Wayne Thiebaud (1920-2021) protegeu durante os anos 1960 um certo tradicionalismo de cavalete, desenvolto em óleos e tópicos de estúdio como a natureza-morta. O mais interessante é tê-lo feito quando a vanguarda se começava a dividir, essencialmente, entre a intensidade técnica de uma abstracção tardo-modernista ainda dominante (entre de Kooning, Franz Kline ou Rothko) e uma neovanguarda progressivamente mais céptica do humanismo modernista, dedicada ao mundo da reificação económica e a uma mecanização antitécnica – como as pesquisas da Pop Art e do Nouveau Réalisme, ou dos artistas do Fluxus ou, ainda, as aventuras predecessoras de Rauschenberg e Jasper Johns.
Ainda assim, Thiebaud manteve-se próximo de alguma proposta de síntese entre os dois lados. Não é, isso é certo, um Roy Lichtenstein, que projectava as suas cópias de banda-desenhada na tela para as reproduzir a óleo: o artesanal como que imprimindo o factor maquinal do projector, dando à mão do artista o pulso mecânico da produção em massa. Thiebaud usou firmemente o trabalho tradicional da pintura, desvirtuado da neovanguarda anti-pictórica e de truques reprodutivos que não os do punho – embora também infundido, na própria tinta e na labuta do pincel, com a maquinação imagética do capitalismo.
Depois de trabalhar como cartoonista e professor, e de ter desenvolvido uma obra inicial mais próxima do Expressionismo Abstracto, o pintor começou a experimentar, no início dos sessentas, com a linguagem pictórica que se sedimentou até ao final da sua vida. Os seus retratos e paisagens abstractizadas refrescam quem se depare com o grosso da sua obra mais conhecida, que muito se distende por naturezas-mortas com vários elementos constantes – mas o que fica da sua pintura são mesmo esses tópicos do costume, produtos banais de consumo como roupa, cosmética, fruta, dispensadores de pastilhas, máquinas de arcade e, acima de tudo, bolos e doces. A pastelaria e doçaria serão a temática mais impressionante de Thiebaud pela combinação perfeita dos seus melhores atributos pictóricos, a começar pelas superfícies muito lisas, largas e de um cromatismo intenso, a tempos em jogos de complementares, tudo compactado num impasto generoso, firmemente aplicado e combinado com sombreados acentuados nos fundos amplos, muitas vezes dominados por brancos, cremes ou outras tonalidades mais benignas. Esta conjugação de superfícies espessas, cores frondosas, pinceladas firmes e sombreados contrastantes e bem definidos acaba a congeminar uma experiência visual e textural muito forte e saturada, tratando, ao mesmo tempo, que os seus contrastes e amplitudes superficiais acabem o tanto fortificados para também a transformarem, paradoxalmente, numa impressão de frieza e distância. É que essa saturação expande bastante a abrangência ocular da cor uniformizada e engrossada, que nisto muito se impessoaliza – mais ainda ao corporalizar objectos desapaixonadamente inseridos em fundos largos e descaracterizados, todo um processo de arrefecimento acoplado à satisfação sensorial da pastelaria.
Aquele luxo plástico tem muito da materialidade veemente do Expressionismo Abstracto; já esta secura distante evoca a austeridade da pintura neo-realista americana, e com a sua amplitude cromática e os contrastes e angulosidades mais definidos lembra, especificamente, Edward Hopper e a ardência da sua frieza arrestada e silenciosa. A este seco vem também uma veia de Giorgio Morandi, paralelo a Hopper na amplitude cromática, mas já com alguma perturbação superficial pelo impasto e pelas pinceladas, e pródigo na repetibilidade de formas – uma exaustão de jarras e garrafas ao longo de naturezas-mortas enxutas, de fundos esvaziados e em muitos tons de creme, branco e cinzento. Em Thiebaud, a herança fria destes artistas e a fartura pictórica remetem para uma dinâmica contraditória de excitação e fleuma que contextualiza muito especificamente essa riqueza material.
O seu apelo visual à boleia de cores fortes, simplificações formais e gordura textural nada dista do trabalho sensitivo da publicidade, que veicula um produto instigando uma apetência ao seu consumo, no que usa muitos dos mesmos truques de estimulação visual. Este discurso publicitário tornado pintura de estúdio acrescenta uma dimensão retrospectiva ao trabalho de Thiebaud, que parece reconhecer inversamente a natureza apropriadora da produção mercantil face às inovações plásticas modernistas, que delas recolheu (por exemplo) o cromatismo saturado e o sintetismo formal para o seu design e imagens. Por outro lado, esta apropriação revertida não vem só; arrasta atrás de si uma frieza seca na sua emanação sensitiva que realça qualquer coisa entranhada nessa mesma reutilização. Diríamos que a doçaria de Thiebaud adquire uma camada maciça, apojada como massa húmida, e que a frieza dessa emanação simularia a refrigeração para o seu prolongamento lucrativo; mas essa sobrevivência é ainda mais profunda da perspectiva da regência produtiva destes objectos e das considerações consumistas que a guiam. A sua repetição produtiva e difusão profunda, própria do produto massificado pela publicidade e pelo consumo, resulta numa sua reiteração em prol da rentabilidade, o que reverte unicamente para a sua condição material enquanto veículo de pura produção de riqueza. Entregue a um tal desígnio, o objecto comercializado esvai-se de qualidade não-económica e banaliza-se como um núcleo ressequido de consumo.
Esta reificação produtiva ressalta, à partida, quando Thiebaud isola os elementos das suas naturezas-mortas nos tais espaços descaracterizados, exibindo-os desconexos de tudo que não a sua estéril apresentação, mas também quando os repete numa mesma cena – quando, por exemplo, dispõe muita fatia junta, na lei da repetição rentabilizável. A esta linguagem exibidora acresce a secura do impessoalismo cromático e dos seus contrastes corpulentos, e as fatias de bolos e doces – tanto quanto a roupa, cosmética e outros objectos que representa – vêem-se de feição neutralizante e de toque sensorialmente endurecido. O que não destrói, em simultâneo, a abundância desses mesmos meios visuais e a sua impressão de saturação estimulante: a força das cores, ainda que expandida ao ponto da aridez, mantém o traço de uma superfície avivada; e o impasto, mesmo enquanto condensador dessa frieza, faz borbulhar a tinta e afogueia-se numa cremosidade suave aos sentidos, particularmente sedutora a mimetizar a casca natada da pastelaria.
Vê-se daqui que as condições do sensorialismo agradável são as mesmas da sua exaurição; a diferença está no grau e no sentido de utilização que o determina, e Thiebaud demonstra-o equilibrando muito bem os pólos opostos e mostrando indícios dos dois a meio da sua interferência mútua: realiza-se, enfim, uma estimulação inebriante sintetizada com a sua implosão, e nisto não se escapa da consumação da operação mercantilista sobre o concreto, a da sua exaustão excitante em vias de o explorar e esgotar. Um momento claro desta relação está no cruzamento directo entre estas naturezas-mortas e uma imagem mercantilizada ao extremo, no caso de duas pinturas de 1988, uma em que aparece o rosto do Rato Mickey no frontispício de um bolo, e outra, a mais interessante, em que o próprio Mickey surge a soltar uma sombra azulada num dos vazios habitualmente reservados para as confecções. Neste último exemplo vemos a reificação remontada num intermediário menos remoto, muito mais intenso enquanto imagem esvaída ao serviço de uma indústria, tão mais imediato à ambivalência plástica de Thiebaud e dos seus bolos. Ao contrário de Lichtenstein, que é uma mão adaptativa à máquina, e de Andy Warhol, que quis ser uma máquina repetindo nas suas telas reproduções mecânicas, a Pop de Thiebaud mais é a máquina reerguida no produto manual do artesão, que penetra numa discursividade imagética do consumismo.
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Tomás Gorjão
Nasceu em Lisboa em 1997. Estuda História de Arte na Faculdade de Letras da universidade de Lisboa. É fundador, director e editor da revista Lote. Está aí publicado, e na Gazeta de Poesia Inédita, n’A Bacana e na Brotéria.
Imagens
1. Pie Counter, Wayne Thiebaud, 1963
2. Mickey Mouse, Wayne Thiebaud, 1988
Ficha Técnica
Data de publicação: 26.04.2022
Edição #35 • Primavera 2022 •