterações climáticas por parte da União Europeia, com o New European Bauhaus e os programas de apoio às energias verdes, não resultam de nenhum assomo humanitário dos países Europeus e dos seus tão conhecidos «valores universais», mas resulta dessa necessidade de encontrar nas energias renováveis o modelo de uma auto-suficiência energética. De novo, os argumentos da guerra circulam aí em pano de fundo, quase sempre dissimulados: o tema da reconversão energética da Alemanha e a independência do gás russo (que esta, aliás, recusa por enquanto, porque teme as implicações sociais e económicas de uma transição demasiado abrupta), passou a estar sempre presente. Da mesma forma, a obsessão pelo lítio e, particularmente, a obsessão pelo lítio em Portugal, já se percebeu, não está nos seus benefícios ecológicos e verdes, mas nos seus benefícios económicos, isto é, na capacidade de encontrar na Europa uma indústria extractivista própria e eventualmente exportadora capaz de evitar custosas importações, que agravam os défices e as balanças comerciais dos Estados. Por isso é tão deprimente ver os anúncios do ministro Matos Fernandes e do seu secretário de Estado Galamba: não porque ocultem essa lógica, mas porque a expõem na sua crueldade, intercalando «vivas» ao ambiente e «vivas» às capacidades produtivas de Portugal e das suas empresas em nome de um futuro mais verde: lítio e PIB, une histoire d'amour que nada tem a ver com o meio-ambiente e com o planeta.

 

3. Globalização e soberania

É esta a guerra que está em curso: a guerra do fim ou pelo fim da globalização ou, pelo menos, da sua crise, de um reposicionamento estratégico face ao processo da globalização; uma guerra pelo controlo militar e económico das fontes de energia, dos locais de produção e das suas fronteiras; uma guerra que resulta da consciência da incapacidade em controlar estas cadeias logísticas de extracção e produção e da necessidade de as trazer para o controlo da soberania dos Estados (Ocidentais). Não foi a retirada dos EUA e o falhanço da intervenção militar no Afeganistão um epílogo e, simultaneamente, um prelúdio para um novo modo de intervir sobre o mundo e sobre essas fronteiras?

Se a globalização foi, no pós Segunda Guerra Mundial, a máquina de guerra que permitiu fazer das populações do Terceiro Mundo a força-de-trabalho do Ocidente, o proletariado planetário do Ocidente, com a sua ampla gama de golpes de Estado e «intervenções militares» (Vietname, Coreia, Chile, Venezuela), por outro lado, aquilo que temos diante de nós é precisamente a crise desse modelo político, económico e militar: a crise de uma divisão internacional do trabalho e da produção que ao mesmo tempo que resolvia (nos anos 70) a crise de  lucro das empresas multinacionais deslocalizando-se e conseguindo mão-de-obra a preço de saldo (China, Índia, Bangladesh) e explorando novos recursos minerais, agrícolas e florestais (Chile, Brasil), acabou por produzir novos centros políticos e económicos que vêm agora reivindicar o seu papel na «ordem mundial», nomeadamente a China.

Quando, no início da pandemia, em 2020, a Europa percebeu que ninguém dentro das suas fronteiras produzia uma coisa tão simples como máscaras de protecção individual, isso não foi senão o sinal de um alarme que vinha já a tocar nos corredores da Comissão Europeia e dos governos ocidentais. O sonho da globalização também tinha os seus monstros: significava que o «centro» estava refém dos lugares periféricos da produção, cuja soberania deixou de ter condições (políticas e militares) para controlar. O sonho da globalização era o sonho dessa divisão internacional do trabalho, de um mundo perfeito desenhado à medida da lógica de reprodução do Capital (comandado pelo eixo EUA-Europa), uma máquina planetária perfeitamente articulada de produção de mercadorias, com toda uma correspondente gama de nomes hipsters como «sociedades pós-industriais» ou «sociedades pós-coloniais» e filosofias do «fim da historia» que assinalavam tanto um total ocidentrismo como uma confiança e um desconhecimento pleno relativamente ao processo violento que atravessava os países doravante chamados «em vias desenvolvimento».

Cada país com o seu lugar particular na cadeia de produção e de exploração, com a sua monocultura específica: o eucalipto, o turismo, o chip, a soja, os offshores. É essa reconfiguração planetária que está hoje em curso e que é objecto de uma disputa. Do lado da Europa e dos EUA, trata-se de reverter (ou tomar o controlo) desse processo, o que significa em parte assegurar essa auto-suficiência energética, mas também, obviamente, re-industrializar. Claro que isso não significa voltar ao paradigma da fábrica, mas significa que o ataque permanente aos regimes de trabalho, forçando a sua precariedade, é absolutamente necessário para baixar o custo da mão-de-obra, para torná-la mais barata e competitiva. O que foi a Troika senão uma experiência desse nível, uma forma de retirar direitos laborais e de conseguir modos de exploração de mão-de-obra mais eficazes dentro das fronteiras da Europa? Manter salários baixos é instrumental para assegurar o papel de Portugal na Europa e o papel da Europa em Portugal. Ao contrário do que a Iniciativa Liberal proclama e do que a classe média gosta de discutir ad nauseam nos seus programas de economia na televisão, os baixos salários resultam simplesmente da posição que Portugal ocupa no conjunto da economia Europeia e não da produtividade ou da subida do salário mínimo. Talvez se possa dizer que à União Europeia interessa-lhe, sobretudo, uma globalização sobre a qual possa ter capacidade de controlo político, uma globalização com soberania, uma globalização interna: é esse o projecto emancipador, liberal e democrático, da União Europeia que se desenha hoje com cada vez mais nitidez. E é esse o problema de fundo que atravessa este conflito: como reencontrar uma soberania sobre a globalização, uma nova escala política na geografia da produção capaz de se coadunar com um modelo de controlo político eficiente que organize de forma diferente os Estados e os seus blocos económicos.

 

4. Estado de choque

Só compreendendo essa reconfiguração planetária na crise da globalização é que se pode começar a compreender o que está em jogo na guerra da Ucrânia. É absurdo repetir isto, mas tem que ser: compreender este quadro histórico-político não significa estar do lado de Putin, mas significa lançar um plano de análise que deve tentar reconhecer que as questões que nos levaram a esta situação não são meramente locais, nem que esta guerra é resultado exclusivo de um louco (Putin) ou de um confronto simplista entre bons (nós) e maus (eles).

Mas tem havido uma outra forma dominante no acompanhamento mediático do conflito que importa observar: a de intensificar, hiperbolizar, o pathos emocional da guerra, desde logo porque isso serve as audiências. Veja-se como o pacote informativo dos telejornais é construído como um filme hollywoodesco: é preciso mobilizar infinitamente o espectador e mantê-lo sempre em tensão, sempre em estado de choque. Não admira que o «directo» seja a forma preferida dos canais de televisão: não interessa a veracidade das notícias, a objectividade da informação, a análise do problema, mas sim intensificar essa experiência vertiginosa, o medo, a indignidade perante a guerra, «Como é possível uma guerra no século vinte e um?», pergunta alguém. E, no entanto, o século vinte e um que começou há vinte e dois anos está cheio de guerras e conflitos que não mereceram a mesma atenção, o mesmo acompanhamento jornalístico, a mesma consternação. Síria, Iraque, Afeganistão, Palestina, conflitos que produziram um grau maciço de destruição e de mortes, que se arrastam há muito e que não mereceram a mesma atenção dos tais valores europeus liberais tão apregoados, mas que muito rapidamente parecem sucumbir aos desígnios da realpolitik.

É natural que o facto deste conflito se desenrolar na Europa e envolver uma potência nuclear como a Rússia desperte antigos traumas da Guerra Fria. Mas isso não é suficiente para explicar a mobilização mediática deste conflito. Ora, se a primeira guerra do Golfo foi a primeira guerra transmitida em directo, talvez se possa dizer que a guerra na Ucrânia é a primeira guerra que fez da própria transmissão em directo um dos palcos do conflito. A opacidade da informação, tanto por parte dos russos como dos ucranianos, tem sido reconhecida por jornalistas no terreno e a multiplicação de fake news comprova como esta é uma guerra que não só passa na televisão, como passa pela televisão, joga-se nos media.

É precisamente neste contexto que devemos compreender o papel desse estado de choque que mobiliza os media: ele não serve apenas a construção de uma audiência ininterrupta de espectadores comocionados e aterrorizados (ou mesmo anestesiados), mas serve tanto para anular qualquer plano de análise objectivamente possível, como para legitimar a própria guerra, isto é, construir as condições de percepção óptimas para legitimar este novo mundo multipolar que se desenha na crise da globalização e que irá fazer das tensões nacionalistas entre blocos um elemento fundamental da estratégia económico-militar do Capital (e é também neste sentido que devemos compreender a ascensão e a mobilização que tiveram os nacionalismos nos últimos dez anos).

O facto novo deste conflito é o seguinte: os media (no seu conjunto e na sua multiplicidade de meios digitais e analógicos) representam um dos teatros de operações deste conflito, quer do lado russo, quer do lado europeu-americano (veja-se, por exemplo, a notícia da CNN Portugal: Facebook e Instagram vão permitir incitamento à violência contra russos e apelos à morte de Putin). E nesse processo o estado de choque é um elemento fundamental, ele permite mobilizar o conflito, mobilizar o nacionalismo, mobilizar o medo, legitimar todas as acções futuras de guerra. Sucumbir a esse jogo significa, como escreve Maurizio Lazzarato, legitimar não só a continuidade da guerra, mas a redução do campo político ao confronto permanente e fatal entre potências e blocos capitalistas que instrumentalizam as suas populações para continuarem a sua própria «destruição criativa» do mundo (com as suas oligarquias e os seus bilionários), contra as aspirações destas populações, contras as nossas próprias e legítimas reivindicações e necessidades.

Talvez esta noção de «estado de choque» merecesse uma conceptualização política à altura de um tempo em que as formas de poder saíram há muito dos limites da ordem jurídico-legal e definitivamente se mobilizam através da miríade de dispositivos que configuram cada vez mais a nossa experiência da realidade na nossa condição de massas digitais. Utilizando abusivamente uma fórmula que fez fortuna no campo do pensamento político (a propósito da figura do «estado de excepção») talvez pudéssemos dizer que o estado de choque em que nos encontramos irá tornar-se a regra.

 

Epílogo

O sintoma evidente dessa mobilização da comunicação social enquanto espécie de complexo político-militar-mediático é perfeitamente visível não só, como vimos, na neutralização de qualquer plano de análise histórico-político do conflito, mas nas reacções que se levantam a todos aqueles que se atrevem a fazê-lo, com o pretexto de que qualquer exercício de contextualização não passa de «miséria moral» (Manuel Carvalho) ou de «russofilia» (João Miguel Tavares) dessa nova organização política extremista e perigosa apelidada de «esquerda iliberal» (veja-se o ataque encarniçado ao PCP por parte do comentariado político ou, então, a reacção intempestiva e o «ódio visceral» ao texto de Boaventura de Sousa Santos por parte do director do Público, acusando-o de querer «salvar Putin e culpar a Europa».  

Mas não deixa de ser curioso que sejam precisamente aqueles que se intitulam de «liberais», defensores intrépidos dos valores europeus da tolerância e da liberdade, os primeiros a munir-se de armas de retórica tão violentas e de um ódio tão grande face a todos aqueles que resistem a escolher o mesmo posicionamento político e a reduzir este conflito à batalha entre o bem e o mal, entre «democracia e autocracia», como se também aqui estivéssemos perante o mesmo filme de Hollywood (talvez a ausência de heróis de tão aclamados valores – Biden, Macron, Charles Michel? – explique esse discurso; e talvez tudo isto elucide essa obsessão que atravessa os media em busca de heróis no conflito).

Mas nada disso interessa, realmente. Não foi sempre isso a experiência histórica do Liberalismo? A violência em nome da Liberdade e da Tolerância? Como avisava Thomas Mann numa conferência a 3 de Outubro de 1940 em Los Angeles: «Permiti-me que vos diga a verdade, se um dia o fascismo chegar à América, chegará em nome da Liberdade». É precisamente essa vigilância, essa resistência, essa deserção, a toda e qualquer mobilização deste tipo que este conflito nos coloca como o maior e mais derradeiro desafio.


 

 

 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Jean de Gourmont, «Conosce te ipsum / o caput ellaboro dignum / Stulltorum infinitus este numerus» («Conhece-te a ti mesmo / ele leva uma cabeça digna / o número de tolos é infinito»), c. 1590.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 13.03. 2022

Edição #34 • Inverno 2022 •