Há
cerca de um mês, o jornal suíço 20 Minutes publicou uma notícia com o
título Arquitectos suíços fazem as criadas dormir no armário das
vassouras. A breve nota, que acompanha um vídeo com pouco
mais de dois minutos, acrescenta que estas divisões de apenas quatro metros
quadrados não têm janelas e encontram-se num edifício chamado Beirute
Terraces, desenhado pelo escritório dos arquitectos suíços Jacques Herzog e
Pierre de Meuron, vencedores, entre outros, do prémio Pritzker em 2001,
do Praemium Imperiale e da Medalha de Ouro do Royal Institute of
British Architects (RIBA), ambos em 2007.
Um
vídeo — preparado por Désirée Pomper e
Simona Ritter — fala-nos de um edifício
de luxo, com 130 apartamentos, no centro de Beirute e de uma publicação no
Twitter, de 23 de Julho, que mostrava as plantas assinalando os quartos de
serviço, sem janelas, com apenas 3,9 metros quadrados. A nota menciona ainda a
queixa de antigas trabalhadoras domésticas na conta de Instagram @dowanunited,
numa publicação feita a 1 de Agosto. Mais tarde, um jornalista visita um
apartamento e verifica que os quartos das empregadas domésticas não têm
janelas. Quando salienta isso ao agente imobiliário, o mesmo responde: «mas
elas só dormem aqui, o resto do dia passam no apartamento». Uma criada entrevistada
pergunta como é que alguém pode viver sem janelas. No vídeo é dito também que
os arquitectos foram contactados e que declararam «ter recomendado ao cliente
outros conceitos para o projecto», mas que «não foram capazes de impor
propostas alternativas». Roula Seghaier, da Federação Internacional das
Trabalhadoras Domésticas, entrevistada no mesmo vídeo, diz: «Os arquitectos
têm, definitivamente, outras opções. Conheço arquitectos que recusaram
comissões semelhantes por razões de consciência».
A
conta Instagram @dowanunited pertence à Domestic Workers Advocacy
Network. Na publicação sobre o edifício Beirut Terraces, pode ler-se
na legenda «Caros Herzog e de Meuron, os vossos apartamentos de luxo são as
nossas prisões. O vosso desenho nega-nos luz natural, dignidade e liberdade».
Já no texto que acompanha a imagem lê-se:
«O gabinete de
arquitectura suíço Herzog e de Meuron capitaliza a escravatura moderna no
Líbano. A sua concepção para o projecto Beirut Terraces vai além da
normalização do sistema kafala.[1] A lei neoliberal da construção no
Líbano é deliberadamente complacente ao favorecer o lucro económico sobre as
pessoas em favor das empresas de arquitectura e à custa das trabalhadoras
domésticas migrantes. Como resultado, esta legislação racista confina os
trabalhadores domésticos a pequenos espaços que servem as ‘necessidades’ das
classes médias e altas libanesas. Estes espaços são extremamente opressivos e
violam os direitos humanos.»
1. Segundo a Wikipédia,
a Kafala é um sistema de exploração utilizado em alguns países islâmicos
para monitorizar trabalhadores migrantes, principalmente dedicados à indústria
da construção ou a tarefas domésticas.
Num
relatório publicado pelo Basler Zeitung, a 3 de Outubro, sob o título Assim defendem os Herzog & de Meuron ‘quartos para
escravos’ no Líbano, Isabel Thommen dá conta de que o
gabinete de Herzog & de Meuron recusou inicialmente uma entrevista, para
condicioná-la depois à sua realização por parte do editor-chefe Marcel Rohr.
Então, responderam vagamente, pelo que foi feita uma segunda ronda de
perguntas.
Quando
lhes perguntaram se sabiam para que seriam utilizados esses quartos sem
janelas, responderam que sim: «As plantas, nas quais está escrito ‘quarto de
serviço’ em espaços sem janelas, foram elaboradas pelos Herzog & de Meuron»,
«a pedido expresso do cliente» e desculparam-se, declarando: «Não temos
qualquer influência na forma como os proprietários os utilizam».
Quando
se lhes pergunta porque não rejeitaram o projecto, respondem que estão
vinculados por contratos e que o seu incumprimento teria consequências legais
imprevisíveis — o que poderia ser interpretado como: optaram por ganhar
dinheiro em vez de perdê-lo. À outra pergunta respondem, repetindo, que «um
arquitecto só tem uma influência limitada no uso posterior que lhe dá o
proprietário», algo que se poderia compreender no caso de a Tate, em Londres,
decidir mostrar uma obra controversa no museu desenhado pelos suíços, ou no
caso de alguém cometer um crime num dos terraços do seu edifício em Beirute,
mas não quando se admite ter projectado os quartos de serviço para as
empregadas sem quaisquer janelas.
Mas
a pior resposta talvez seja quando lhes perguntam por que razão decidiram parar
a maioria dos seus projectos na Rússia, mas não o projecto para o edifício Beirut
Terraces: «Não se pode comparar essa situação com a da Rússia. A invasão da
Ucrânia e a repressão violenta por parte do Putin e do governo russo vão contra
todos os valores que defendemos enquanto escritório internacional». Por outras
palavras, existem formas de opressão e violência dirigidas a certos seres
humanos que parecem mais visíveis — e intoleráveis — para o escritório de
Herzog & de Meuron, enquanto outras formas de opressão e violência,
dirigidas a seres humanos com características diferentes — de outra região, de
outra cultura, ou talvez outro tom de pele — lhes parecem não só invisíveis,
mas até certo ponto toleráveis e até ajudam através dos seus desenhos a
exercê-las.
Mas
a cegueira — para chamar assim a uma mistura de desinteresse por certos
grupos de pessoas, de ignorância, de ganância e de falta de ética — não está
apenas do lado dos arquitectos. O projecto foi publicado há seis anos. Vários meios
de comunicação reproduziram sem grande reflexão o comunicado do escritório
suíço:
«A estrutura e
aparência do edifício baseiam-se na consciência e no respeito pelo passado de
Beirute. São cinco os princípios que definem o projecto: camadas e terraços,
interior e exterior, vegetação, vistas e privacidade, luz e identidade»
O
prestígio dos galardoados arquitectos suíços e as belas imagens de Iwan Baan
pareciam não exigir maior atenção. Na Arquitectura Viva publicaram-se algumas
plantas com pouca definição, que não mostram claramente os quartos para
escravas. Mas noutros locais, tais como o afasia, pode
ver-se sem grande esforço dois espaços, um com uma cama, com a legenda «MAID» e
a dimensão, 3,7 metros quadrados, e o outro com um pequeno lavatório, uma
sanita e um chuveiro, assinalado «MAID BATH», com 3,1 metros quadrados. Os dois
espaços sem janelas e nem sequer, a acreditar nas plantas, qualquer tipo de
conduta de ventilação artificial, espremidos entre uma cozinha de 23 metros
quadrados —com uma grande janela —, uma lavandaria de 6,4 e uma adega de 6,6
metros quadrados. Tivemos aí disponíveis essas plantas desde 2017 e não as
analisámos com atenção. De notar, para além disso, que maid [criada] é
uma palavra com um género definido: mulher.
Num
texto que escrevi há já alguns anos — e
que retomei aqui recentemente — comentava uma aula do
filósofo Gilles Deleuze sobre o pensamento de Michel Foucault, na qual
afirmava: «há uma ordem do dizer e outra do desenhar». Essa frase — cujo
contexto e implicações são mais amplos, mas que toca no que aqui é discutido —
encaixa bem no que vemos no caso de Herzog & de Meuron e no que podemos
verificar no trabalho de muitos outros arquitectos — como na Torre Mitikah ou na mítica casa de Luis Barragán: uma diferença radical
entre aquilo que é dito e aquilo que é desenhado.
Em
livros, revistas, conferências e colóquios, o meio arquitectural nunca se cansa
de promulgar as bondades da sua arte, as possibilidades que a arquitectura tem
de propiciar o bem comum, gerando espaços colectivos e abertos, e de melhorar a
forma como todos nós vivemos, ou, finalmente, para embelezar o nosso meio. E essas
possibilidades não estão em dúvida, mas os desenhos mostram muitas vezes o
contrário: o mesmo arquitecto que nas suas palavras afirma o que foi escrito
acima pode usar o mesmo lápis para desenhar tanto um museu, uma escola ou uma
sala com uma vista magnífica, como um armário de vassouras destinado, não por
acidente mas em plena consciência, a seres humanos.
É
sabido: o compromisso social de muitos dos arquitectos que mais celebramos
termina quando o contrato fica em risco e as perdas económicas são uma ameaça.
Esse mesmo compromisso é também diluído pela distância social e pelas
diferenças económicas, culturais ou de origem. Aqueles que entre nós participam
na celebração — com prémios, com publicações, com estudos e
investigações académicas, ou apenas com aplausos — devem tomar uma posição
crítica ou, pelo contrário, aceitar cinicamente esse fosso entre o que é dito e
o que é desenhado, entre o que é dito e o que é feito, entre o que poderia ser
e o que realmente é feito. Obviamente, parece-me que é tempo para uma crítica
radical da nossa cegueira cúmplice em muitas questões graves — a opressão, a
racialização, o sexismo, a marginalização, o extrativismo, e por aí em diante.
Mas não posso evitar, ao concluir este texto, recordar a sábia declaração de
Audre Lorde: As ferramentas do mestre nunca desmantelarão a casa do mestre
•
Alejandro Hernández Gálvez
Alejandro Hernández Gálvez é arquitecto e director editorial da
revista Arquine. Tendo publicado internacionalmente em diversas revistas
e jornais, é co-autor do livro 100x100 Arquitectos del siglo XX en México
e autor de Sombrillas, sombreros, sobras (de los princípios de la
arquitectura).
Imagem
Olympia, Édouard Manet, 1863.
Fotografia, imagens tridimensionais e plantas do Beirute Terraces.
Fotografia de Iwan Baan publicada no site afasia.
Nota de edição
Este texto de Alejandro Hernández Gálvez foi originalmente publicado
em espanhol, no dia 23 de Outubro de 2022, na revista Arquine. A tradução para português foi
realizada pelo Jornal Punkto.
Ficha Técnica
«Viver num espaço desenhado por um Pritzker, mas sem janelas.
Ou: da cegueira selectiva do arquitecto» • Alejandro Hernández Gálvez
Data de publicação: 26.10.2022
Edição #36 • Outono 2022 •