Bem-vindo ao Futuro Realmente Existente • João Pedro Cachopo

 



I

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, voltaram a ameaça de um conflito mundial e o receio de um desastre nuclear. É impossível, nestas circunstâncias, não recordar o período da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, não se trata de um mero retorno do passado. Pois esta guerra, por mais que os seus antecedentes mergulhem na história, acontece num contexto radicalmente novo – de radicalização e aceleração dos discursos, dos afectos e das acções.

Vale a pena comparar as reacções globais ao surto do coronavírus em 2020 e à invasão da Ucrânia em 2022. Mais uma vez, acompanhamos as notícias obsessivamente. Toda a atenção, toda a energia e toda a angústia parecem ter um único foco. O assunto insinua-se entre os temas delicados devido aos quais uma conversa entre amigos pode descambar em zanga. Surgem correntes de solidariedade e indignação à escala global. Ainda assim, pouco a pouco, os ímpetos da cólera e da empatia diminuem.

Eis o paradoxo. Por um lado, sentimos que já assistimos a esta guerra. Por outro lado, sentimos que nunca assistimos a uma guerra assim. É como se o passado e o futuro se enlaçassem. O passado – o passado da Guerra Fria – retorna. Mas retorna através do futuro – do futuro que a pandemia, precipitando uma torção dos sentidos do próximo e do distante, permitiu entrever.

 

 

II

Em A Torção dos Sentidos, defendi que o choque pandémico permitiu reconhecer um acontecimento mais vasto: o impacto da revolução digital sobre as condições da experiência contemporânea. A pandemia teria revelado e acelerado uma mutação no modo como imaginamos, às escalas local e global, as distâncias e as velocidades. Ora, se isto se manifesta nas vivências do amor, da viagem, do estudo, da comunidade e da arte, manifesta-se também na experiência do medo. Também o modo como avaliamos a proximidade da ameaça, a extensão da vulnerabilidade ou a margem de manobra se alterou.

Hoje, a própria guerra parece mais próxima. Não mais próxima do que a pandemia, que nos ameaçava à porta de casa, mas mais próxima do que as guerras que a precederam. Não se trata aqui de geografia, mas de imaginação. Nem a guerra dos Balcãs, que aconteceu no coração da Europa e não às suas portas, pareceu tão próxima de outros países europeus. A guerra atinge-nos, onde quer que estejamos, mais imediata e intensamente do que antes. Não temos de acender a televisão. Basta um relance do telemóvel, das redes sociais ou dos e-mails. Somos bombardeados por notícias, comentários, mapas, vídeos e imagens.

O que Maurizio Ferraris intuiu, aproximando, em virtude do sentimento de alerta que suscitam, a “mobilização total” de que falara Ernst Jünger da “mobilização total” que vivemos hoje – sempre que a vibração de um telemóvel nos acorda a meio da noite –, torna-se, por estes dias, literal. Hoje, escasseiam as horas em que uma notificação não nos remete para o conflito na Ucrânia. Estamos totalmente mobilizados: se não para a guerra, para o pathos colérico.

A dialéctica entre proximidade e distância não se joga apenas no espaço mas também no tempo. Há uma reciprocidade entre o modo como imaginamos a proximidade da ameaça e a urgência da (re)acção. A sensação que nos assalta, diante de um perigo mais próximo, mais iminente e mais grave, é a de que urge agir imediatamente. E imediatamente importa discutir se a boa reacção – aquela que as nossas emoções desejam e que os nossos discursos exigem – é “contragolpe”, “recuo” ou “refúgio”.

 

III

No meio da perplexidade, da indignação e da confusão, verifica-se um fenómeno curioso. A animosidade que marca os debates em curso manifesta-se sobre um fundo de concordância. De facto, tanto à direita quanto à esquerda, há quase unanimismo no que tange à condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia. Ainda assim, reina a discórdia. Não que partido tomar mas como tomar o “bom” partido – eis o que gera celeuma. Todos se sentem indignados, ou mesmo furiosos, com a posição que consideram mais errada. Mas não será esta fúria um sintoma de que não nos livramos do sensação de que nenhuma forma de tomar o partido “certo” escapa a estar, de um certo ponto de vista, “errada”?

Não condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia é escandaloso. Nenhuma contextualização a poderia justificar. Apoiar o envolvimento da NATO é escandaloso. É óbvio o perigo de uma escalada catastrófica. Mas as posições intermédias são também, à sua maneira, problemáticas. Sim a algum apoio militar, mas somente de carácter defensivo? Certo, mas não será isto condenar a Ucrânia a uma lenta destruição? Não a todo e qualquer envolvimento militar, mas toda a pressão política, aliada a sanções económicas, no sentido de acelerar a negociação da paz? Certo, mas não será isto, não sendo possível um acordo sem cedências muito significativas às pretensões de Putin, fechar os olhos aos avanços de uma potência autoritária e expansionista, abrindo um precedente perigoso?

Qual a melhor forma de assumir o bom partido? Não é fácil responder a esta questão. Dito isto, estou convencido de que o mal-estar que nos assalta, àqueles e àquelas que têm o privilégio de acompanhar o conflito à distância, tem no seu âmago o seguinte paradoxo: sentimos, mais do que nunca, a urgência de uma tomada de posição, mas esta escapa-nos por entre os dedos da convicção. Levantamos a voz porque, agravando os sentimentos de revolta e de impotência, o nosso pensamento vacila. É como se a nossa indignação escorregasse nas dúvidas que nos cercam e procurássemos, inconscientemente, esconder o embaraço. Estamos confusos. Mas esta confusão não é meramente subjectiva. Ela caracteriza, objectivamente, a situação histórica e política em que nos encontramos.

 

IV

Tem-se repetido à exaustão que a verdade é a primeira vítima da guerra. São óbvios os motivos pelos quais esta máxima se revelaria oportuna para pensar a invasão da Ucrânia. Não há guerra em que a comunicação social não seja, de uma forma ou de outra, instrumentalizada. O choque, fomentando o medo e o ódio das massas, gera também a disponibilidade para aceitar as medidas mais drásticas. Ora, não só a mobilização do estado de choque se radicalizou, como bem notou Pedro Levi Bismarck, como também se verifica uma disseminação espontânea e descontrolada dos mecanismos da parcialidade.

O cancelamento de tudo o que seja made or born in Russia é disto um exemplo eloquente, cuja arbitrariedade e cegueira têm na expulsão de Sergei Loznitsa da Academia de Cinema Ucraniano um contraponto perfeitamente simétrico. O cineasta ucraniano, que se havia desvinculado da Academia de Cinema Europeu a 27 de Fevereiro, por esta não ter condenado de forma inequívoca a invasão da Ucrânia, foi expulso a 19 de Março da associação congénere do seu país. E por que motivo? Por ter demonstrado falta de patriotismo e excesso de cosmopolitismo ao defender colegas russos contra o cancelamento indiscriminado.

Deixou de haver uma fronteira clara entre a guerra, por um lado, e as reacções à guerra, por outro lado. O campo em que os testemunhos e os comentários aparecem é também aquele em que a guerra acontece. As notícias, vídeos ou fotografias, sobretudo quando suscitam reacções em massa, não são apenas “filtros”. São também “armas”. Contudo, são “armas” na justa medida em que permanecem “filtros”. Não me refiro às imagens em movimento que o cinema e o vídeo permitiram gravar ou transmitir, e cuja importância na guerra Paul Virilio analisou em Guerra e Cinema, mas aos filtros afectivos, mais “quentes” ou mais “frios”, que nos restituem a temperatura do espectáculo bélico. Das ondas de indignação geradas por fake news às tentativas de enganar com deepfakes, o filtro age. A sua eficácia, de enfurecimento ou manipulação, é inseparável da coloração que emprestam aos acontecimentos. É esta coloração que espicaça as massas em forma de enxame, que se enfrentam, arregimentam ou ignoraram, por meio de emojis, hashtags e cancelamentos.

A vantagem que o mapeamento do território e a estratégia militar representavam nas batalhas de antanho, representa hoje a literacia e a agilidade digitais dos beligerantes. Yanis Varoufakis falou em tecno-feudalismo a propósito da monopolização das condições de visibilidade e exposição mediáticas. Hoje, as plataformas em que essa visibilidade, audibilidade e inteligibilidade se jogam são palcos da guerra. A decisão sobre a passagem por um estreito tem tanta importância quanto a decisão sobre a presença numa rede social. Zuckerberg e Erdogan, quer queiramos quer não, são personagens igualmente activas, embora secundárias, desta guerra.

Entretanto, cabe também reconhecer que as fake news, a deturbação deliberada da informação, surgem de ambos os lados. Com este reconhecimento, não se relativiza de todo a culpa do conflito: a condenação do invasor deve ser inequívoca. Ao mesmo tempo, sugere-se que esta guerra, precisamente na medida em que põe a nu como o regime da pós-verdade se entranhou na política contemporânea, permite ainda um vislumbre de lucidez. Torna-se absolutamente claro que não basta estar contra as fake news para estar do lado da verdade.

 

V

Escapando à falsa dicotomia entre a tomada de posição e a disposição para a análise, surgem intervenções em que a tónica é posta no contexto geopolítico à escala planetária. A guerra na Ucrânia, na qual Žižek reconhece a passagem de uma “guerra fria” para uma “paz quente”, prenunciaria uma nova etapa da política global, onde a relação de forças entre as grandes potência se redefine. Reconhece-se, igualmente, como estas grandes potências mobilizam afectos hostis e apostam na sua disseminação e intensificação por meios digitais.

Estas análises são produtivas. Mas há um ponto ao qual não podemos fazer vista grossa. Estes poderes não controlam a eficácia destes meios. Ao olhar crítico, portanto, não deve escapar a desproporção entre o recurso (deliberado) aos meios e a previsão (deficiente) dos efeitos. Há ingenuidade em ignorar que esta guerra é uma manifestação do confronto entre grandes potências à escala mundial. Mas há igualmente ingenuidade em supor que para compreender este conflito basta retomar a análise geopolítica anterior ao famigerado fim da história.

Não compreenderemos o que esta guerra significa – não compreenderemos o que esta guerra terá significado, os perigos e as ameaças que nela se terão insinuado ameaçadoramente ou consumado catastroficamente – se não nos apercebermos do enlace entre passado e futuro que a constitui. Importa recordar o passado da Guerra Fria. Mas importa igualmente reconhecer o futuro que pandemia permitiu, revelando alguns dos seus escolhos, pântanos e enclaves, entrever.

É certo que o futuro, nomeadamente o futuro digital de que fala Shoshana Zuboff, permanece por decidir. É certo que a tecnofobia, que, entre tantos outros medos, também ressurgiu em contexto pandémico, não é solução. Ainda assim, há que distinguir entre o futuro tal como poderia acontecer e o futuro tal como se desenrola diante dos nossos olhos: o futuro realmente existente. Esta paz – pois é ainda uma paz que vivemos à escala global, por mais ignóbil, cínica e periclitante que seja – entra em fase de ebulição. A aceleração prenuncia uma mudança de estado.

Só quando intuirmos – mais do que conceptualizarmos – que uma terceira guerra mundial pode começar, não com um assassinato, não com uma invasão, mas com uma escalada de tom no Twitter, só aí compreenderemos o perigo que atravessamos por estes dias. E só aí, além disso, reconheceremos como também, à escala minúscula que é a dos nossos comentários, partilhas e intervenções mediáticas, somos um grão de areia nesse terreno movediço em que nos movemos e podemos, a qualquer momento, soçobrar.

 

 

 

João Pedro Cachopo

João Pedro Cachopo é o autor de A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital (Documenta, 2020), traduzido para inglês como The Digital Pandemic: Imagination in Times of Isolation (Bloomsbury, 2022), e de Verdade e Enigma: Ensaio sobre o pensamento estético de Adorno (Vendaval, 2013). Também co-editou Rancière and Music (Edinburgh University Press, 2020) e Estética e Política entre as Artes (Edições 70, 2017).

 

Imagem

Fotograma de The War Game (1966) de Peter Watkins.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 05.04. 2022

Edição #35 • Primavera 2022 •