A
vida nas grandes cidades é marcada pelas vastas diferenças da sua população.
Cada vez mais, viver na cidade significa viver no meio de um enxame heterogéneo
onde as diferenças culturais e sociais são sentidas em todos os níveis do
quotidiano. A nova modernidade trouxe consigo a instalação do “diferente” como
norma social, por contraste com as vivências antigas da familiaridade e do
estável. A figura do “estranho” tornou-se predominante no dia-a-dia dos
habitantes citadinos, e com esta personagem nascem a desconfiança e o ódio. A
metrópole moderna impõe barreiras, aliena, despessoaliza. Ela pega nos
lugares de socialização e transforma-os em espaços de consumo privatizados,
onde o convívio não acontece por si só mas em função do consumo. A pessoa
encontra-se mergulhada no caos da hipersensorialidade e da
heterogeneidade e é incentivada à disputa do espaço público com as outras
pessoas.
A
cidade do conflito produz relações sociais caracterizadas pela sua frontalidade
e agressividade. Não há espaço para a solidariedade. O estranho é o inimigo e
com ele deve ser disputado o direito à cidade e à sua existência dentro dela. O
outro torna-se o que não trabalha, o que não contribui, o que não merece o seu
lugar no espaço urbano. O próprio espaço urbano é pensado como gerador de
conflito ao ser categorizado e separado. Grandes avenidas separam bairros
pobres de bairros ricos, a vigilância torna-se constante, o espaço público de
convívio é privatizado. A cidade do conflito é montada em cima de sistemas de
opressão que operam desde as primeiras sociedades e é por eles moldada. Ela
reproduz estes sistemas na sua existência e impõe a sua coerção aos habitantes.
A coerção deste modelo citadino é o mais importante dos seus mecanismos, uma
vez que impõe à pessoa a sua vontade sem que ela se aperceba. Bebendo da
tradição de Foucault, Stavrides vê a cidade como instrumento do ordenamento de
discursos e de reprodução das relações de poder. Ele diz que “a cidade é
moldada pelas relações de poder dominantes para continuar a ser um meio crucial
para a reprodução da sociedade. (…) O ordenamento urbano, a própria metrópole,
é um processo, é contestada, quase da mesma maneira como as relações sociais
dominantes precisam todos os dias de se reproduzir”. [1]
1. Stavros Stavrides, Espaço Comum, Orfeu Negro, 2021, p.63.
O
conflito é produzido. Ele é fruto de uma vontade de conformismo e vigilância
que nasce da necessidade do controlo da cidade. O controlo do modelo citadino é
importante, uma vez que é neste espaço que temos a maior parte das nossas interacções
sociais. Embora possa parecer, uma cidade de harmonia não é ideal para o poder
institucionalizado. A harmonia significa a possibilidade de um verdadeiro
diálogo, de um progresso e de um consenso por parte das e dos habitantes da
cidade. Esse consenso não é, usualmente, do interesse do poder institucionalizado.
A cidade é usada como um dispositivo de controlo da pessoa. O conflito é
mantido para controlar a pessoa, mas ele não pode existir em excesso, pois
poderia levar à guerra civil ou à insurreição. Em vez disso, ele é controlado
para servir os interesses do controlador.
Na
verdade, a conflitualidade dentro da cidade surgiu de forma natural. Ela
é, de certa forma, inerente à socialização humana. O espaço heterogéneo é
sempre alvo de conflito. A “diferença” é o seu motor. A comunidade que é homogénea
não gera conflito, a sociedade de pessoas idênticas não instiga a
confrontalidade. A cidade heterogénea é verdadeiramente mergulhada em conflito.
O poder institucional aproveita-se desta natureza evidente para criar mais um
mecanismo de controlo e de manutenção do poder. O discurso ténue da
coexistência pode ser levantado para mostrar a verdadeira intenção do poder: o
caos do universo pessoal na cidade.
A
segurança torna-se a necessidade fundamental da habitação dentro do espaço
urbano. Ela define o espaço que é e que não é de conflito. No fundo, esta
categorização é uma ilusão. O conflito pode surgir em qualquer espaço seguro.
Mas a percepção da segurança serve como instrumento especulativo da definição
do espaço da cidade. Ela define quais são os “nossos” espaços e os espaços dos
“outros”, quais são os espaços de qualidade e os espaços de risco e produz
espaços designados para o conflito.
As
várias comunidades que surgem dentro da cidade são manipuladas para a
manutenção do conflito. Elas operam os seus próprios mecanismos de
exclusão e divisão. A cidade torna-se o campo de batalha das comunidades. Os
mecanismos de “othering” - ou “outrização” - funcionam como uma
forma de fronteira à comunidade. Estes processos são os mediadores entre o
espaço comum e o espaço social. Eles decidem o que é nosso e o que é dos outros
e legitimam essas escolhas. Eles mantêm afastadas as pessoas diferentes e estão
no centro da regulação da comunidade. Dizem aos membros da comunidade o que
está de fora e o que está de dentro e afastam as pessoas diferentes e as outras
comunidades.
Estes
mecanismos de outrização assumem-se como produtores de discursos de
legitimidade. Eles mostram aos membros da comunidade o que é legítimo e o que
não é, ao criarem uma dicotomia entre o «nós» legítimo e o «eles» ilegítimo. É
a prática do sistema de exclusão e a base do conflito. Esta categorização
permite à comunidade excluir o que lhe é indesejável, mantendo o que lhe é
favorável. A convivência entre o nós e o eles é feita sempre em mediação da
sociedade de risco e portanto é sempre instável. Bauman diz que “as ferramentas
do convívio eu-Vós, ainda que perfeitamente dominadas e impecavelmente
manejadas, mostrar-se-ão vulneráveis à variação, à disparidade e à discórdia
que separam e mantêm em pé-de-guerra as multidões daqueles que constituem um
Vós potencial: dispostos a disparar em vez de conversar”. [2]
A pós-modernidade dificulta a própria relação
entre as comunidades, o de fora e o de dentro, mantendo sempre a tensão do
conflito e procura a atomização das relações sociais ao erodir as comunidades
com o conflito. São poucas as comunidades que verdadeiramente sobrevivem a esta
luta.
2. Zygmunt Bauman, Amor líquido – sobre a fragilidade dos
laços humanos, Relógio D'Água, 2003, p.52.
O
espaço da cidade é produzido como palco da conflitualidade. Ele não é
criado para incentivar a harmonia. Ao mesmo tempo opera mecanismos de exclusão
e de conflito. A busca por um lugar de estacionamento torna-se conflito. A
entrada em propriedade privada torna-se uma transgressão. O mau acesso de
transportes públicos para uma zona da cidade causa a exclusão. O espaço público
torna-se o espaço de vigilância. A progressiva privatização de espaços
públicos, como os centros comerciais, é perigosa para a cidade. Significa que
as entidades privadas têm poder sobre os rituais de socialização das pessoas
que frequentam os seus espaços. Elas podem definir o que é normal e o que não
é. Mesmo que esta operação aparente ser uma tentativa da harmonização do
conflito, ela é o oposto. No pano da vida social da cidade, ela estabelece
normas para o comportamento público, que são hegemonizadas em colaboração com
as restantes entidades privadas e com o estado. Quem define o que é normal para
se fazer na rua são as entidades que regulam os espaços de socialização, mesmo
que elas não regulem directamente o espaço público. Elas estabelecem o “normal”
e excluem o anormal, criando conflito na sua categorização.
As
interacções sociais no espaço da cidade são mediadas pela sua fisicalidade. Idas ao
cinema, passeios em parques, saídas nocturnas, são todas condicionadas pelos
espaços da cidade. Novas interacções podem surgir de novos espaços da cidade. A
produção capitalista dos espaços de convívio deve ser olhada com desconfiança e
cepticismo. Ela é sempre coerciva e procura gerar o conflito e o desconcertamento
entre as pessoas. É auxiliada por mecanismos de vigilância e pelo ordenamento
da actividade “normal” dos espaços públicos. O espaço produzido pelo poder
institucionalizado é uma ferramenta da manutenção desse poder.
Ao
tornar a cidade numa mercadoria consumível, o mercado imobiliário livre define
as classes económicas como o mapa de desigualdades e explorações sobre o qual é
construído o projecto urbano. A projecção urbana ganha dimensões diferentes
dependendo dos interesses económicos que a motivam. As comunidades fechadas
tornam-se o abrigo da classe alta à cidade. Elas permitem que as pessoas vivam
dentro da cidade e simultaneamente fora, como diz Bauman. A comunidade fechada
torna-se o oásis da mercantilização que abriga a pessoa do conflito da
cidade que a rodeia. As classes altas ganham, através do seu status social e
poder económico, acesso a espaços de maior harmonia e tranquilidade. Elas fogem
à cidade do conflito, mantendo-se firmemente no centro da cidade e argumentando
que a cidade é um espaço democrático de igualdade social, quando na verdade a
usam como mecanismo de manutenção das opressões. A classe baixa, por oposição,
vive em condições tão precárias e degradadas que é forçada a passar a sua vida
na rua e a participar num ciclo de consumo em espaço públicos privatizados. Ela
é alienada e sociabilizada para o conflito.
O
planeamento urbano é usado como instrumento da manutenção das desigualdades de
classes e promove a individualização e o conflito. Ele cria mecanismos de
exclusão física e simbólica como o gradeamento, a avenida, o muro; elementos arquitectónicos
que constroem como uma linha os processos de outrização. A cidade do
conflito torna-se um espaço de divisão e delineamento de classes sociais que é
mantido através do mercado imobiliário. Este mercado, por sua vez, é
influenciado pelas percepções simbólicas do espaço como seguro ou inseguro.
Torna-se
difícil encontrar sentido no mar moderno de separações, restrições e
gentrificações do espaço urbano. A pessoa está à deriva. O peso da
individualização é esmagador. A desconfiança do “Outro” chega ao seu clímax no
capitalismo tardio. Somos coagidos a ver os outros como concorrência e
inimigos. Delineamos os nossos próprios espaços pessoais que não podem ser
transgredidos a nenhum custo. As interacções sociais mais banais tornam-se agressivas
contra a nossa pessoa. Ser abordado na rua torna-se um acto hostil em que
olhamos o outro com desconfiança. Procuramos cercar-nos de muros e portas que
nos mantenham seguros do “Outro” e afastados do conflito. Na verdade,
procuramos criar a harmonia na nossa própria individualização.
Alterar
estes comportamentos requer esforço, mas é alcançável. É possível
imaginar um futuro em que o conflito não seja o mediador das relações
interpessoais. A sociedade heterogénea implica sempre o conflito, mas não força
que ele seja o paradigma. O importante é a forma como abordamos a
conflitualidade e como vemos o espaço que nos rodeia. Face ao conflito do
diferente, é preciso abertura e empatia. Estar disponível a ceder para o bem do
outro. As relações interpessoais com o “estranho” não podem ser vistas como hostis.
Elas têm de ser vistas como uma oportunidade de construir. A harmonia não deve
ser vista como um direito pessoal, mas como um bem em construção, por toda a
gente, em simultâneo.
É
preciso subverter a visão de uma cidade de posse e de divisão e pensar uma
cidade comum para as pessoas. Tais esforços já estão a ser feitos.
Eles existem no mundo real. Hortas comunitárias, espaços solidários, projectos
partilhados, contribuem para uma visão diferente do espaço urbano. É preciso
largarmos o apego ao material e a falsa noção de “segurança” que temos e
investir na comunidade. Não na comunidade da categorização e da separação, mas
numa comunidade de fronteiras abertas que não se defina pela identidade mas
pela vontade de participar, de construir o espaço colectivo. É preciso vontade
para mudar o que está mal e construir um espaço verdadeiramente democrático e
inclusivo que possamos de chamar de cidade. Não a cidade do conflito, da
categorização, da agressividade, da posse, mas a cidade aberta, livre,
solidária. Disposta a todos e todas que nela queiram participar e construir.
Daniel
Borges
Licenciado
em Ciências da Comunicação e mestrando em Sociologia pela Universidade Nova de
Lisboa. 22 anos. A estudar a precariedade, as economias informais e a relação
das pessoas com a cidade.
Lesley
Oldaker, On The Edge
Ficha
técnica
Data de publicação: 12.10.2022
Edição #36 • Outono 2022 •