I
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, voltaram a ameaça
de um conflito mundial e o receio de um desastre nuclear. É impossível, nestas
circunstâncias, não recordar o período da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, não se
trata de um mero retorno do passado. Pois esta guerra, por mais que os seus
antecedentes mergulhem na história, acontece num contexto radicalmente novo –
de radicalização e aceleração dos discursos, dos afectos e das acções.
Vale a pena comparar as reacções globais ao surto do
coronavírus em 2020 e à invasão da Ucrânia em 2022. Mais uma vez, acompanhamos
as notícias obsessivamente. Toda a atenção, toda a energia e toda a angústia
parecem ter um único foco. O assunto insinua-se entre os temas delicados devido
aos quais uma conversa entre amigos pode descambar em zanga. Surgem correntes
de solidariedade e indignação à escala global. Ainda assim, pouco a pouco, os
ímpetos da cólera e da empatia diminuem.
Eis o paradoxo. Por um lado, sentimos que já
assistimos a esta guerra. Por outro lado, sentimos que nunca assistimos a uma
guerra assim. É como se o passado e o futuro se enlaçassem. O passado – o
passado da Guerra Fria – retorna. Mas retorna através do futuro – do futuro que
a pandemia, precipitando uma torção dos sentidos do próximo e do distante,
permitiu entrever.
II
Em A Torção dos Sentidos, defendi que
o choque pandémico permitiu reconhecer um acontecimento mais vasto: o impacto
da revolução digital sobre as condições da experiência contemporânea. A
pandemia teria revelado e acelerado uma mutação no modo como imaginamos, às
escalas local e global, as distâncias e as velocidades. Ora, se isto se
manifesta nas vivências do amor, da viagem, do estudo, da comunidade e da arte,
manifesta-se também na experiência do medo. Também o modo como avaliamos a
proximidade da ameaça, a extensão da vulnerabilidade ou a margem de manobra se
alterou.
Hoje, a própria guerra parece mais próxima. Não mais
próxima do que a pandemia, que nos ameaçava à porta de casa, mas mais próxima
do que as guerras que a precederam. Não se trata aqui de geografia, mas de
imaginação. Nem a guerra dos Balcãs, que aconteceu no coração da Europa e não
às suas portas, pareceu tão próxima de outros países europeus. A guerra atinge-nos,
onde quer que estejamos, mais imediata e intensamente do que antes. Não temos
de acender a televisão. Basta um relance do telemóvel, das redes sociais ou dos
e-mails. Somos bombardeados por notícias, comentários, mapas, vídeos e imagens.
O que Maurizio Ferraris intuiu, aproximando, em
virtude do sentimento de alerta que suscitam, a “mobilização total” de que
falara Ernst Jünger da “mobilização total” que vivemos hoje – sempre que a
vibração de um telemóvel nos acorda a meio da noite –, torna-se, por estes
dias, literal. Hoje, escasseiam as horas em que uma notificação não nos remete
para o conflito na Ucrânia. Estamos totalmente mobilizados: se não para a
guerra, para o pathos colérico.
A dialéctica entre proximidade e distância não se joga
apenas no espaço mas também no tempo. Há uma reciprocidade entre o modo como imaginamos
a proximidade da ameaça e a urgência da (re)acção. A sensação que
nos assalta, diante de um perigo mais próximo, mais iminente e mais grave, é a
de que urge agir imediatamente. E imediatamente importa discutir se a boa
reacção – aquela que as nossas emoções desejam e que os nossos discursos exigem
– é “contragolpe”, “recuo” ou “refúgio”.
III
No meio da perplexidade, da indignação e da
confusão, verifica-se um fenómeno curioso. A animosidade que marca os debates
em curso manifesta-se sobre um fundo de concordância. De facto, tanto à direita
quanto à esquerda, há quase unanimismo no que tange à condenação da invasão da
Ucrânia pela Rússia. Ainda assim, reina a discórdia.
Não que partido tomar mas como tomar o “bom” partido – eis o que
gera celeuma. Todos se sentem indignados, ou mesmo furiosos, com a posição que consideram
mais errada. Mas não será esta fúria um sintoma de que não nos livramos do sensação
de que nenhuma forma de tomar o partido “certo” escapa a estar, de um certo
ponto de vista, “errada”?
Não condenar a invasão da
Ucrânia pela Rússia é escandaloso. Nenhuma contextualização a poderia
justificar. Apoiar o envolvimento da NATO é escandaloso. É óbvio o perigo de
uma escalada catastrófica. Mas as posições intermédias são também, à sua
maneira, problemáticas. Sim a algum apoio militar, mas somente de carácter
defensivo? Certo, mas não será isto condenar a Ucrânia a uma lenta destruição?
Não a todo e qualquer envolvimento militar, mas toda a pressão política, aliada
a sanções económicas, no sentido de acelerar a negociação da paz? Certo, mas
não será isto, não sendo possível um acordo sem cedências muito significativas
às pretensões de Putin, fechar os olhos aos avanços de uma potência autoritária
e expansionista, abrindo um precedente perigoso?
Qual a melhor forma de
assumir o bom partido? Não é fácil responder a esta questão. Dito isto, estou
convencido de que o mal-estar que nos assalta, àqueles e àquelas que têm o
privilégio de acompanhar o conflito à distância, tem no seu âmago o seguinte
paradoxo: sentimos, mais do que nunca, a urgência de uma tomada de posição, mas
esta escapa-nos por entre os dedos da convicção. Levantamos a voz porque,
agravando os sentimentos de revolta e de impotência, o nosso pensamento vacila.
É como se a nossa indignação escorregasse nas dúvidas que nos cercam e procurássemos,
inconscientemente, esconder o embaraço. Estamos confusos. Mas esta confusão não
é meramente subjectiva. Ela caracteriza, objectivamente, a situação histórica e
política em que nos encontramos.
IV
Tem-se repetido à exaustão que a verdade é a primeira
vítima da guerra. São óbvios os motivos pelos quais esta máxima se revelaria
oportuna para pensar a invasão da Ucrânia. Não há guerra em que a comunicação
social não seja, de uma forma ou de outra, instrumentalizada. O choque,
fomentando o medo e o ódio das massas, gera também a disponibilidade para
aceitar as medidas mais drásticas. Ora, não só a mobilização do estado de choque se radicalizou, como
bem notou Pedro Levi Bismarck, como também se verifica uma disseminação
espontânea e descontrolada dos mecanismos da parcialidade.
O cancelamento de tudo o que seja made or born in Russia é disto um
exemplo eloquente, cuja arbitrariedade e cegueira têm na expulsão de Sergei Loznitsa da Academia de Cinema
Ucraniano um contraponto perfeitamente simétrico. O cineasta
ucraniano, que se havia desvinculado da Academia de Cinema Europeu a 27 de
Fevereiro, por esta não ter condenado de forma inequívoca a invasão da Ucrânia,
foi expulso a 19 de Março da associação congénere do seu país. E por que motivo?
Por ter demonstrado falta de patriotismo e excesso de cosmopolitismo ao
defender colegas russos contra o cancelamento indiscriminado.
Deixou de haver uma fronteira clara entre a guerra,
por um lado, e as reacções à guerra, por outro lado. O campo em que os testemunhos
e os comentários aparecem é também
aquele em que a guerra acontece. As
notícias, vídeos ou fotografias, sobretudo quando suscitam reacções em massa, não
são apenas “filtros”. São também “armas”. Contudo, são “armas” na justa medida
em que permanecem “filtros”. Não me refiro às imagens em movimento que o cinema
e o vídeo permitiram gravar ou transmitir, e cuja importância na guerra Paul Virilio
analisou em Guerra e Cinema, mas aos
filtros afectivos, mais “quentes” ou mais “frios”, que nos restituem a temperatura
do espectáculo bélico. Das ondas de indignação geradas por fake news às tentativas de enganar com deepfakes, o filtro age. A sua eficácia, de enfurecimento ou
manipulação, é inseparável da coloração que emprestam aos acontecimentos. É
esta coloração que espicaça as massas em forma de enxame, que se enfrentam,
arregimentam ou ignoraram, por meio de emojis,
hashtags e cancelamentos.
A vantagem que o mapeamento do território e a
estratégia militar representavam nas batalhas de antanho, representa hoje a
literacia e a agilidade digitais dos beligerantes. Yanis Varoufakis falou em tecno-feudalismo a propósito da monopolização das
condições de visibilidade e exposição mediáticas. Hoje, as plataformas em que
essa visibilidade, audibilidade e inteligibilidade se jogam são palcos da
guerra. A decisão sobre a passagem por um estreito tem tanta importância quanto
a decisão sobre a presença numa rede social. Zuckerberg e Erdogan, quer
queiramos quer não, são personagens igualmente activas, embora secundárias,
desta guerra.
Entretanto, cabe também reconhecer que as fake news, a deturbação deliberada da informação,
surgem de ambos os lados. Com este reconhecimento, não se relativiza de todo a
culpa do conflito: a condenação do invasor deve ser inequívoca. Ao mesmo tempo,
sugere-se que esta guerra, precisamente na medida em que põe a nu como o regime
da pós-verdade se entranhou na política contemporânea, permite ainda um
vislumbre de lucidez. Torna-se absolutamente claro que não basta estar contra
as fake news para estar do lado da
verdade.
V
Escapando à falsa dicotomia entre a tomada de
posição e a disposição para a análise, surgem intervenções em que a tónica é
posta no contexto geopolítico à escala planetária. A guerra na Ucrânia, na qual
Žižek reconhece a passagem de uma “guerra fria” para uma “paz quente”,
prenunciaria uma nova etapa da política global, onde a relação de forças entre
as grandes potência se redefine. Reconhece-se, igualmente, como estas grandes
potências mobilizam afectos hostis e apostam na sua disseminação e
intensificação por meios digitais.
Estas análises são produtivas. Mas há um ponto ao
qual não podemos fazer vista grossa. Estes poderes não controlam a eficácia
destes meios. Ao olhar crítico, portanto, não deve escapar a desproporção entre
o recurso (deliberado) aos meios e a previsão (deficiente) dos efeitos. Há ingenuidade
em ignorar que esta guerra é uma manifestação do confronto entre grandes
potências à escala mundial. Mas há igualmente ingenuidade em supor que para
compreender este conflito basta retomar a análise geopolítica anterior ao
famigerado fim da história.
Não compreenderemos o que esta guerra significa –
não compreenderemos o que esta guerra terá significado, os perigos e as ameaças
que nela se terão insinuado ameaçadoramente ou consumado catastroficamente – se
não nos apercebermos do enlace entre passado e futuro que a constitui. Importa
recordar o passado da Guerra Fria. Mas importa igualmente reconhecer o futuro
que pandemia permitiu, revelando alguns dos seus escolhos, pântanos e enclaves,
entrever.
É certo que o futuro, nomeadamente o futuro digital de que fala Shoshana Zuboff,
permanece por decidir. É certo que a tecnofobia, que, entre tantos outros medos,
também ressurgiu em contexto pandémico, não é solução. Ainda assim, há que
distinguir entre o futuro tal como poderia acontecer e o futuro tal como se
desenrola diante dos nossos olhos: o futuro
realmente existente. Esta paz – pois é ainda uma paz que vivemos à escala
global, por mais ignóbil, cínica e periclitante que seja – entra em fase de
ebulição. A aceleração prenuncia uma mudança de estado.
Só quando intuirmos – mais do que conceptualizarmos
– que uma terceira guerra mundial pode começar, não com um assassinato, não com
uma invasão, mas com uma escalada de tom no Twitter, só aí compreenderemos o
perigo que atravessamos por estes dias. E só aí, além disso, reconheceremos
como também, à escala minúscula que é a dos nossos comentários, partilhas e
intervenções mediáticas, somos um grão de areia nesse terreno movediço em que
nos movemos e podemos, a qualquer momento, soçobrar.
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João Pedro Cachopo
João Pedro Cachopo é o autor de A
Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital (Documenta, 2020),
traduzido para inglês como The Digital Pandemic: Imagination in Times of
Isolation (Bloomsbury, 2022), e de Verdade e Enigma: Ensaio sobre o
pensamento estético de Adorno (Vendaval, 2013). Também co-editou Rancière
and Music (Edinburgh University Press, 2020) e Estética e Política entre
as Artes (Edições 70, 2017).
Imagem
Fotograma de The War Game (1966) de Peter Watkins.
Ficha Técnica
Data
de publicação: 05.04. 2022
Edição #35 • Primavera 2022 •