Poucos
dias depois dos primeiros bombardeamentos perguntaram a Sergei Loznitsa,
cineasta ucraniano, se o seu impulso foi o de preparar cocktails molotov
ou o de fazer um novo filme. Ele respondeu que, naquele momento, há os que têm
de combater e os que têm de pensar, rejeitando cordialmente ambas as hipóteses.
Ele precisava de tempo para pensar. Umas semanas depois foi banido da Ukrainian
Film Academy por se opor ao boicote dos realizadores russos. Acusado de não ser
suficientemente patriota, apelidaram-no de “cosmopolita”. A ideia de Loznitsa é
simples: não se deveria excluir da luta contra a guerra todos aqueles que se
opõem a ela, e nessa oposição incluem-se, obviamente, todos os russos que têm
ajudado a denunciar, condenar e a combater o regime de Putin – “We must not
judge people based on their passports. We can judge them on their acts.”
Apanhados
na fúria dos acontecimentos, tendemos a cair na tentação de a simplificar,
enquanto as bandeiras, vazias, estalam ao vento. Virilio, esse “filho da guerra
total” que pensou o cinema como um campo de batalha (Guerra e Cinema,
1986), defendia insistentemente a forma como a velocidade nos turva a visão:
quanto mais rápido nos movemos menor a visão periférica – a velocidade achata a
visão; quanto maior a velocidade menor o discernimento – a velocidade congela.
Ao condenar o cancelamento dos cineastas russos, Loznitsa não quis mais do que
desacelerar o ímpeto de censura que arrasa com tudo o que está do outro lado.
Desse outro lado, deparamo-nos com autores como Andrey Zvyagintsev onde, em
títulos como “Leviathan” ou “Loveless”, nos serve, gelidamente, uma paisagem de
desânimo que nos conta como é viver na Rússia de Putin. Assente na lentidão e
frieza das suas narrativas meticulosamente cuidadas, o realizador russo expõe
uma sociedade absorvida por um mundo elitista, corrupto e capitalista, e a
apatia causada pela impotência dos indivíduos perante o novo liberalismo
oligárquico. Ora, retirar este autor (entre muitos outros) do circuito não é só
empobrecer o nosso nível de atenção. É interromper o curso das lutas,
individuais ou colectivas, mais ou menos silenciosas, a que os autores se
propõem. É lá dentro, daquele lado, onde a luta também se faz, que nos devemos
demorar.
A
rapidez com que um jornalista não se coibiu de confrontar Loznitsa com uma
acção imediata, um instinto (cinema ou cocktail?), deve servir de alerta para
os perigos da velocidade cruzeiro a que nos querem colocar. E a resposta de
Loznitsa deve servir de mote para conseguirmos conservar a lucidez de não nos
precipitarmos em proezas, já que, de repente, assistimos à proibição indiscriminada
dos partidos de esquerda, ao mesmo tempo que sabemos da libertação de nazis em
nome da ajuda humanitária. Repare-se, então, como o encadeamento apressado das
decisões se precipita numa inversão da posição dos diferentes actores no
contexto da guerra. A esta velocidade já não interessa quem pensa – não há
tempo para isso – e enquanto repousamos na vertigem alucinante das divisões
fáceis (há heróis a fazer o nosso trabalho) fechamos os olhos aos que ensaiam,
na lentidão, a melhor imagem possível.
Sergei
Loznitsa é o mesmo realizador que, em 1999, filmou as estações de comboio
russas onde os passageiros, exaustos, dormiam. Em "The Train Stop"
observamos o sono dessas pessoas, esperando os comboios que ouvimos ao fundo,
sem, no entanto, as acordar. Nesse filme nunca teremos a resposta para a vida
desses corpos que descansam num terminal de caminhos de ferro. Nunca teremos a
perspectiva de uma acção daqueles homens, mulheres e crianças que se acomodam,
como podem, nos bancos de madeira, no chão, nos outros. O sono é o marasmo com
que nós, espectadores, teremos de lidar. A revolução nunca se fará naquele
documento, mas o tédio que resulta dessa paralisia – dessa aparente não
reciprocidade na acção: eles dormem e nós não – é o que nos mostra, lentamente,
na nossa expectativa defraudada, que o sono é sempre impenetrável e a espera
sempre uma expectativa, mas é no momento em que olhamos os outros nesse torpe
que a graça do artista nos desperta para um outro nível de atenção: perante os
que dormem (bocejo), esforço-me por me manter acordado. “I sincerely wish for
everyone to remain sane during this tragic time", remata o vigilante
ucraniano.
•
Frederico Martinho
Frederico Martinho (1988, Coimbra) é
arquitecto e tem desenvolvido a sua prática artística nos campos da fotografia,
escrita e cultura rave. Criou o colectivo Volúpia e é membro da redacção da
Revista Osso
Imagem
“The train stop”, Sergei Loznitsa, 2000.
Ficha Técnica
Data de publicação: 31.03.2022
Edição #35 • Primavera 2022 •