Velocidade ou vigília • Frederico Martinho





Poucos dias depois dos primeiros bombardeamentos perguntaram a Sergei Loznitsa, cineasta ucraniano, se o seu impulso foi o de preparar cocktails molotov ou o de fazer um novo filme. Ele respondeu que, naquele momento, há os que têm de combater e os que têm de pensar, rejeitando cordialmente ambas as hipóteses. Ele precisava de tempo para pensar. Umas semanas depois foi banido da Ukrainian Film Academy por se opor ao boicote dos realizadores russos. Acusado de não ser suficientemente patriota, apelidaram-no de “cosmopolita”. A ideia de Loznitsa é simples: não se deveria excluir da luta contra a guerra todos aqueles que se opõem a ela, e nessa oposição incluem-se, obviamente, todos os russos que têm ajudado a denunciar, condenar e a combater o regime de Putin – “We must not judge people based on their passports. We can judge them on their acts.”

Apanhados na fúria dos acontecimentos, tendemos a cair na tentação de a simplificar, enquanto as bandeiras, vazias, estalam ao vento. Virilio, esse “filho da guerra total” que pensou o cinema como um campo de batalha (Guerra e Cinema, 1986), defendia insistentemente a forma como a velocidade nos turva a visão: quanto mais rápido nos movemos menor a visão periférica – a velocidade achata a visão; quanto maior a velocidade menor o discernimento – a velocidade congela. Ao condenar o cancelamento dos cineastas russos, Loznitsa não quis mais do que desacelerar o ímpeto de censura que arrasa com tudo o que está do outro lado. Desse outro lado, deparamo-nos com autores como Andrey Zvyagintsev onde, em títulos como “Leviathan” ou “Loveless”, nos serve, gelidamente, uma paisagem de desânimo que nos conta como é viver na Rússia de Putin. Assente na lentidão e frieza das suas narrativas meticulosamente cuidadas, o realizador russo expõe uma sociedade absorvida por um mundo elitista, corrupto e capitalista, e a apatia causada pela impotência dos indivíduos perante o novo liberalismo oligárquico. Ora, retirar este autor (entre muitos outros) do circuito não é só empobrecer o nosso nível de atenção. É interromper o curso das lutas, individuais ou colectivas, mais ou menos silenciosas, a que os autores se propõem. É lá dentro, daquele lado, onde a luta também se faz, que nos devemos demorar.

A rapidez com que um jornalista não se coibiu de confrontar Loznitsa com uma acção imediata, um instinto (cinema ou cocktail?), deve servir de alerta para os perigos da velocidade cruzeiro a que nos querem colocar. E a resposta de Loznitsa deve servir de mote para conseguirmos conservar a lucidez de não nos precipitarmos em proezas, já que, de repente, assistimos à proibição indiscriminada dos partidos de esquerda, ao mesmo tempo que sabemos da libertação de nazis em nome da ajuda humanitária. Repare-se, então, como o encadeamento apressado das decisões se precipita numa inversão da posição dos diferentes actores no contexto da guerra. A esta velocidade já não interessa quem pensa – não há tempo para isso – e enquanto repousamos na vertigem alucinante das divisões fáceis (há heróis a fazer o nosso trabalho) fechamos os olhos aos que ensaiam, na lentidão, a melhor imagem possível.

Sergei Loznitsa é o mesmo realizador que, em 1999, filmou as estações de comboio russas onde os passageiros, exaustos, dormiam. Em "The Train Stop" observamos o sono dessas pessoas, esperando os comboios que ouvimos ao fundo, sem, no entanto, as acordar. Nesse filme nunca teremos a resposta para a vida desses corpos que descansam num terminal de caminhos de ferro. Nunca teremos a perspectiva de uma acção daqueles homens, mulheres e crianças que se acomodam, como podem, nos bancos de madeira, no chão, nos outros. O sono é o marasmo com que nós, espectadores, teremos de lidar. A revolução nunca se fará naquele documento, mas o tédio que resulta dessa paralisia – dessa aparente não reciprocidade na acção: eles dormem e nós não – é o que nos mostra, lentamente, na nossa expectativa defraudada, que o sono é sempre impenetrável e a espera sempre uma expectativa, mas é no momento em que olhamos os outros nesse torpe que a graça do artista nos desperta para um outro nível de atenção: perante os que dormem (bocejo), esforço-me por me manter acordado. “I sincerely wish for everyone to remain sane during this tragic time", remata o vigilante ucraniano.


 

 

Frederico Martinho

Frederico Martinho (1988, Coimbra) é arquitecto e tem desenvolvido a sua prática artística nos campos da fotografia, escrita e cultura rave. Criou o colectivo Volúpia e é membro da redacção da Revista Osso

 

Imagem

“The train stop”, Sergei Loznitsa, 2000.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 31.03.2022

Edição #35 • Primavera 2022 •